Não sei se é verdade e pode não passar de outra invencionice das que circulam na internet, mas já me contaram mais de uma vez que vem sendo aplicado o golpe da multa do lixo zero. A multa do lixo zero é a que o cidadão do Rio de Janeiro paga, se jogar ou juntar lixo em local não destinado a isso, como ruas e calçadas. O golpe da multa do lixo zero é quando um fiscal corrupto lhe comunica que achou, amassado no chão à porta de sua casa, um lixinho que só pode ser seu, já que se trata de um envelope aberto, com seu nome no endereço. Não adianta negar, a ligação é inequívoca. O golpista então propõe um acerto e, se você não topa molhar a mãozinha dele para os festejos de Momo, a multa completa lhe chega depois, ameaçando-o com todas as penas do inferno. Dá para recorrer, mas isto é também tido como pena do inferno.
Até aí nada demais, bem que pode acontecer. Creio consistente com nossa história desde a colônia a noção de que as multas foram sempre criadas com a finalidade de reforçar o orçamento do Estado e, principalmente, para remunerar com mais generosidade a estrutura de fiscalização, ainda que de forma pouco ortodoxa, como no golpe do lixo zero. Um estado cartorial, patrimonialista e inacreditavelmente burocrático tinha que manter, e continua a manter, mecanismos para beneficiar toda essa importante categoria sociopolítica, tão vital quanto os despachantes, agentes que aqui intermedeiam a relação do cidadão com o Estado, que do contrário a burocracia tornaria impossível. E, finalmente, suponho que terá alguma significação estatística a turma do "agrado", que movimenta vastas quantias, recebendo um "por fora" aqui, outro acolá. Conheci gente que ganhava oficialmente muito mal, mas não largava o emprego de jeito nenhum, por causa dos agrados, que constituíam o grosso de sua renda. Deve-se ter muito cuidado com julgamentos precipitados e, antes de condenar, procuremos observar todos os ângulos - eliminar de repente essas coisas e suas interseções poderia render uma grave convulsão social.
Olho aqui as fotos de um bloco imenso, apinhado numa grande avenida, e penso em como deverá andar o negócio das multas, neste carnaval. Talvez não tão bem quanto poderia. O besourinho paranoico que de vez em quando zumbe no meu ouvido me expõe rapidamente um possível progresso para a nossa estrutura de multas, em carnavais vindouros. Claro que, na confusão de um grande bloco, a multa do lixo zero vai ser muito difícil de aplicar, até porque numa aglomeração de gente que bebeu umas e outras, a saúde do multador não estará garantida. Isso deve doer no peito dos que furtam e se locupletam - quanto dinheiro escorrendo pelo ralo, que desperdício de recursos! Razão por que, me garante o besourinho, já haverão de estar coletando estatísticas para usar no próximo ano. É bastante simples. Definem-se algumas categorias estatísticas (lixinho, lixo e lixão, por exemplo) e faz-se um levantamento orientado por elas, em cada local de desfile de cada bloco registrado. Aí, no carnaval de 2015, não vai haver esse problema. O bloco poderá pagar, antecipadamente e em parcelas, até com um possível desconto, sua estimativa de multas de lixo. E, se o pessoal quiser bancar o engraçadinho e ultrapassar sua cota, paga outra multa, dura lex, sed lex.
Imagino que haverá um carnê. O proverbial bom humor carioca achará um nome para ele, talvez Carnê Hiena, considerando suas origens. E a ideia de multar antecipadamente os blocos se revelará boa demais para não ser estendida a outras frentes e não duvido que, aterrorizado pelas garras da lei e sem poder dormir pensando em suas transgressões, o cidadão tope fazer um carnê hiena individual, que lhe trará inúmeras vantagens. Em primeiro lugar, comodidade, porque as multas serão automaticamente abatidas da conta do carnê, sem necessidade de mexer-se um dedo. Em segundo lugar, economia, porque o pagamento integral, logo no começo do ano, renderá um substancial desconto e, mais ainda, as multas abatidas diretamente do carnê também terão desconto. Além disso, o planejamento financeiro público será grandemente facilitado, com o simples uso da habitual equação R=A-(P+B), em que R é a receita, A é a arrecadação, P é a propina e B é o custo burocrático, sem risco de grandes erros. Como é bem possível que, seduzido pelo dinheiro das multas, um alegre aí qualquer proponha que se possa dedurar casos de lixo pelo Disque-Denúncia, talvez seja mesmo prudente pensar num carnê hiena pessoal.
E, finalmente, podemos cravar mais um ponto para o Brasil, nessa questão de multas. A condenação dos réus do mensalão ao pagamento de multas fez criar-se todo um novo horizonte penal, com o surgimento das vaquinhas para pagar o que os condenados devem. Não se pode negar que é uma inovação e também prevejo que terá ramificações. A primeira destas deverá ser o surgimento de corretores de vaquinhas. Nada mais adequado, para exemplificar nosso engenho jurídico, bem como o empreendedorismo nacional. Para ter sua multa paga através de uma vaquinha, o sujeito não precisará, necessariamente, dispor de prestígio político ou social, não é democrático. Um bom corretor de vaquinhas quebraria esse galho, mediante uma comissão razoável.
Mesmo quando não houver multa envolvida, o Estado poderá arrecadar, se pegar a moda de transferir as penas. Muita justiça social com redistribuição de renda poderá ser feita por essa via. Por exemplo, Fulano é rico, foi condenado a dez anos de cadeia e quer pagar a Sicrano, que é pobre, para cumprir a pena no lugar dele. O Estado então estabelece um mínimo para o rico pagar, uma parte substancial da renda dele. E o dinheiro vai para o pobre, mas não sem antes o imposto de renda descontar 37% do bruto e ser cobrada a elevadíssima taxa de terceirização de pena. Nós ainda chegamos à perfeição.
Até aí nada demais, bem que pode acontecer. Creio consistente com nossa história desde a colônia a noção de que as multas foram sempre criadas com a finalidade de reforçar o orçamento do Estado e, principalmente, para remunerar com mais generosidade a estrutura de fiscalização, ainda que de forma pouco ortodoxa, como no golpe do lixo zero. Um estado cartorial, patrimonialista e inacreditavelmente burocrático tinha que manter, e continua a manter, mecanismos para beneficiar toda essa importante categoria sociopolítica, tão vital quanto os despachantes, agentes que aqui intermedeiam a relação do cidadão com o Estado, que do contrário a burocracia tornaria impossível. E, finalmente, suponho que terá alguma significação estatística a turma do "agrado", que movimenta vastas quantias, recebendo um "por fora" aqui, outro acolá. Conheci gente que ganhava oficialmente muito mal, mas não largava o emprego de jeito nenhum, por causa dos agrados, que constituíam o grosso de sua renda. Deve-se ter muito cuidado com julgamentos precipitados e, antes de condenar, procuremos observar todos os ângulos - eliminar de repente essas coisas e suas interseções poderia render uma grave convulsão social.
Olho aqui as fotos de um bloco imenso, apinhado numa grande avenida, e penso em como deverá andar o negócio das multas, neste carnaval. Talvez não tão bem quanto poderia. O besourinho paranoico que de vez em quando zumbe no meu ouvido me expõe rapidamente um possível progresso para a nossa estrutura de multas, em carnavais vindouros. Claro que, na confusão de um grande bloco, a multa do lixo zero vai ser muito difícil de aplicar, até porque numa aglomeração de gente que bebeu umas e outras, a saúde do multador não estará garantida. Isso deve doer no peito dos que furtam e se locupletam - quanto dinheiro escorrendo pelo ralo, que desperdício de recursos! Razão por que, me garante o besourinho, já haverão de estar coletando estatísticas para usar no próximo ano. É bastante simples. Definem-se algumas categorias estatísticas (lixinho, lixo e lixão, por exemplo) e faz-se um levantamento orientado por elas, em cada local de desfile de cada bloco registrado. Aí, no carnaval de 2015, não vai haver esse problema. O bloco poderá pagar, antecipadamente e em parcelas, até com um possível desconto, sua estimativa de multas de lixo. E, se o pessoal quiser bancar o engraçadinho e ultrapassar sua cota, paga outra multa, dura lex, sed lex.
Imagino que haverá um carnê. O proverbial bom humor carioca achará um nome para ele, talvez Carnê Hiena, considerando suas origens. E a ideia de multar antecipadamente os blocos se revelará boa demais para não ser estendida a outras frentes e não duvido que, aterrorizado pelas garras da lei e sem poder dormir pensando em suas transgressões, o cidadão tope fazer um carnê hiena individual, que lhe trará inúmeras vantagens. Em primeiro lugar, comodidade, porque as multas serão automaticamente abatidas da conta do carnê, sem necessidade de mexer-se um dedo. Em segundo lugar, economia, porque o pagamento integral, logo no começo do ano, renderá um substancial desconto e, mais ainda, as multas abatidas diretamente do carnê também terão desconto. Além disso, o planejamento financeiro público será grandemente facilitado, com o simples uso da habitual equação R=A-(P+B), em que R é a receita, A é a arrecadação, P é a propina e B é o custo burocrático, sem risco de grandes erros. Como é bem possível que, seduzido pelo dinheiro das multas, um alegre aí qualquer proponha que se possa dedurar casos de lixo pelo Disque-Denúncia, talvez seja mesmo prudente pensar num carnê hiena pessoal.
E, finalmente, podemos cravar mais um ponto para o Brasil, nessa questão de multas. A condenação dos réus do mensalão ao pagamento de multas fez criar-se todo um novo horizonte penal, com o surgimento das vaquinhas para pagar o que os condenados devem. Não se pode negar que é uma inovação e também prevejo que terá ramificações. A primeira destas deverá ser o surgimento de corretores de vaquinhas. Nada mais adequado, para exemplificar nosso engenho jurídico, bem como o empreendedorismo nacional. Para ter sua multa paga através de uma vaquinha, o sujeito não precisará, necessariamente, dispor de prestígio político ou social, não é democrático. Um bom corretor de vaquinhas quebraria esse galho, mediante uma comissão razoável.
Mesmo quando não houver multa envolvida, o Estado poderá arrecadar, se pegar a moda de transferir as penas. Muita justiça social com redistribuição de renda poderá ser feita por essa via. Por exemplo, Fulano é rico, foi condenado a dez anos de cadeia e quer pagar a Sicrano, que é pobre, para cumprir a pena no lugar dele. O Estado então estabelece um mínimo para o rico pagar, uma parte substancial da renda dele. E o dinheiro vai para o pobre, mas não sem antes o imposto de renda descontar 37% do bruto e ser cobrada a elevadíssima taxa de terceirização de pena. Nós ainda chegamos à perfeição.
02 de março de 2014
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S. Paulo
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