Ajuste fiscal era conhecido como remédio dolorido, a meio caminho entre dívida e pecado
A ideia de responsabilidade fiscal veio da Nova Zelândia, pouca gente sabe, através de uma lei de 1994.
Nesse mesmo ano, no Brasil, estávamos às voltas com outras coisas: a hiperinflação, a URV, que mudou de nome para real em julho, 16 dias antes da final da Copa, e em dezembro, já campeões do mundo, a inflação bateu 1,7% pelo IPCA, equivalentes a 22% em bases anuais. Era um extraordinário progresso, mas ainda tivemos muito trabalho para chegar em 1,6% para o ano inteiro de 1998.
Nos primeiros tempos, a expressão “responsabilidade fiscal” parecia mesmo uma importação sem similar nacional, um estrangeirismo desses que os comunistas locais repelem, mas logo ficou claro que se tratava de uma inovação revolucionária, uma espécie de Uber dos debates fiscais, começando pela linguagem.
Antes dessa extraordinária invenção, os economistas eram como os farmacêuticos de antigamente que vinham nas casas de família com uma imensa seringa não descartável numa caixa de metal e as crianças se escondiam apavoradas. Os senhores parlamentares escutavam falar de “ajuste fiscal” e pareciam ver o farmacêutico querendo lhes aplicar injeções.
Ninguém queria saber de “ajuste fiscal”, que não se entendia bem como conserto ou contrato, mas como remédio dolorido, a meio caminho entre a dívida e o pecado. E aqui temos um parentesco ancestral: Margareth Atwood lembra que “no aramaico, a língua semítica falada por Jesus, a palavra para “dívida” e a palavra para “pecado” era a mesma. Assim, é possível traduzir a passagem [DO PAI NOSSO]como “perdoai nossas dívidas/pecados”, ou até como “nossas dívidas pecaminosas” embora nenhum tradutor tenha escolhido fazê-lo, ainda.
O “ajuste fiscal” era frequentemente colocado na mesma cava do inferno onde está a “austeridade”, outra criatura ascética, coisa de anacoretas, uma espécie de jejum da vida e, por isso mesmo, durante muitos anos, os economistas pregaram no deserto.
Tudo mudou com essa feliz expressão neozelandesa à qual ninguém poderia se opor. Quem pode ser contra a responsabilidade fiscal? Ou a sustentabilidade? Seja ela ambiental, fiscal, financeira, empresarial?
O equilíbrio fiscal entrou, com isso, para o domínio do politicamente correto, esse o truque que sempre nos faltou.
A mágica das palavras é fundamental para as disputas retóricas, mas em 1994, a responsabilidade fiscal não era mais que isso, uma expressão bem achada. Era preciso praticar para experimentar e entender.
Em 1994, os Estados estavam todos quebrados e em atraso com as empresas federais de geração de energia, com os bancos federais e com seus bancos estaduais, e estes, por sua vez, também encrencados e sem solução.
Era o caos. Não era o ambiente mais acolhedor para se introduzir a responsabilidade fiscal e, por isso, mesmo se abandonou a ideia de uma emenda constitucional de orçamento equilibrado ou de teto de gastos, como a de hoje.
Mas o que veio a seguir deu significado bem claro ao conceito. Foram diversas rodadas de refinanciamento das dívidas estaduais que resolveram todos esses problemas. Foi essencial que houvesse uma garantia boa (tanto que, hoje, os Estados não conseguem deixar de pagar a União), que fossem extintos os bancos estaduais (tal como funcionavam), que os Estados dessem em pagamento ativos para a União privatizar e, por fim, que fechasse o guichê dos refinanciamentos para que não houvesse essa “doença do Refis”, ou a ideia de que sempre virá um novo refinanciamento.
Mais importante que tudo, no entanto, foi colocar o Tesouro Nacional (STN) na posição de FMI estabelecendo programas, limites e metas. Depois de tudo resolvido, inclusive de um programa semelhante atendendo 174 municípios, veio uma lei complementar em 2000 que trouxe toda essa experiência para o que se conhece hoje como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Foi uma epopeia, um feito extraordinário para uma secretaria (STN) criada 14 anos antes, a partir do nada. Mais extraordinário ainda foi, 15 anos depois, ver iniciado e concluído o impedimento da presidente da República principalmente por violações à LRF.
A responsabilidade fiscal é uma ideia vencedora e paradigmática, inclusive por que, finalmente, deslocou o desenvolvimentismo inflacionista do terreno da obsolescência, ou do cinismo, para o da ilegalidade.
25 de setembro de 2016
Gustavo Franco, O Globo
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
A ideia de responsabilidade fiscal veio da Nova Zelândia, pouca gente sabe, através de uma lei de 1994.
Nesse mesmo ano, no Brasil, estávamos às voltas com outras coisas: a hiperinflação, a URV, que mudou de nome para real em julho, 16 dias antes da final da Copa, e em dezembro, já campeões do mundo, a inflação bateu 1,7% pelo IPCA, equivalentes a 22% em bases anuais. Era um extraordinário progresso, mas ainda tivemos muito trabalho para chegar em 1,6% para o ano inteiro de 1998.
Nos primeiros tempos, a expressão “responsabilidade fiscal” parecia mesmo uma importação sem similar nacional, um estrangeirismo desses que os comunistas locais repelem, mas logo ficou claro que se tratava de uma inovação revolucionária, uma espécie de Uber dos debates fiscais, começando pela linguagem.
Antes dessa extraordinária invenção, os economistas eram como os farmacêuticos de antigamente que vinham nas casas de família com uma imensa seringa não descartável numa caixa de metal e as crianças se escondiam apavoradas. Os senhores parlamentares escutavam falar de “ajuste fiscal” e pareciam ver o farmacêutico querendo lhes aplicar injeções.
Ninguém queria saber de “ajuste fiscal”, que não se entendia bem como conserto ou contrato, mas como remédio dolorido, a meio caminho entre a dívida e o pecado. E aqui temos um parentesco ancestral: Margareth Atwood lembra que “no aramaico, a língua semítica falada por Jesus, a palavra para “dívida” e a palavra para “pecado” era a mesma. Assim, é possível traduzir a passagem [DO PAI NOSSO]como “perdoai nossas dívidas/pecados”, ou até como “nossas dívidas pecaminosas” embora nenhum tradutor tenha escolhido fazê-lo, ainda.
O “ajuste fiscal” era frequentemente colocado na mesma cava do inferno onde está a “austeridade”, outra criatura ascética, coisa de anacoretas, uma espécie de jejum da vida e, por isso mesmo, durante muitos anos, os economistas pregaram no deserto.
Tudo mudou com essa feliz expressão neozelandesa à qual ninguém poderia se opor. Quem pode ser contra a responsabilidade fiscal? Ou a sustentabilidade? Seja ela ambiental, fiscal, financeira, empresarial?
O equilíbrio fiscal entrou, com isso, para o domínio do politicamente correto, esse o truque que sempre nos faltou.
A mágica das palavras é fundamental para as disputas retóricas, mas em 1994, a responsabilidade fiscal não era mais que isso, uma expressão bem achada. Era preciso praticar para experimentar e entender.
Em 1994, os Estados estavam todos quebrados e em atraso com as empresas federais de geração de energia, com os bancos federais e com seus bancos estaduais, e estes, por sua vez, também encrencados e sem solução.
Era o caos. Não era o ambiente mais acolhedor para se introduzir a responsabilidade fiscal e, por isso, mesmo se abandonou a ideia de uma emenda constitucional de orçamento equilibrado ou de teto de gastos, como a de hoje.
Mas o que veio a seguir deu significado bem claro ao conceito. Foram diversas rodadas de refinanciamento das dívidas estaduais que resolveram todos esses problemas. Foi essencial que houvesse uma garantia boa (tanto que, hoje, os Estados não conseguem deixar de pagar a União), que fossem extintos os bancos estaduais (tal como funcionavam), que os Estados dessem em pagamento ativos para a União privatizar e, por fim, que fechasse o guichê dos refinanciamentos para que não houvesse essa “doença do Refis”, ou a ideia de que sempre virá um novo refinanciamento.
Mais importante que tudo, no entanto, foi colocar o Tesouro Nacional (STN) na posição de FMI estabelecendo programas, limites e metas. Depois de tudo resolvido, inclusive de um programa semelhante atendendo 174 municípios, veio uma lei complementar em 2000 que trouxe toda essa experiência para o que se conhece hoje como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Foi uma epopeia, um feito extraordinário para uma secretaria (STN) criada 14 anos antes, a partir do nada. Mais extraordinário ainda foi, 15 anos depois, ver iniciado e concluído o impedimento da presidente da República principalmente por violações à LRF.
A responsabilidade fiscal é uma ideia vencedora e paradigmática, inclusive por que, finalmente, deslocou o desenvolvimentismo inflacionista do terreno da obsolescência, ou do cinismo, para o da ilegalidade.
25 de setembro de 2016
Gustavo Franco, O Globo
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
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