Meus primeiros heróis vieram dos gibis. Além dos tsunâmicos personagens do Disney, não desgrudava do Mandrake e do Fantasma.
Pouco me importava com o que considerava pequenos detalhes: o criado Lothar e os pigmeus da tribo Bandar, por exemplo. Eram coadjuvantes sem peso nas histórias centrais.
Também não reparava, imagina !, na estrutura familiar, muito esquisita, do Pato Donald, e na origem supersticiosa da fortuna do tio Patinhas.
Era um mundo sem tons cinza.
Mocinhos impecavelmente galantes, honestos, generosos, valentes, despojados. Vilões siderúrgicos: viviam para dominar, tiranizar, agredir, roubar, conspirar.
Em ambos os casos, por obra e graça do Espírito Santo, por punições ou privilégios genéticos. O que poderia um Menino entender de nuances psicológicas ou identidades de classe ? Melhor viver num universo onírico, de Fla-Flus plasmados em quadrinhos, do que encarar as sopas de abóbora.
E então vieram os anos 70. Não sobrou pedra sobre pedra. O chileno Ariel Dorfman escreveu o clássico Para ler o Pato Donald. Com ele, aprendemos que “o papel da literatura infantil na sociedade capitalista, desenvolvida ou não, é contribuir para que a criança interprete as contradições da realidade – como o autoritarismo, a pobreza e a desigualdade – como naturais.”
Conta-se, a esse propósito, uma história deliciosa, que jamais descobri se verdadeira. Os responsáveis pelas edições Disney na Itália resolveram transgredir a norma naturalizadora.
Criaram uma história em que os irmãos Metralha, sempre à caça da moeda número 1 do tio Patinhas (suposta fonte da riqueza do pato sovina), têm uma ideia luminosa. Percebem que aquele talismã era uma cortina de fumaça.
A verdadeira origem da fortuna do Patinhas eram seus bancos, fábricas, fazendas.
Em suma: os meios de produção e distribuição, a extração de mais-valia. Dos neurônios à ação. Os Metralha se organizam e, aos poucos, se apoderam do patrimônio físico do Patinhas, que, ato contínuo, empobrece.
A moedinha xamânica não passava de patacoada ! Resultado da ousadia: a edição foi rapidamente recolhida das bancas.
QUEM ERA LOTHAR?
O olhar crítico não parou por aí. Quem era Lothar ? Um príncipe africano, que renunciara à nobreza de seus ancestrais, à sua cultura, a seus valores mais caros, para servir ao homem branco. Um homem branco que, à semelhança do tio Patinhas, é rico, mas não há pistas para a origem e a manutenção da riqueza.
É rico … porque é. Sua vida amorosa é deserotizada, como costuma acontecer com os heróis dos quadrinhos. Todos chegados a uma paixão platônica.
O colonialismo é tão explícito quanto no domínio do Fantasma sobre a tribo Bandar. Os pigmeus têm uma adoração incondicional pelo Espírito que Anda, que acreditam imortal.
O Fantasma usa essa crença para manter a dominação sobre aqueles africanos e, através dela, estende a submissão aos demais povos locais. Interessante notar como o Fantasma, entre outros, foi “convocado” pelo exército americano, durante a Segunda Guerra Mundial, para combater a invasão japonesa na região do Pacífico.
Em gibis dos anos 40, os orientais eram retratados como idiotas de óculos, presas fáceis das zarabatanas dos pigmeus e da astúcia invencível do Fantasma. A guerra ideológica, montada em ignorância, escancarava um mal-disfarçado racismo. Pelas barbas do profeta ! Que heróis, hem ?
UM PESO GALO
Fora das bancas de jornais, o Menino admirou um peso galo. Estranhou muito o nome. Peso galo significaria um boxeador com crina ? Esporas ? Cantava de madrugada ?
Quando via Eder Jofre nos ringues, no entanto, o que importava eram as sucessivas vitórias.
Engraçado, não se compadecia dos derrotados, muitas vezes desmaiados depois de surras impiedosas. Tempos depois, veio Muhammad Ali. Um dançarino que esmurrava.
Uma elegância que contrastava com a potência de golpes que machucavam e mutilavam. No auge da fama, recusou-se a servir na guerra do Vietnã e foi condenado à prisão.
“Que razão tenho para atirar contra uns caras que não me chamam de crioulo (nigger) e não estupraram ninguém da minha família ?”, perguntou. Sabia o que estava dizendo.
O racismo norte-americano nadava de braçada. Menos de 20 anos antes, durante a Segunda Guerra Mundial, o preconceito contra soldados negros era feroz no exército ianque.
Ficava a pergunta: como é que uma luta, cuja finalidade é “apagar” o adversário, desligar suas funções cerebrais, pode ser considerada um esporte?
VERSÃO DO COLISEU
Saímos do ringue e entramos no octógono. Aos socos do box, se juntaram os pontapés, joelhadas, caneladas e cotoveladas do MMA. Nesta versão moderna e globalizada do Coliseu romano, não sei o que é mais abjeto: a carnificina selvagem que acontece na arena, os urros descontrolados do público pedindo sangue ou a transmissão ufanista de locutores hipnotizados por cifrões.
Mesmo com imagens que remetem à nossa ancestralidade animal, mercadores da dor e do sofrimento insistem em incluir o MMA na categoria de esporte. O culto às celebridades instantâneas, como Anderson Silva, cria nas comunidades pobres a ilusão de que a pancadaria é atalho para a fama e a riqueza.
Os brutamontes, cercados de seguranças e marqueteiros, visitam as periferias divulgando seu “trabalho” e abrindo academias. Treinam a molecada na arte de quebrar a cara do outro, alegando que, desta forma, “afastam os menores do crime e do abandono”. Como se não existissem alternativas para canalizar a agressividade que cada um de nós carrega desde o berço.
Os praticantes sofrem de males neurológicos causados por pancadas frequentes na cabeça. Tremores e Mal de Parkinson são comuns em boxeadores. Ossos submetidos a golpes sucessivos e regulares ficam fragilizados, o que pode ter contribuído para as fraturas de Anderson Silva.
Foram mostrados de todos os ângulos e velocidades, na vulgar espetacularização da violência a que estamos nos habituando.
Como bem observou Ricardo Melo na Folha de São Paulo, num país onde as rinhas de galo são proibidas, é um absurdo que o MMA seja uma prática legal. Fosse vivo, o doutor Sobral Pinto entraria com uma ação por descumprimento da lei de proteção aos animais …
PATRIOTAGEM
Todas essas empulhações sanguinárias são narradas com a patriotagem de praxe. Como se a certidão de nascimento dignificasse a brutalidade profissionalizada. O ufanismo é uma praga nacional. Agora mesmo, a presidente Dilma bateu boca com o presidente da Fifa, garantindo que o Brasil fará “a Copa das Copas”. Como se não bastasse e de olho gordo nas eleições deste ano, acrescentou que “todos os que vierem ao Brasil serão bem recebidos, porque somos alegres e acolhedores”.
Qualquer brasileiro bem informado sabe que essa parolagem não passa de bravata. Sem entrar na tolice de “Copa das Copas” (o que será isso ?), como é que, em pleno século XXI, alguém ainda cai na lorota do povo cordial? Será que essa cordialidade explica o enorme aparato de segurança que está sendo montado para tranquilizar os que virão e, claro, serão “bem recebidos”? As ameaças devem vir de criminosos infiltrados do exterior …
Somos “alegres e acolhedores”? Quem são este “somos”? Isso vale para os prisioneiros do complexo de Pedrinhas, no Maranhão, que decapitaram três rivais e filmaram o horror? Valerá para os policiais que sequestraram e mataram o pedreiro Amarildo, no Rio?
E para os policiais que reprimiram com extrema violência os manifestantes nas jornadas de junho do ano passado? Fico por aqui e vou correndo tomar um Sonrisal.
12 de janeiro de 2014
Jacques Gruman
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