Eles são enfáticos: não podemos subestimar a devastação causada pelo lulopetismo
Deus pode às vezes parecer ausente, mas nem os piores incréus põem em dúvida sua condição de brasileiro. É dele que provêm as abundantes infusões de otimismo de que nos servimos diariamente. Nesse encargo diário ele é coadjuvado por outro brasileiro ilustre, o dr. Pangloss, personagem de Voltaire, um inabalável adepto da teoria de que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
No momento, pelo que me consta, eles trabalham a quatro mãos num grandioso plano para livrar o Brasil da chamada “armadilha do crescimento médio”. Em economês, essa expressão significa que nosso país concluiu galhardamente a chamada etapa fácil do processo de desenvolvimento, aquela em que a mão de obra barata era tão abundante que dava para crescer com pouco capital, pouca tecnologia e quase nenhuma educação. Ascender ao patamar mais alto e entrar no seleto grupo dos países realmente desenvolvidos são outros quinhentos mil-réis.
Em que pese sua imensa boa vontade, nossos dois benfeitores vez por outra nos recomendam sobriedade. Dizem que precisamos estar atentos aos desafios de curto e médio prazo que nos aguardam não só na economia e na política, mas também em nossa mentalidade, na qual discernem certos traços de infantilidade.
Na economia, são enfáticos: não podemos subestimar a devastação causada pelos 13 anos e meio de lulopetismo. Os números os dois já nem se preocupam em ressaltar, sabem que são de conhecimento geral. O ponto que repisam é o do ajuste fiscal. Agora, dizem, há que cortar gastos ou aumentar impostos, ou ambas as coisas – sem choro e sem vela.
Sem ajuste as engrenagens da economia não entrarão nos devidos eixos. Investidor nenhum, brasileiro ou estrangeiro, é louco de botar seu escasso dinheirinho em algum empreendimento sério, com determinação e ânimo de continuidade, num país que não faz o dever de casa. Menos ainda aquele investidor bem informado que acompanha de perto o nosso sistema político. Numa recessão do tamanho da atual, esse investidor sabe que todos os setores organizados, privados e públicos, assim como os políticos que os representam, já avisaram: farinha pouca, meu pirão primeiro. Para aumentar impostos o enredo é um pouco diferente, mas o cenário é o mesmo: uma pedreira.
A esta altura, nossos dois grandes beneméritos retornam à cena com uma mensagem mais severa. Por lúcido e competente que seja – e quanto a isso não cabe dúvida –, o novo governo corre contra o tempo. Quanto mais demorar, menor será sua capacidade e sua credibilidade para fazer o que precisa ser feito. Ninguém se arriscará a prever a duração da crise, os investimentos não voltarão e a cifra do desemprego logo ultrapassará os atuais 11,5 milhões. Suponho que meus leitores e leitoras tenham assistido ao filme Ensaio de Orquestra, de Federico Fellini. Uma metáfora política muito bonita de ver, mas dá calafrios.
Soube que o dr. Pangloss atualmente se pergunta se foi mesmo uma boa ideia nos convencer da “robustez” de nossas instituições políticas. Realmente, em sua lógica implacável ele reitera que não tivemos nenhum golpe militar desde o último. Isso é muito bom. No Judiciário há novidades extremamente positivas; por enquanto, só a ponta de um iceberg, mas antes isso. O dr. Pangloss reitera também que o Executivo cumpre normalmente sua tarefa essencial, a produção de políticas públicas, muito embora o apanhado das políticas educacionais iniciadas desde 2007 feito nesta página pelo professor João Baptista Araújo o tenha deixado com uma pulga atrás da orelha.
Mas onde o entusiasmo de nossos dois bondosos patronos se torna esfuziante é quando falam da reforma política. Parecem admirar a perseverança com que, ano após ano, nos debruçamos sobre essa questão; perseverança que lhes parece tanto mais admirável quando constatam o afinco com que nos dedicamos a tal reforma mesmo não sabendo direito o que queremos. Os reformadores de outras galáxias começam por esta singela inquirição: “Reformar o quê, como, para quê?”. Pessimistas impenitentes, já se vê.
É bem verdade que os padecimentos políticos de que eles padecem lá nós não padecemos cá. Flexíveis como somos, temos solução para tudo. Na Inglaterra, derrotado no vexatório plebiscito que houve por bem inventar, o ex-ministro David Cameron teve direito a uma última foto: de costas, na noite da derrota, junto com sua mulher, deixando seu gabinete. Nosso presidencialismo é um pouco mais complicado: a doutora Dilma Rousseff quase consumiu nossa paciência, mas – alvíssaras! – a novela parece estar chegando ao fim.
No tocante à organização partidária, nossos traços característicos são a lógica e o perfeccionismo. Atendendo à lógica, convencionamos que 1) o viço e a qualidade de uma democracia se medem pelo número de partidos; 2) para tal efeito, o conceito de partido não se reduz ao de uma mera associação civil, registrável em qualquer cartório, mas se trata de figura de direito público, registrada no TSE e custeada por recursos públicos, por meio do Fundo Partidário e do horário eleitoral supostamente gratuito, uma isenção fiscal; 3) esses supostos “privilégios” dos partidos se justificam pela missão que lhes é inerente, qual seja, a de representar correntes de opinião, aspirações programáticas ou ideologias de fato existentes no meio social. E aqui entra nosso perfeccionismo: estamos, salvo melhor juízo, com 32 partidos registrados e 35 na fila, aguardando o conveniente registro.
Onde Deus e Pangloss talvez se hajam equivocado é na infantilidade que de tempos em tempos nos atribuem. Nada há no sumário conjuntural acima apresentado que sugira isso. Mas não nos precipitemos, ainda estamos em agosto. Até o fim do ano, quem sabe?
13 de agosto de 2016
Bolivar Lamounier, Estadão
Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras
Deus pode às vezes parecer ausente, mas nem os piores incréus põem em dúvida sua condição de brasileiro. É dele que provêm as abundantes infusões de otimismo de que nos servimos diariamente. Nesse encargo diário ele é coadjuvado por outro brasileiro ilustre, o dr. Pangloss, personagem de Voltaire, um inabalável adepto da teoria de que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
No momento, pelo que me consta, eles trabalham a quatro mãos num grandioso plano para livrar o Brasil da chamada “armadilha do crescimento médio”. Em economês, essa expressão significa que nosso país concluiu galhardamente a chamada etapa fácil do processo de desenvolvimento, aquela em que a mão de obra barata era tão abundante que dava para crescer com pouco capital, pouca tecnologia e quase nenhuma educação. Ascender ao patamar mais alto e entrar no seleto grupo dos países realmente desenvolvidos são outros quinhentos mil-réis.
Em que pese sua imensa boa vontade, nossos dois benfeitores vez por outra nos recomendam sobriedade. Dizem que precisamos estar atentos aos desafios de curto e médio prazo que nos aguardam não só na economia e na política, mas também em nossa mentalidade, na qual discernem certos traços de infantilidade.
Na economia, são enfáticos: não podemos subestimar a devastação causada pelos 13 anos e meio de lulopetismo. Os números os dois já nem se preocupam em ressaltar, sabem que são de conhecimento geral. O ponto que repisam é o do ajuste fiscal. Agora, dizem, há que cortar gastos ou aumentar impostos, ou ambas as coisas – sem choro e sem vela.
Sem ajuste as engrenagens da economia não entrarão nos devidos eixos. Investidor nenhum, brasileiro ou estrangeiro, é louco de botar seu escasso dinheirinho em algum empreendimento sério, com determinação e ânimo de continuidade, num país que não faz o dever de casa. Menos ainda aquele investidor bem informado que acompanha de perto o nosso sistema político. Numa recessão do tamanho da atual, esse investidor sabe que todos os setores organizados, privados e públicos, assim como os políticos que os representam, já avisaram: farinha pouca, meu pirão primeiro. Para aumentar impostos o enredo é um pouco diferente, mas o cenário é o mesmo: uma pedreira.
A esta altura, nossos dois grandes beneméritos retornam à cena com uma mensagem mais severa. Por lúcido e competente que seja – e quanto a isso não cabe dúvida –, o novo governo corre contra o tempo. Quanto mais demorar, menor será sua capacidade e sua credibilidade para fazer o que precisa ser feito. Ninguém se arriscará a prever a duração da crise, os investimentos não voltarão e a cifra do desemprego logo ultrapassará os atuais 11,5 milhões. Suponho que meus leitores e leitoras tenham assistido ao filme Ensaio de Orquestra, de Federico Fellini. Uma metáfora política muito bonita de ver, mas dá calafrios.
Soube que o dr. Pangloss atualmente se pergunta se foi mesmo uma boa ideia nos convencer da “robustez” de nossas instituições políticas. Realmente, em sua lógica implacável ele reitera que não tivemos nenhum golpe militar desde o último. Isso é muito bom. No Judiciário há novidades extremamente positivas; por enquanto, só a ponta de um iceberg, mas antes isso. O dr. Pangloss reitera também que o Executivo cumpre normalmente sua tarefa essencial, a produção de políticas públicas, muito embora o apanhado das políticas educacionais iniciadas desde 2007 feito nesta página pelo professor João Baptista Araújo o tenha deixado com uma pulga atrás da orelha.
Mas onde o entusiasmo de nossos dois bondosos patronos se torna esfuziante é quando falam da reforma política. Parecem admirar a perseverança com que, ano após ano, nos debruçamos sobre essa questão; perseverança que lhes parece tanto mais admirável quando constatam o afinco com que nos dedicamos a tal reforma mesmo não sabendo direito o que queremos. Os reformadores de outras galáxias começam por esta singela inquirição: “Reformar o quê, como, para quê?”. Pessimistas impenitentes, já se vê.
É bem verdade que os padecimentos políticos de que eles padecem lá nós não padecemos cá. Flexíveis como somos, temos solução para tudo. Na Inglaterra, derrotado no vexatório plebiscito que houve por bem inventar, o ex-ministro David Cameron teve direito a uma última foto: de costas, na noite da derrota, junto com sua mulher, deixando seu gabinete. Nosso presidencialismo é um pouco mais complicado: a doutora Dilma Rousseff quase consumiu nossa paciência, mas – alvíssaras! – a novela parece estar chegando ao fim.
No tocante à organização partidária, nossos traços característicos são a lógica e o perfeccionismo. Atendendo à lógica, convencionamos que 1) o viço e a qualidade de uma democracia se medem pelo número de partidos; 2) para tal efeito, o conceito de partido não se reduz ao de uma mera associação civil, registrável em qualquer cartório, mas se trata de figura de direito público, registrada no TSE e custeada por recursos públicos, por meio do Fundo Partidário e do horário eleitoral supostamente gratuito, uma isenção fiscal; 3) esses supostos “privilégios” dos partidos se justificam pela missão que lhes é inerente, qual seja, a de representar correntes de opinião, aspirações programáticas ou ideologias de fato existentes no meio social. E aqui entra nosso perfeccionismo: estamos, salvo melhor juízo, com 32 partidos registrados e 35 na fila, aguardando o conveniente registro.
Onde Deus e Pangloss talvez se hajam equivocado é na infantilidade que de tempos em tempos nos atribuem. Nada há no sumário conjuntural acima apresentado que sugira isso. Mas não nos precipitemos, ainda estamos em agosto. Até o fim do ano, quem sabe?
13 de agosto de 2016
Bolivar Lamounier, Estadão
Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras
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