O artigo de hoje do nosso sempre lido, respeitado e admirado Sebastião Nery (“O Dono da Oca”), que relata seu encontro com o Cacique Mário Juruna, seus desdobramentos e adentra na História remota e recente do nosso país, me fez reviver o mês de novembro de 1980, quando o então ministro do Interior, Mário Andreazza, proibiu o cacique de viajar à Holanda e representar os índios brasileiros num seminário do Tribunal Bertrand Russel, reunido em Haia, justamente para cuidar da situação dos indígenas em todo o mundo. Naquela época os indígenas brasileiros eram tutelados pela União, que neles mandava e desmandava.
Era uma viagem que não interessava ao governo militar. Juruna, que era autêntico, sem maldade, que não tinha papas na língua, andava sempre com seu gravador para documentar tudo e conhecia como ninguém os problemas do seu povo, Juruna iria denunciar tudo no Tribunal Bertrand Russel. Certamente seria um escândalo internacional. E isso metia medo ao governo militar. Naquela época a notícia da proibição da viagem de Juruna à Holanda ganhou repercussão no país e no mundo. Foi quando, por conta própria, decidi agir.
Contei com as preciosíssimas colaborações do Juiz Doutor Antonio Sebastião de Lima, titular da 38ª Vara Criminal do Rio, meu amigo, pessoa de fibra, de rara cultura e independente, e também com a ajuda de minha esposa, Doutora em História. E nós três, a 6 mãos, redigimos um Habeas Corpus para o cacique Mário Juruna com pedido de liminar para que o Xavante viajasse à Holanda, sem delongas e imediatamente.
CADEIRA VAZIA
Na Holanda, o Tribunal já se encontrava reunido e a cadeira de Juruna permanecia vazia, como mostraram a televisão e as fotos dos jornais. Em 48 horas o HC estava pronto, redigido e datilografado. Comprei a passagem, viajei a Brasília e protocolei a petição do HC no então Tribunal Federal de Recursos (TFR), foro competente para julgar ação impetrada contra ministro de Estado. Com a Constituição Federal de 1988, o TFR foi extinto. Em seu lugar foi criado o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Protocolei e voltei no mesmo dia. Tudo isso sem conhecer Juruna. A impetração ganhou as páginas dos jornais. Qualquer pessoa pode impetrar Habeas Corpus em favor de outra, mesmo sem o seu conhecimento e/ou consentimento. É um heróico remédico jurídico, de múltiplas finalidades, a bem do Direito e das Liberdades.
As argumentações na petição do Habeas Corpus foram muitas. Me recordo que a principal delas foi a de que todo tutor tem o dever de cuidar bem do seu tutelado, a ele proporcionando todos meios para a sua evolução, para o seu progresso em todos os sentidos e todas as áreas. Que o governo brasileiro (a União), tutor de Juruna, ao proibir que seu tutelado viajasse à Holanda para participar do tribunal em que estavam reunidos representantes indígenas do mundo inteiro para tratar da situação de sua gente, de seus povos, o governo brasileiro não estava agindo em benefício de Juruna, seu pupilo-tutelado, mas em seu prejuízo. E quando um tutor procede dessa maneira, nefasta e desidiosa, cumpria ao Judiciário intervir, suprindo o que precisava ser suprido. E o suprimento que se pedia ao Tribunal Federal de Recursos era a revogação da proibição do ministro Andreazza e a concessão do salvo-conduto para que Juruna viajasse e tomasse assento na cadeira dele, que permanecia vazia.
SESSÃO CONCORRIDA
Foi uma das sessões mais concorridas do extinto Tribunal Federal de Recursos, conforme registram os anais daquela extinta Corte. No dia marcado para o julgamento, voltei a Brasília e compareci. Cumpri o meu papel de cidadão e advogado. E Juruna venceu. Os 33 ministros que compunham a Corte votaram unanimemente pelo acolhimento e deferimento do Habeas Corpus. E já no final da tarde, Juruna estava com o salvo-contudo na mão. E ao terminar a sessão, ainda no plenário e sem até então me conhecer, Juruna veio ao meu encontro. Me deu um abraço tão apertado, mas tão apertado que quase me quebrou todo. Como ele era forte!.
Por acaso, viajamos no mesmo avião de retorno ao Rio. No aeroporto Tom Jobim, bem tarde da noite, já nos esperavam duas passagens, Rio-Amestardã-Rio, uma para Juruna, outra para mim. O voo seria naquela mesma noite. Agradeci. Declinei do convite. Estava sem condições de viajar. E endossei a passagem para que outra pessoa viajasse no meu lugar. Foi melhor assim. Juruna viajou em companhia de um seu amigo, defensor da causa indígena e que tinha comprado as passagens.
COM ANDREAZZA
Anos depois do julgamento, eu estava numa lanchonete na Tijuca tomando um cafezinho. De repente, quem entrou? Ele, Mário David Andreazza. Era um homem bonitão, doce, amável, boa praça. Gestos largos, sorriso franco. Conheci o Andreazza naquele dia. Ele pediu água mineral para tomar remédio. Então, aproveitei e me apresentei. Tratei-o por ministro, embora já não fosse mais.
– “Bom dia, ministro”.
– “Bom dia, como vai você?”, respondeu.
– “Vou bem obrigado, ainda mais depois do Habeas Corpus que impetrei e o cacique Mário Juruna venceu em Brasília”.
– “Ah! então foi você? Você é aquele advogado, se não me engano Jorge Berger?
– “Sim, ministro. Não Berger” (e aí disse o nome certo).
– “Parabéns. Você agiu certo. Pessoalmente, não era contra a viagem do Juruna. Mas recebi ordens para não deixar ir. Um abraço. Mora aqui na Tijuca?”.
29 de julho de 2015
Jorge Béja
Nenhum comentário:
Postar um comentário