Primeira tarefa é compreender que preside um país inteiro, não uma parte
Passei uma semana em Washington, em um seminário, e acompanhava flashes da política americana. O assunto do momento eram os tuítes de Trump dizendo que algumas deputadas democratas, de famílias de imigrantes, deviam “voltar para seus países quebrados e infestados pelo crime”. A partir daí, o bate boca infinito. Gente respeitável chamou o presidente de racista e pediu seu impeachment. Do outro lado, a multidão gritava “mande-a de volta”, no comício seguinte de Trump.
De volta ao Brasil, a sensação incômoda. Eventos distintos com uma lógica constrangedoramente parecida. O mundo político discute o uso do termo “paraíba”, pelo presidente, e se ocupa com as provocações de sempre de Bolsonaro, que vão de uma opinião irrelevante sobre o filme “Bruna Surfistinha” à sua (quase inacreditável) insistência em emplacar o filho como embaixador nos EUA.
De fato, há um problema aí. Em primeiro lugar, a lógica da guerra cultural continua dando as cartas em nosso jogo político. O Congresso pode discutir a reforma tributária, a MP da liberdade econômica ou as regras para o financiamento eleitoral, mas o que parece mobilizar a opinião pública é a futrica do dia sobre se o presidente foi ou não aplaudido em sua ida ao Nordeste ou seu último quiproquó com Gregorio Duvivier ou algum divergente.
O presidente é o principal responsável por esta lógica, em que pese esteja longe de ser o único. Não há o que estranhar nisso. Bolsonaro é um produto da guerra cultural. É neste terreno que ele foi eleito. Seu sucesso e seu estilo de fazer política são, em grande medida, o resultado de um país que já vinha polarizado há muito tempo. Apenas inverteu a mão.
É possível ir um pouco além e especular que este dualismo entre os temas “sérios” da política e o universo da estridência cultural seja uma marca da democracia atual. O que nos leva a um paradoxo: os temas menos relevantes para a vida real das pessoas são os que obtêm audiência e terminam por pautar o mundo político. Nunca é demais lembrar: o tuíte mais popular lançado por Bolsonaro foi precisamente o mais inútil e bizarro: o que é golden shower?
Em boa medida, isto sempre foi assim. Os cidadão comum tem pouco ou nenhum poder na formulação do novo mercado do gás, no programa de privatizações e nos temas complexos da política pública. E nenhuma responsabilidade na sua condução. Por que diabos alguém perderia um chope com os amigos para estudar este tipo de coisa?
O que de fato há de novo, hoje em dia, é que o cidadão comum ganhou voz ativa na política. Ele possui um teclado e uma câmara à sua disposição e pode dizer o que lhe dá na telha, sem filtros, todos os dias. E de alguma maneira passou a dar o tom da política.
O líder populista é o tipo que aprendeu mais rápido a lidar com este universo caótico e não por acaso está em alta nas democracias. É o caso de Bolsonaro. Sua lógica parece clara: vivemos em uma sociedade polarizada, sem consenso possível, e a estratégia política viável é dobrar a aposta na própria polarização. Neste plano, é ótimo que o governador da Bahia não vá na inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista e que tudo vire um bate-boca na internet. E está longe de ser um mau negócio dar uma declaração esdrúxula e ser chamado de “fascista” pela oposição de sempre.
Bolsonaro não apenas funciona como o ilusionista chefe, em nossa guerra cultural, como atrai seus opositores para o mesmíssimo jogo. O sistema político se retroalimenta da polarização. E nem de longe imaginem que a boa e velha imprensa profissional escapa desse cenário.
Quem sabe seja esta a cara da nova democracia e estejamos, enfim, todos felizes. O presidente no seu figurino de combate, a oposição fazendo as vezes de guardiã da democracia, enquanto o mundo digital se diverte.
O ponto é que isto tem um limite. Nossa democracia não está em risco, mas sua eficiência para produzir consensos mínimos e produzir decisões difíceis certamente está. Se todos são responsáveis por mudar os termos do jogo político, a verdade é que a maior responsabilidade cabe ao presidente. Ele é o ator central da dinâmica política, sendo sua primeira tarefa compreender que não preside um pedaço do país, mas um país por inteiro.
Não se trata propriamente de uma tarefa simples, mas a responsabilidade é intransferível. Ela é sua, presidente.
25 de julho de 2019
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Passei uma semana em Washington, em um seminário, e acompanhava flashes da política americana. O assunto do momento eram os tuítes de Trump dizendo que algumas deputadas democratas, de famílias de imigrantes, deviam “voltar para seus países quebrados e infestados pelo crime”. A partir daí, o bate boca infinito. Gente respeitável chamou o presidente de racista e pediu seu impeachment. Do outro lado, a multidão gritava “mande-a de volta”, no comício seguinte de Trump.
De volta ao Brasil, a sensação incômoda. Eventos distintos com uma lógica constrangedoramente parecida. O mundo político discute o uso do termo “paraíba”, pelo presidente, e se ocupa com as provocações de sempre de Bolsonaro, que vão de uma opinião irrelevante sobre o filme “Bruna Surfistinha” à sua (quase inacreditável) insistência em emplacar o filho como embaixador nos EUA.
De fato, há um problema aí. Em primeiro lugar, a lógica da guerra cultural continua dando as cartas em nosso jogo político. O Congresso pode discutir a reforma tributária, a MP da liberdade econômica ou as regras para o financiamento eleitoral, mas o que parece mobilizar a opinião pública é a futrica do dia sobre se o presidente foi ou não aplaudido em sua ida ao Nordeste ou seu último quiproquó com Gregorio Duvivier ou algum divergente.
O presidente é o principal responsável por esta lógica, em que pese esteja longe de ser o único. Não há o que estranhar nisso. Bolsonaro é um produto da guerra cultural. É neste terreno que ele foi eleito. Seu sucesso e seu estilo de fazer política são, em grande medida, o resultado de um país que já vinha polarizado há muito tempo. Apenas inverteu a mão.
É possível ir um pouco além e especular que este dualismo entre os temas “sérios” da política e o universo da estridência cultural seja uma marca da democracia atual. O que nos leva a um paradoxo: os temas menos relevantes para a vida real das pessoas são os que obtêm audiência e terminam por pautar o mundo político. Nunca é demais lembrar: o tuíte mais popular lançado por Bolsonaro foi precisamente o mais inútil e bizarro: o que é golden shower?
Em boa medida, isto sempre foi assim. Os cidadão comum tem pouco ou nenhum poder na formulação do novo mercado do gás, no programa de privatizações e nos temas complexos da política pública. E nenhuma responsabilidade na sua condução. Por que diabos alguém perderia um chope com os amigos para estudar este tipo de coisa?
O que de fato há de novo, hoje em dia, é que o cidadão comum ganhou voz ativa na política. Ele possui um teclado e uma câmara à sua disposição e pode dizer o que lhe dá na telha, sem filtros, todos os dias. E de alguma maneira passou a dar o tom da política.
O líder populista é o tipo que aprendeu mais rápido a lidar com este universo caótico e não por acaso está em alta nas democracias. É o caso de Bolsonaro. Sua lógica parece clara: vivemos em uma sociedade polarizada, sem consenso possível, e a estratégia política viável é dobrar a aposta na própria polarização. Neste plano, é ótimo que o governador da Bahia não vá na inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista e que tudo vire um bate-boca na internet. E está longe de ser um mau negócio dar uma declaração esdrúxula e ser chamado de “fascista” pela oposição de sempre.
Bolsonaro não apenas funciona como o ilusionista chefe, em nossa guerra cultural, como atrai seus opositores para o mesmíssimo jogo. O sistema político se retroalimenta da polarização. E nem de longe imaginem que a boa e velha imprensa profissional escapa desse cenário.
Quem sabe seja esta a cara da nova democracia e estejamos, enfim, todos felizes. O presidente no seu figurino de combate, a oposição fazendo as vezes de guardiã da democracia, enquanto o mundo digital se diverte.
O ponto é que isto tem um limite. Nossa democracia não está em risco, mas sua eficiência para produzir consensos mínimos e produzir decisões difíceis certamente está. Se todos são responsáveis por mudar os termos do jogo político, a verdade é que a maior responsabilidade cabe ao presidente. Ele é o ator central da dinâmica política, sendo sua primeira tarefa compreender que não preside um pedaço do país, mas um país por inteiro.
Não se trata propriamente de uma tarefa simples, mas a responsabilidade é intransferível. Ela é sua, presidente.
25 de julho de 2019
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Folha de SP
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