"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

FUGAS

As semanas passam e a impressão é de que a vida no Rio de Janeiro, por qualquer ângulo, afunda. Nossas falas são pautadas pela violência dos dias. Se pensarmos bem, podemos dizer que nunca foi diferente. O carioca vive há tempos, de muitas maneiras, uma sensação aguda de mágoa com a população, com a cidade e, talvez, consigo mesmo. No trânsito, na rua, nos serviços, nas escolas, nos hospitais, o saldo que todos apontam na fatura é o rancor.

Depois de décadas (séculos) de agressões, mortes e medos, a certeza das conversas assustadas diz que aqui, nessa terra feita de privilégios naturais, o mal absoluto é um dado incontornável.
Com as mortes simultâneas e brutais na Lagoa e no Dendê, o impacto na opinião pública foi explosivo. É sempre necessário, mesmo que óbvio, lembrar que a sequência de mortes estúpidas é longa, muito longa. Principalmente entre os mais pobres, porém espraiados em todas as classes e bairros, os óbitos se sucedem, as reivindicações se acumulam, os corpos são enterrados, os vivos são destroçados.

Um dos efeitos colaterais desses eventos é, frequentemente, o diagnóstico da falência. A constatação de muitos é peremptória: “O Rio acabou” (e o Brasil, por consequência, já que carioca sempre achou, erroneamente, que o Rio é o Brasil) e a única saída viável é “ir embora”. A ideia parece ser evadir, sumir do estado-violência carioca e morar em outro “éden”. Um lugar em que você ande nas ruas em paz, sem medo.

Dando uma guinada nesse tema, creio que a vontade de ir embora é diretamente ligada à profunda nostalgia que guia os cariocas em direção ao seu passado. Nas atuais exposições de fotografias dedicadas à cidade, vemos e partilhamos essa sensação de uma cidade melhor, de um tempo espaçado, de locais mais civilizados, vazios, belos. 

Por certo, mais seguros. Isso pode ser constatado tanto frente às poderosas imagens de Marc Ferrez e Augusto Malta, quanto em imagens de Alécio Andrade, de David Drew Zing, de José Medeiros, de Marcel Gautherot e muitos outros fotógrafos geniais que revelaram a cidade e seus habitantes entre 1870 e 1970 (ao chegarmos aos anos 80, a tônica da violência urbana começa a ocupar o imaginário da cidade e contamina a sensação de um tempo melhor no passado). 

O mesmo ocorre, para ficarmos no campo da memória fotográfica, com filmes estrangeiros e vídeos caseiros dos anos de 1920, 30 e 40 que circulam volta e meia pelas redes sociais. Vê-los, acompanhar a cidade-jardim em movimento e tecnicolor, aumenta a intensidade dessa sensação de que o passado era melhor.

De forma oblíqua, ir para fora e voltar no tempo são movimentos que buscam a mesma coisa: sair desse presente carioca. Sabemos, porém, que ambos são idealizações fracassadas em suas bases. Nem o mundo lá fora será um mar de rosas — afinal, bombas explodem em maratonas, redações de jornais são invadidas e metralhadas, policiais também matam jovens negros inocentes, grupos terroristas explodem metrôs, imigrantes sofrem agressões verbais e físicas — e nem o passado era perfeito. Para cada passo atrás, as comodidades do presente vão desaparecendo. Serviços que hoje em dia já não são tolerados — água, luz, telecomunicações, saúde, alimentação, limpeza — eram muito mais precários. 

A concentração populacional era ínfima, mas a concentração de renda era absurda. A cidade era linda com suas praias que aterraram e seus morros que desmontaram, mas já estávamos destruindo os rios urbanos. A Floresta da Tijuca estava sendo replantada depois de séculos de destruição. Até mesmo nos anos 1950 e 60 tudo podia ser mais fluido em sua calma espacial, mas continuávamos com precariedades básicas que só quem habitava áreas nobres da cidade podia tolerar.

Não digo isso para desdenhar da memória de um Rio de outrora. A comemoração dos 450 anos da cidade é para ser louvada, e cada evento do seu passado é precioso para entendermos como nos formamos entre nativos, europeus e africanos. O que quero apontar é apenas o fato de que nem sempre andar para trás ou fugir para fora são garantias de que estaremos a salvo. O Rio, em todos os tempos, sempre produziu uma exuberância cruel. Somos a cidade em que o azul de maio explode seus sentidos, mas é quase constrangedor alardear a beleza acachapante dos seus dias.

Quando somos abatidos por eventos trágicos em todos os territórios da cidade (e precisamos sempre exigir que a vida seja um valor inegociável em TODOS os espaços), é impossível não lembrar de “Perdeu”, uma das grandes canções sobre nossa falência e exuberância. Gravada por Caetano Veloso no disco “Zii e Zie”, sua letra fala dos meninos abandonados à própria sorte nessa metrópole (“um Deus, um bicho, um homem”). Em seu vagar, eles trazem “olhos vazios de mata escura e céu azul”. Não olham para a vida em outro país, nem olham para uma fotografia do passado. Olham para os olhos-natureza da cidade, mas não veem nada. E ela, ainda os vê?

27 de maio de 2015
Fred Coelho

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