"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 16 de novembro de 2013

ATÉ QUE AS IMAGENS NOS SEPAREM


O Cinema Novo conquistava para nós o direito à qualidade, já se podia dizer ‘eu te amo’ no cinema brasileiro



Quando eu era adolescente, havia no país a ideia generalizada de que o Brasil jamais produziria bons filmes. Uma cinematografia nacional de respeito era coisa para quem vivia a modernidade, dominava a tecnologia, produzia coisas para um público ilustrado como não era o nosso. A ausência de um cinema de qualidade era a marca mais nítida da incompetência crônica do país, de sua inferioridade em relação ao resto do mundo.

Um jornalista chegou a escrever que a língua portuguesa não servia para cinema. “É impossível alguém dizer na tela ‘eu te amo’, sem que o público caia na gargalhada”, escrevia ele.

Foi a geração do Cinema Novo que impôs um conceito nacional de qualidade que, consagrado internacionalmente, tornou-se no mínimo polêmico entre nós. O Cinema Novo conquistava para nós o direito à qualidade, já se podia dizer “eu te amo” no cinema brasileiro.

O passo seguinte seria a conquista do público, durante a existência da Embrafilme, empresa estatal através da qual se produziram, na passagem da década de 1970 para os 80, filmes como “Xica da Silva”, “Dona Flor e seus dois maridos”, “Eu te amo”, “A dama do lotação”, “Guerra conjugal”, “Eles não usam black tie”, “O amuleto de Ogum”, “Pixote” e muitos outros. Esse andar da carruagem foi interrompido pela crise econômica que levou o Brasil à moratória e empobreceu a população, no fim dos anos 1980. E pela ascensão do presidente Collor de Mello, o carrasco da cultura brasileira.

Hoje, assistimos ao renascimento do cinema brasileiro, que começou com a Lei do Audiovisual de 1993, criada durante o governo Itamar Franco, permitindo a volta da produção nacional. Essa recuperação é chamada de “retomada”, na esperança de que não seja apenas mais um ciclo que acabe daqui a pouco, mas a inauguração do cinema como atividade permanente no país.

Segundo a Ancine, até o fim de 2013 o Brasil terá produzido 106 filmes de longa-metragem, o que será um recorde mesmo se compararmos o número com os do auge da Embrafilme. Não somos obrigados a gostar de todos esses filmes. Que cinematografia no mundo é capaz de produzir mais do que 10% de grandes filmes por ano? Vemos 60 bons filmes americanos por ano, dos 600 que eles produzem? Ou 25 dos 250 franceses? Temos até mais chance com os nossos prováveis dez, que podem ser muito mais.

Antes de fazermos um filme, o cinema é um sonho. Quando o estamos fazendo com dificuldade, parece um pesadelo. Uma vez o filme pronto para ser lançado, caímos na real. A vida continua sendo mais importante que o sonho, mas a vantagem do filme é que no cinema temos cortes e elipses, enquanto que a vida é feita de um único e interminável plano sequência linear, cheio de excessivos tempos mortos. Mas não precisamos pagar o preço de uma vida por um filme.

Pode ser que estejamos discutindo um passado que ainda não passou. Não só a televisão consolidada, como também a tecnologia digital, a grande rede, a produção audiovisual pós-industrial, tudo isso pode estar tornando o cinema, como o conhecemos hoje, um objeto de museu ou de galeria chique. Quando vejo reportagens instantâneas sobre o tufão nas Filipinas, filmes realizados por rapazes durante as manifestações de rua, programas na internet do tipo “Porta dos fundos” ou do francês Bref, longa-metragens destinados a telas que não são mais as das salas de cinema, me pergunto ansioso pelo futuro do cinema e do audiovisual.

Mas o cinema existe, não é à toa que representa hoje a terceira economia de exportação dos Estados Unidos, a maior potência econômica do mundo, vendendo para o mundo inteiro, junto com os filmes, uma mitologia, um comportamento, um modo de viver. Além de produtos da nação de origem, é claro.

Os filmes que têm feito sucesso são os que nosso público quer ver, os que fizeram de 2013 um ano excepcional para a bilheteria do cinema brasileiro. Nem armados de metralhadora podemos obrigá-lo a ver outros filmes mais a nosso gosto. A outra solução seria trocarmos de povo, importarmos uns dois milhões de franceses ou coisa parecida para substituir nosso público. Mas também não ia dar certo — no cinema da França e dos outros países, a situação é a mesma daqui.

Porém, assim como temos o dever de respeitar o gosto popular, temos também o direito de tentar mudá-lo com novas histórias, novas linguagens, novos modos de fazer. E esses novos filmes, sim, precisam de leis e decretos para lutar pelo futuro, uma atenção do estado que deve atender a todos os cidadãos, mesmo os que são minoritários.

Ainda que não gostemos do particular (os filmes), não podemos deixar de comemorar o geral (o sucesso do cinema brasileiro), e trabalhar pela sua diversidade, para que todas as telas sejam ocupadas por toda espécie de filme, de todas as tendências. Até que, quem sabe, a humanidade se canse de tanta imagem à sua disposição e decida não precisar mais de audiovisual.

 
16 de novembro de 2013
Cacá Diegues, O Globo

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