A derrota trágica no Mineirão precisa ser o marco zero de uma reforma profunda, como fez a Alemanha, passando pela revitalização dos clubes, com o seu enquadramento num modelo profissional de administração
O período de 64 anos, de 1950 a 2014, é delimitado por duas tragédias na história do futebol brasileiro. Numa ponta, a perda do que poderia ter sido o primeiro título mundial, no Maracanã, para o Uruguai, e, na outra, a vexaminosa derrota por humilhantes 7 a 1 diante da Alemanha, terça-feira, no Mineirão. Era o penúltimo passo antes de se voltar seis décadas depois ao Maracanã para, enfim, vingar 50.
Ora, o país lutou para sediar a Copa de 2014 com dois objetivos principais: exorcizar aquele fantasma e ser hexacampeão. Não será, e ainda permitiu nova mancha nos 100 anos de seleção brasileira: a mais acachapante derrota nestas dez décadas.
Será infindável a pendenga sobre se o Maracanazo foi ou não maior que o Mineirazo. Mas trata-se de uma discussão tão longa quanto inútil. Os argumentos de lado a lado são vários. Perder um jogo (2 a 1) de decisão de Copa em casa, contra o Uruguai, no qual abriu-se o placar e precisava-se apenas do empate, é difícil esquecer. De outro lado, o vexame do 7 a 1, no Mineirão — sendo que tudo foi resolvido no espaço de apenas seis minutos do primeiro tempo, quando três gols, com diferença média de dois minutos entre eles, liquidaram a partida —, também é um pesadelo para sempre.
A vantagem, hoje, é já se ter passado por tragédia do mesmo tamanho, e ressurgido dos escombros. Não importa se a derrota é igual, menor ou maior que a de 50. Está nas crônicas da época o registro do profundo silêncio de catedral que tomou conta do ainda inacabado Maracanã, enquanto Obdulio Varela e Ghigia comemoravam o bi uruguaio no gramado. De anteontem, nestes tempos de comunicação instantânea e planetária, das transmissões ao vivo por incontáveis ângulos, restaram registrados nos arquivos digitais o choro de crianças no Mineirão e a tristeza nas ruas, antes desertas, em todo o país, à espera da classificação para a concretização, enfim, da vingança de 50, no domingo, no mesmo Maracanã.
Consumada a tragédia de 50, em duas Copas o Brasil ganharia a sua primeira, em 58, seria bicampeão e chegaria a cinco títulos. E, seja qual for o campeão no domingo, a seleção continuará como a mais vitoriosa. Nada que não possa ser soterrado por uma sequência de derrotas nos próximos torneios, caso o futebol brasileiro aceite de forma passiva a visível tendência de decadência e desorganização em que entrou. Porém, depois de 50 ele soube reagir. E não foram poucos os reveses seguintes. Quando tinha times medíocres, e a derrota era esperada, e mesmo em surpresas também dolorosas como em 82, na Espanha, quando o Brasil reuniu uma das melhores seleções de todos os tempos, e perdeu. Ou na final de 98, em Paris, para a França, num apagão cuja centelha foi a mal explicada indisposição de Ronaldo.
É indiscutível que o 7 a 1 tem um peso específico não desprezível. Porém, de nada adiantará buscar culpados individuais, transformar o Fred num Barbosa, o goleiro de 50. Ou algo do tipo. Isso não significa deixar de reconhecer os erros, para não repeti-los. Mas é crucial chegar às raízes das falhas.
O comportamento do time na Copa e, em particular, na semifinal de terça, denuncia incontáveis problemas, derivados de mau planejamento e preparação deficiente, falta de treinamento, problemas táticos, de escalação, desequilíbrio emocional e qualidade discutível de jogador. O choro descontrolado do capitão Thiago Silva antes da disputa por pênaltis contra o Chile, a instabilidade da equipe no segundo tempo do jogo com a Colômbia e a própria incapacidade de reagir ao primeiro gol da Alemanha, marcado por um atacante, com o pé, livre, numa batida de escanteio, falha grave de qualquer defesa, são pontos que, ao serem unidos, compõem uma radiografia que precisa ser analisada, com cuidado, sem paixões.
É preciso aprender com a derrota. Ainda mais esta, trágica. Antes de tudo, entretanto, deve-se fazer a autocrítica de que bravatas, ufanismos, arrogância e autossuficiência sempre são a antessala de perdas sofridas, cedo ou tarde. Estes cacoetes foram observados na comissão técnica, em Felipão e Parreira, ao se declararem favoritos e se dizerem com “a mão na taça”, postura que pesou tanto sobre os jogadores que a psicóloga da delegação teve quase tanto trabalho quanto o médico e o massagista. Nos últimos dias, até a presidente Dilma ensaiou querer usar a Copa como arma político-eleitoral. Primeiro, devido ao êxito do evento em si. Depois, se viesse o hexa, o ataque aos “pessimistas” seria amplificado nos palanques.
O vexame de terça mostrou, também, que não há jeitinho e malandragem que consigam superar a organização e o trabalho duro, competente e de longo prazo. O Brasil tem o exemplo da própria Alemanha, capaz de somar a habilidade individual à disciplina. Para isso, fez profunda reformulação, a partir também de um fracasso: na Eurocopa de 2000, quando o time marcou apenas um gol e foi desclassificado na primeira fase. Como no Brasil, lá futebol também é questão de Estado. O governo fixou dez anos de prazo para a Alemanha voltar à elite mundial. A Federação Alemã construiu 360 centros de formação de jogadores, onde são atendidos 25 mil meninos e meninas, de 9 a 17 anos. Foi preciso, também, reformar a liga de futebol (Bundesliga) e o campeonato, com o enquadramento dos clubes em normas de administração austera, como deve ser. Clube endividado sai da liga e do campeonato.
Enquanto isso, os clubes brasileiros, quebrados, deixaram de formar jogadores. Os que surgem são logo vendidos ao exterior, e o Campeonato Brasileiro se esvai — 12.500 de média de público por jogo, contra 45 mil da Bundesliga, a mais elevada do mundo.
O Mineirazo precisa ser entendido como marco zero de uma reforma brasileira de igual dimensão, passando pela cúpula do esporte e pela recuperação dos clubes e seu enquadramento, enfim, num modelo profissional de administração. Deve-se, inclusive, aproveitar, com este objetivo, a tramitação no Congresso do projeto de renegociação de suas dívidas tributárias.
Ao mesmo tempo, deve-se sepultar a ilusão de que o Brasil tem o monopólio da habilidade e do brilhantismo no futebol. Mito. Nem Pelé deixou de treinar e trabalhar com afinco para desenvolver suas habilidades. Antes de tudo, é preciso reconhecer que fomos ultrapassados por outros países. Pois, sem admitir que existe o problema, ele nunca será resolvido.
O período de 64 anos, de 1950 a 2014, é delimitado por duas tragédias na história do futebol brasileiro. Numa ponta, a perda do que poderia ter sido o primeiro título mundial, no Maracanã, para o Uruguai, e, na outra, a vexaminosa derrota por humilhantes 7 a 1 diante da Alemanha, terça-feira, no Mineirão. Era o penúltimo passo antes de se voltar seis décadas depois ao Maracanã para, enfim, vingar 50.
Ora, o país lutou para sediar a Copa de 2014 com dois objetivos principais: exorcizar aquele fantasma e ser hexacampeão. Não será, e ainda permitiu nova mancha nos 100 anos de seleção brasileira: a mais acachapante derrota nestas dez décadas.
Será infindável a pendenga sobre se o Maracanazo foi ou não maior que o Mineirazo. Mas trata-se de uma discussão tão longa quanto inútil. Os argumentos de lado a lado são vários. Perder um jogo (2 a 1) de decisão de Copa em casa, contra o Uruguai, no qual abriu-se o placar e precisava-se apenas do empate, é difícil esquecer. De outro lado, o vexame do 7 a 1, no Mineirão — sendo que tudo foi resolvido no espaço de apenas seis minutos do primeiro tempo, quando três gols, com diferença média de dois minutos entre eles, liquidaram a partida —, também é um pesadelo para sempre.
A vantagem, hoje, é já se ter passado por tragédia do mesmo tamanho, e ressurgido dos escombros. Não importa se a derrota é igual, menor ou maior que a de 50. Está nas crônicas da época o registro do profundo silêncio de catedral que tomou conta do ainda inacabado Maracanã, enquanto Obdulio Varela e Ghigia comemoravam o bi uruguaio no gramado. De anteontem, nestes tempos de comunicação instantânea e planetária, das transmissões ao vivo por incontáveis ângulos, restaram registrados nos arquivos digitais o choro de crianças no Mineirão e a tristeza nas ruas, antes desertas, em todo o país, à espera da classificação para a concretização, enfim, da vingança de 50, no domingo, no mesmo Maracanã.
Consumada a tragédia de 50, em duas Copas o Brasil ganharia a sua primeira, em 58, seria bicampeão e chegaria a cinco títulos. E, seja qual for o campeão no domingo, a seleção continuará como a mais vitoriosa. Nada que não possa ser soterrado por uma sequência de derrotas nos próximos torneios, caso o futebol brasileiro aceite de forma passiva a visível tendência de decadência e desorganização em que entrou. Porém, depois de 50 ele soube reagir. E não foram poucos os reveses seguintes. Quando tinha times medíocres, e a derrota era esperada, e mesmo em surpresas também dolorosas como em 82, na Espanha, quando o Brasil reuniu uma das melhores seleções de todos os tempos, e perdeu. Ou na final de 98, em Paris, para a França, num apagão cuja centelha foi a mal explicada indisposição de Ronaldo.
É indiscutível que o 7 a 1 tem um peso específico não desprezível. Porém, de nada adiantará buscar culpados individuais, transformar o Fred num Barbosa, o goleiro de 50. Ou algo do tipo. Isso não significa deixar de reconhecer os erros, para não repeti-los. Mas é crucial chegar às raízes das falhas.
O comportamento do time na Copa e, em particular, na semifinal de terça, denuncia incontáveis problemas, derivados de mau planejamento e preparação deficiente, falta de treinamento, problemas táticos, de escalação, desequilíbrio emocional e qualidade discutível de jogador. O choro descontrolado do capitão Thiago Silva antes da disputa por pênaltis contra o Chile, a instabilidade da equipe no segundo tempo do jogo com a Colômbia e a própria incapacidade de reagir ao primeiro gol da Alemanha, marcado por um atacante, com o pé, livre, numa batida de escanteio, falha grave de qualquer defesa, são pontos que, ao serem unidos, compõem uma radiografia que precisa ser analisada, com cuidado, sem paixões.
É preciso aprender com a derrota. Ainda mais esta, trágica. Antes de tudo, entretanto, deve-se fazer a autocrítica de que bravatas, ufanismos, arrogância e autossuficiência sempre são a antessala de perdas sofridas, cedo ou tarde. Estes cacoetes foram observados na comissão técnica, em Felipão e Parreira, ao se declararem favoritos e se dizerem com “a mão na taça”, postura que pesou tanto sobre os jogadores que a psicóloga da delegação teve quase tanto trabalho quanto o médico e o massagista. Nos últimos dias, até a presidente Dilma ensaiou querer usar a Copa como arma político-eleitoral. Primeiro, devido ao êxito do evento em si. Depois, se viesse o hexa, o ataque aos “pessimistas” seria amplificado nos palanques.
O vexame de terça mostrou, também, que não há jeitinho e malandragem que consigam superar a organização e o trabalho duro, competente e de longo prazo. O Brasil tem o exemplo da própria Alemanha, capaz de somar a habilidade individual à disciplina. Para isso, fez profunda reformulação, a partir também de um fracasso: na Eurocopa de 2000, quando o time marcou apenas um gol e foi desclassificado na primeira fase. Como no Brasil, lá futebol também é questão de Estado. O governo fixou dez anos de prazo para a Alemanha voltar à elite mundial. A Federação Alemã construiu 360 centros de formação de jogadores, onde são atendidos 25 mil meninos e meninas, de 9 a 17 anos. Foi preciso, também, reformar a liga de futebol (Bundesliga) e o campeonato, com o enquadramento dos clubes em normas de administração austera, como deve ser. Clube endividado sai da liga e do campeonato.
Enquanto isso, os clubes brasileiros, quebrados, deixaram de formar jogadores. Os que surgem são logo vendidos ao exterior, e o Campeonato Brasileiro se esvai — 12.500 de média de público por jogo, contra 45 mil da Bundesliga, a mais elevada do mundo.
O Mineirazo precisa ser entendido como marco zero de uma reforma brasileira de igual dimensão, passando pela cúpula do esporte e pela recuperação dos clubes e seu enquadramento, enfim, num modelo profissional de administração. Deve-se, inclusive, aproveitar, com este objetivo, a tramitação no Congresso do projeto de renegociação de suas dívidas tributárias.
Ao mesmo tempo, deve-se sepultar a ilusão de que o Brasil tem o monopólio da habilidade e do brilhantismo no futebol. Mito. Nem Pelé deixou de treinar e trabalhar com afinco para desenvolver suas habilidades. Antes de tudo, é preciso reconhecer que fomos ultrapassados por outros países. Pois, sem admitir que existe o problema, ele nunca será resolvido.
11 de julho de 2014
Editorial O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário