"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 14 de setembro de 2014

UM ROJÃO PARA DRUMMOND

 

Quando tudo se recolhe à essência mais quieta, Drummond pode recolher-se dentro de si mesmo
Este ano está repleto de homenagens a Carlos Drummond de Andrade, desde encontros na Flip à publicação de seus inéditos da juventude.

Vi algumas reedições de seus livros também, feitas pela Cosac Naify, com primoroso trabalho de notas e -como sempre- aquela antipática mania da capa dura que é marca da editora.

Acabei tendo de participar de uma mesa-redonda sobre a prosa de Drummond. Como tinha feito um texto sobre seu livro de crônicas de 1962, "A Bolsa & A Vida", não achei que seria difícil preparar algo meio em cima da hora.

Mas é tempo de férias, e eu tinha de deixar muita coisa pronta antes de viajar. A data da minha participação se aproximava, foi chegando, e nada de eu cuidar do assunto.

Sobrava apenas uma noite; meu sono era grande, a vontade de enrolar, maior ainda, e pensei em dar uma dormidinha antes de começar.

Não contava com o que estava acontecendo lá fora. Era o jogo do Corinthians contra o Boca Juniors. Os fogos e a gritaria de comemoração não deixavam ninguém dormir, e nem por isso me deram vontade de me dedicar à tarefa prometida.

"Tudo bem", pensei. "Daqui a pouco eles se cansam." De fato, depois de uma hora ou duas, os rojões foram rareando. Às vezes, alguém ainda se lembrava da vitória, e berrava como se a conquista da Libertadores tivesse acabado de acontecer.

O silêncio foi vencendo, entretanto, e uma noite igual por fim se impôs, em São Paulo e em Buenos Aires. Dormi sem preparar nem sombra de palestra; acordei de madrugada, e não havia mais coisa nenhuma a ser ouvida.

Conto tudo isso porque, na minha opinião, essa chegada do silêncio e da noite constituem um momento bem drummondiano.
Vale lembrar, para fins de comparação, um famoso poema de Manuel Bandeira, intitulado "Profundamente". (*)

O poeta se lembra de uma festa de São João de quando ele era criança; havia fogos e cantorias. Acorda no meio da noite, tudo já terminou, e quem participava da festa agora estava dormindo, "dormindo profundamente".

Muitos anos depois, no momento em que se recorda dessa cena, o poeta repete a constatação.

"Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ Minha avó/ Meu avô/ Totônio Rodrigues/ Tomásia/ Rosa/ Onde estão todos eles?"
Bandeira responde: "Estão todos dormindo/ Estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamente".

O silêncio depois da festa evoca, no poema de Bandeira, sensações de perda, de saudade. A noite traz algo de irrecuperável; é o fim.

Minha impressão é que, com Carlos Drummond de Andrade, acontece o contrário. O silêncio é bem-vindo, e a noite é o verdadeiro começo.
Quando tudo se recolhe à sua essência mais quieta, Drummond pode finalmente recolher-se também dentro de si mesmo, e é então que tudo nasce.

Talvez a melhor crônica de "A Bolsa & A Vida" seja a que se intitula "Ficar em Casa".
É Quarta-feira de Cinzas; aos poucos, o tumulto carnavalesco se reduz a um "grito trêmulo, trazido e levado pelo vento". Drummond está sozinho em casa e se beneficia de uma "inexistência provisória do mundo".
Aprecia "o instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som". Descobre, "sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres entrelaçados no ruído".

Sente a casa "como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém".
Não há nada, nesse texto, daquele espírito de "croniquinha" amigável que, muitas vezes, estraga a prosa de Drummond. "Ficar em Casa" lembra algumas passagens de seus melhores poemas.
Penso no "Copo d'Água no Sereno", em que, posto no peitoril da janela, o copo "convoca os eflúvios da noite". O "frio nevoso da serra", "os perfumes brandos/ do mato dormindo" e "o gosto delicado da brisa" se juntam, "e pousam na água".
Em "Indicações", Drummond menciona "certo olhar, mais sério, não ardente,/ que pousas nas coisas, e elas compreendem".
De "mala pronta" e "corpo desprendido" ("Conclusão"), o poeta, que já dissera a si mesmo "fique quieto no seu canto", constata que resta apenas "a alegria de estar só, e mudo".

É desse silêncio que nasce a poesia de Drummond; merece ser comemorada, com os rojões que ainda tenhamos à disposição.
São Paulo, quarta-feira, 11 de julho de 20, Ilustrada

14 de setembro de 2014
Marcelo Coelho

(*)

Profundamente (Manuel Bandeira)

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
 
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
 
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
 
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
 
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

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