RESUMO Figura de destaque na militância estudantil durante a ditadura militar, o ex-ministro do governo Lula voltou à prisão na semana passada, desta vez sob suspeita de ter recebido propinas de empreiteiras.
Cumprindo pena em regime domiciliar após caso do mensalão, José Dirceu, 69, parece distante do jovem preso em 1968.
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É bom conversar com José Dirceu. Ele analisa a conjuntura à maneira de Fernando Henrique Cardoso, que enraíza querelas brasilienses no solo mundial.
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É bom conversar com José Dirceu. Ele analisa a conjuntura à maneira de Fernando Henrique Cardoso, que enraíza querelas brasilienses no solo mundial.
Como Delfim Netto, pensa primeiro em objetivos nacionais e só depois na casta dos profissionais da política.
À semelhança de Fernando Haddad, é realista e evita lero-lero numa conversa a dois.
O ex-ministro compartilha com Valério Arcary a cicatriz de quem esteve com as massas em movimento: o dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado tem tatuagens da Revolução dos Cravos na psique; o militante preso na segunda-feira passada traz na pele queimaduras dos incêndios de 68.
O próprio José Dirceu abriu a porta da mesma casa onde a polícia foi buscá-lo nesta semana. Era uma manhã de domingo do fim do ano passado. Estava de calção azul, camiseta vermelha e calçava chinelos. Rijo e bronzeado, parecia mais saudável do que nas fotos dos jornais, nas quais era flagrado indo para o trabalho. Apresentou-me Simone Pereira, sua quarta companheira, e lhe fez um afago no rosto.
Atravessamos o saguão, duas salas sombrias, saímos para o sol raivoso de Brasília e nos sentamos no terraço, à beira do jardim, da piscina e do salão de ginástica. Logo apareceu Maria Antônia, sua filha de quatro anos. Ela recebeu esse nome em homenagem à rua paulistana onde Dirceu teve o seu batismo político.
A menina estava com uma engenhoca eletrônica que emitia silvos insistentes. O pai lhe disse que ficasse um pouco mais longe, mas Maria Antônia se aninhara a seu lado e só saiu quando quis.
Ele conversou primeiro sobre o PT. Falou que, mesmo com a vitória recente de Dilma Rousseff, haveria uma debandada nos quadros e na base do partido. A Lava Jato não cheirava bem, e lhe dava a impressão de causar calafrios em possíveis candidatos pela legenda. Aparentemente, a investigação não o alarmava.
"Já reviraram minhas contas bancárias, meus telefonemas e declarações de renda", afirmou. "Nunca encontraram nada. Tenho uma consultoria, presto serviços para empresas e recolho impostos." Durante o encontro, que se estendeu até o meio da tarde, Dirceu não tocou em álcool, proibido no regime de prisão domiciliar: "Não dou mole de jeito nenhum".
O governo recém-reeleito lhe parecia velho, exausto, sem rumo. "O PT sofrerá uma derrota de proporções históricas nas eleições municipais", vaticinou. Ele nunca se deu bem com Dilma. Chamou-a de "camarada de armas" no discurso de despedida no Congresso, mas intramuros a critica desde sempre.
Questionado sobre o que faria se voltasse ao poder, fez uma longa peroração, coalhada de cifras, sobre a vocação do Brasil na América Latina: construir estradas, aeroportos, usinas, linhas de ferro, portos, a infraestrutura inteira do continente. Não disse palavra sobre desigualdade, classes, lucros e interesses nacionais contraditórios, muito menos socialismo.
GUINADA
Sem transição, como lhe é comum, mudou de assunto e deu uma guinada abrupta à esquerda: disse que trabalharia para o PT apoiar a candidatura à prefeitura carioca de Marcelo Freixo, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). "O Rio é a única grande cidade brasileira com garra para eleger um prefeito de esquerda", disse (ignorando a eleição do petista Haddad em São Paulo) enquanto checava o celular, deitado na mesa à frente, gesto que repetia de cinco em cinco minutos.
Há dez anos, Dirceu tivera papel preponderante na expulsão do PT de ativistas que viriam a criar o PSOL, a começar por Luciana Genro. Antes mesmo, na década de 1990, agira com mão pesada para que a esquerda não concorresse ao governo do Rio. O candidato em potencial era Vladimir Palmeira, que não só pertencia ao PT como se formara em radicalismo na turma de 1968. Ele tinha a sustentação firme da seção fluminense do partido no Rio, mas a direção nacional –leia-se: Lula e José Dirceu– impôs o voto em Anthony Garotinho. Deu no que deu. O celular não tocou nenhuma vez.
"As pessoas mudam, e os líderes políticos também", disse-me Valério Arcary, pedindo desculpas pelo clichê. "O José Dirceu de 1980 e o de 2015 não são a mesma pessoa."
O líder do PSTU ficou boquiaberto com o relato, publicado na terça-feira pela Folha, de que Dirceu se ajoelhara diante de uma imagem de Nossa Senhora.
Eles conviveram na década de 1990, quando integraram a comissão executiva nacional do PT. Ainda que tivessem posições conflitantes, davam-se bem. Dirceu fora preso e banido na ressaca de 1968. Passara anos em Cuba, vivera clandestino no interior do Paraná, onde abandonou política, e chegara relativamente tarde ao Partido dos Trabalhadores. Defendia as posições de Fidel Castro e de Cuba.
Já Arcary morava em Lisboa quando estourou a Revolução dos Cravos, em 1974. Voltou ao Brasil anos depois e foi um dos fundadores da Convergência Socialista, grupo trotskista cujos militantes se filiaram ao PT para cooptar novos adeptos. Ele se lembra de várias virtudes de Dirceu: "Era assertivo, não se metia em intrigas, acreditava num projeto, comprava a discussão política e a fazia às claras".
Ou seja, era quase o contrário de Lula e dos sindicalistas que o seguiam. O presidente do PT relutava em divergir frontalmente, tentava conciliar o inconciliável e volta e meia ocultava o que de fato pensava.
Dirceu e Lula tinham deficits semelhantes: não escreviam e nunca estiveram em minoria no partido. O político que escreve ordena as ideias; estar em minoria é didático, fortalece quem tem princípios e paciência.
Um belo dia, as virtudes de José Dirceu se voltaram contra Arcary. Foi quando o movimento pela derrubada de Fernando Collor ganhou corpo, em 1992. Manifestações continuadas juntavam centenas de milhares de pessoas. O presidente estava por um fio, mas o mundo político, jurídico e empresarial não chegara a um acordo quanto ao que fazer.
A Convergência Socialista defendia a derrubada de Collor, mas não queria que o vice, Itamar Franco, tomasse posse no lugar – por não ter sido eleito e por defender o programa liberal do titular. Seu objetivo era seguir com as passeatas e atos públicos até que se abrisse uma crise revolucionária.
José Dirceu partiu para cima da Convergência. Defendeu que a organização não tivesse vida independente e o seu jornalzinho semanal fosse proibido. "Quero ser secretário-geral do PT contra a palavra de ordem 'fora Collor'", repetia. No seu raciocínio, o partido deveria esperar até 1994, vencer as eleições e só então entrar no Planalto. Não deu outra: a direção do partido ficou com Dirceu, e milhares de trotskistas foram expulsos.
O PT tornou-se uma organização eleitoral. Arcary não guarda mágoa. "Dirceu optou por uma política e a defendeu com lealdade, sem dar golpes baixos", disse ele. O PT não chegou ao poder em 1994 nem quatro anos depois. Empalmou o Planalto só em 2002, com José Dirceu na condição de hiperministro e candidato óbvio à sucessão de Lula.
As mutações de Dirceu e do PT não se deram num buraco negro a-histórico. O "big bang" do processo foi a queda do Muro de Berlim. Desmoronou o "socialismo real" (que de socialismo não tinha nada), com o qual boa parte da esquerda latino-americana cultivava relações ambíguas. Esboroaram com ele a via insurrecional para a tomada do poder e a perspectiva de revolucionar a sociedade.
A vaga eleitoralista, com a adoção de um programa palatável à ordem do capital, pôs em polvorosa a Frente Sandinista de Daniel Ortega, na Nicarágua, os Tupamaros de José Mujica, no Uruguai, e o PT de Lula e José Dirceu.
Os três partidos deixaram de falar em socialismo até nos dias de festa, como mandava a etiqueta social-democrata. Vieram os showmícios.
Mesmo o róseo reformismo feneceu. Ele deu lugar às ditas políticas compensatórias, mais ao gosto dos poderes centrais. Não por acaso Obama disse que Lula era "o cara", o "político mais popular na Terra".
A transfiguração foi testemunhada por Frei Betto. Ele conheceu José Dirceu nos idos de 1968. Estudava antropologia na USP da Maria Antônia, teologia no convento dos dominicanos, nas Perdizes, e era repórter da "Folha da Tarde", para a qual cobria o movimento estudantil. "Foi o ano em que não dormi", disse-me Betto.
Conheceram-se melhor na ocasião em que o estudante se refugiou no convento. Aproximaram-se mais quando aderiram à Aliança Libertadora Nacional, a ALN de Carlos Marighella. A década de prisões e exílios os separou. Tornaram a se encontrar no início dos anos 1980. Por achar que a esquerda consistia de sabichões que queriam manipulá-lo, Lula a evitava. Mas gostava de Betto por ser frade e fazer parte da Pastoral Operária. Foi ele quem apresentou José Dirceu a Lula.
FOME ZERO
Os caminhos de Betto e Dirceu voltaram a se cruzar quando subiram a rampa do Planalto. O frei foi encarregado por Lula de construir o Fome Zero. Na sua concepção, o programa seria gerido em conjunto por técnicos do governo e pelos próprios beneficiários, que se reuniriam periodicamente. Ao longo de três anos, os favorecidos seriam treinados num ofício, passariam a trabalhar e prescindiriam da bolsa estatal.
Houve resistência de prefeitos de todo o Brasil. Eles queriam organizar o cadastro, de modo a parecer que concediam a benesse. Assim, poderiam encabrestá-los e cobrar votos.
José Dirceu, que pelejava para aproximar o governo de políticos de todos os partidos, comprou a ideia. "Como era ele que controlava o orçamento do governo, durante dois anos Zé Dirceu nos deixou a pão e água, não destinou um real ao Fome Zero", conta Betto. O frade reclamava com Lula, que lhe dizia que tomaria providências. Nunca as tomou.
O cadastro dos prefeitos foi instituído, o Fome Zero virou Bolsa Família, e Betto deixou o governo. "O que era uma política emancipatória virou uma política compensatória", avalia o religioso. "Milhões de pobres continuam sem emprego, só que agora são consumistas." A gênese do Bolsa Família está historiada em "Calendário do Poder" (Rocco, 2007), no qual relata de maneira crítica e desapaixonada como funcionou o primeiro governo Lula.
Mas nem o livro de Frei Betto dissolve o denso mistério das relações entre José Dirceu e Lula. Graças ao primeiro, o PT se tornou uma máquina eleitoral a serviço do segundo. Eles nunca deixaram entrever como se dava na prática a relação entre ambos. Observando de fora, percebe-se que Lula respeitava Dirceu, mas jamais o teve por mentor. Por sua vez, Dirceu nunca disse uma frase reveladora a respeito de Lula.
O máximo a que chegou foi resmungar "Lula, Lula, Lula" com a fisionomia contrafeita, quando lhe perguntei como ia o ex-presidente. Estávamos no seu apartamento na rua Estado de Israel, na Vila Mariana, em São Paulo. Víamos na televisão a transmissão de uma das sessões do Supremo Tribunal Federal, que julgava o mensalão.
O imóvel não tinha nada de mais: dois quartos, mobiliário de hotel duas estrelas, sinal de internet capenga. Dirceu mencionou que o apartamento passara por uma reforma. Na acusação dos procuradores de Curitiba, revelada na semana passada, tal reforma foi paga por uma empresa acusada de corrupção.
LODO
Ao se preparar para entrar no Planalto, Lula disse a Dirceu que forjasse a aliança do PT com os partidos de aluguel para formar a base do governo. Dirceu foi contra, queria que o PMDB fosse o aliado preferencial. Mas cumpriu as ordens.
A semente do mensalão germinou nesse lodo.
Mas o mensalão só floresceu com exuberância devido a uma particularidade nacional: o Brasil tem uma das campanhas eleitorais mais caras do planeta. Bilhões de reais trocam de mãos a cada dois anos. Há inúmeros motivos para isso: o peso da TV e da propaganda; a longa duração e despolitização da ditadura militar; a ausência de vida partidária consistente; as mazelas da educação básica; a importância do Estado na economia.
Essa dinheirama faz com que as eleições tenham se tornado uma forma de acesso a verbas estatais, manipuladas por partidos em benefício de empresas, com as empreiteiras e bancos puxando a fila. É um jogo de leva e traz com poucos perdedores. Nada impede que um candidato derrotado desvie para a própria conta parte do que lhe foi doado por empresários.
É virtualmente impossível que um partido chegue ao poder sem manter relações com grandes companhias, sejam essas relações promíscuas, de favor, comerciais ou decorrentes do tráfico de influência. O sistema não é exclusivo do PT e tampouco começou com ele. O pedágio político está disseminado porque a economia brasileira funciona assim há décadas.
José Dirceu prestou serviços a grandes corporações, da OAS à Ambev, da Camargo Corrêa à Parmalat. O que fazia para elas? "Faço estudos, prospecto investimentos, dou sugestões, participo de reuniões", respondeu ele. Estávamos na sede da sua consultoria, a JD, num casarão com jeito de mal- assombrado ao lado do parque Ibirapuera. Os móveis eram esparsos, e várias salas estavam desertas. Argumentei que nada disso era propriamente trabalho, criação de valor. Ele insistiu que era, e o diálogo não foi adiante.
Pouco depois de escrever uma resenha que apontava a má-fé e dezenas de erros de uma biografia de Dirceu, fui convidado por ele a almoçar na sua casa de campo. Ela fica num condomínio aprazível em Vinhedo, no interior paulista. A consultoria voltou à baila. "Ajudo na criação de empregos de empresas brasileiras", disse ele. Pode ser. Mas quem cria empregos recria a exploração dos fracos pelos fortes, aufere lucro e perpetua a desigualdade entre as pessoas.
Tarso Genro também esteve com José Dirceu, na casa de Brasília. Como as relações entre eles se deram apenas no PT, o ex-governador gaúcho não chegou a ter conhecimento íntimo da personalidade ou da vida pessoal do companheiro. "Eu o via como uma pessoa extremamente obstinada, que nunca demonstrou desejo de tirar proveito pessoal da sua atividade política", disse-me Tarso. "Depois de mais de dez anos sem conversarmos, minha visita teve finalidade humanística. Encontrei uma pessoa bastante deprimida, mas com enorme vontade de voltar a viver normalmente."
Foi outra a minha última impressão de Dirceu. Numa hora lá, ele se afastou e foi ao fundo do jardim. Parecia perdido, amargurado, sem saída. Mudara tanto que talvez não soubesse quem era. Exilado de si mesmo, escorava-se nos próprios restos, na sua ruína. Lembrava o poeta peregrino, improvável sombra florentina sob os mil sóis do Planalto Central.
A derrocada de um homem tem uma dimensão moral que a sociologia e a psicologia não alcançam. Mas a poesia pode fornecer imagens que propiciam o seu entendimento. No primeiro canto da "Divina Comédia", Dante se depara com o leopardo, o leão e a loba na selva selvagem da vida.
O significado das bestas é matéria de debate entre eruditos desde a Idade Média. No caso de José Dirceu, o leopardo é a fraude, o leão, a soberba, e a loba, a incontinência, o deixar-se levar pelos sentidos mais prementes. Encurralado pelas três feras, ele desce agora ao fundo do inferno.
18 de maio de 2018
O próprio José Dirceu abriu a porta da mesma casa onde a polícia foi buscá-lo nesta semana. Era uma manhã de domingo do fim do ano passado. Estava de calção azul, camiseta vermelha e calçava chinelos. Rijo e bronzeado, parecia mais saudável do que nas fotos dos jornais, nas quais era flagrado indo para o trabalho. Apresentou-me Simone Pereira, sua quarta companheira, e lhe fez um afago no rosto.
Atravessamos o saguão, duas salas sombrias, saímos para o sol raivoso de Brasília e nos sentamos no terraço, à beira do jardim, da piscina e do salão de ginástica. Logo apareceu Maria Antônia, sua filha de quatro anos. Ela recebeu esse nome em homenagem à rua paulistana onde Dirceu teve o seu batismo político.
A menina estava com uma engenhoca eletrônica que emitia silvos insistentes. O pai lhe disse que ficasse um pouco mais longe, mas Maria Antônia se aninhara a seu lado e só saiu quando quis.
Ele conversou primeiro sobre o PT. Falou que, mesmo com a vitória recente de Dilma Rousseff, haveria uma debandada nos quadros e na base do partido. A Lava Jato não cheirava bem, e lhe dava a impressão de causar calafrios em possíveis candidatos pela legenda. Aparentemente, a investigação não o alarmava.
Adicionar legendaJosé Dirceu deixa Centro de Progressão Penitenciária para trabalhar em escritório, em julho de 2014, no DFPedro Ladeira - 11.jul.2014/Folhapress |
"Já reviraram minhas contas bancárias, meus telefonemas e declarações de renda", afirmou. "Nunca encontraram nada. Tenho uma consultoria, presto serviços para empresas e recolho impostos." Durante o encontro, que se estendeu até o meio da tarde, Dirceu não tocou em álcool, proibido no regime de prisão domiciliar: "Não dou mole de jeito nenhum".
O governo recém-reeleito lhe parecia velho, exausto, sem rumo. "O PT sofrerá uma derrota de proporções históricas nas eleições municipais", vaticinou. Ele nunca se deu bem com Dilma. Chamou-a de "camarada de armas" no discurso de despedida no Congresso, mas intramuros a critica desde sempre.
Questionado sobre o que faria se voltasse ao poder, fez uma longa peroração, coalhada de cifras, sobre a vocação do Brasil na América Latina: construir estradas, aeroportos, usinas, linhas de ferro, portos, a infraestrutura inteira do continente. Não disse palavra sobre desigualdade, classes, lucros e interesses nacionais contraditórios, muito menos socialismo.
GUINADA
Sem transição, como lhe é comum, mudou de assunto e deu uma guinada abrupta à esquerda: disse que trabalharia para o PT apoiar a candidatura à prefeitura carioca de Marcelo Freixo, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). "O Rio é a única grande cidade brasileira com garra para eleger um prefeito de esquerda", disse (ignorando a eleição do petista Haddad em São Paulo) enquanto checava o celular, deitado na mesa à frente, gesto que repetia de cinco em cinco minutos.
Há dez anos, Dirceu tivera papel preponderante na expulsão do PT de ativistas que viriam a criar o PSOL, a começar por Luciana Genro. Antes mesmo, na década de 1990, agira com mão pesada para que a esquerda não concorresse ao governo do Rio. O candidato em potencial era Vladimir Palmeira, que não só pertencia ao PT como se formara em radicalismo na turma de 1968. Ele tinha a sustentação firme da seção fluminense do partido no Rio, mas a direção nacional –leia-se: Lula e José Dirceu– impôs o voto em Anthony Garotinho. Deu no que deu. O celular não tocou nenhuma vez.
"As pessoas mudam, e os líderes políticos também", disse-me Valério Arcary, pedindo desculpas pelo clichê. "O José Dirceu de 1980 e o de 2015 não são a mesma pessoa."
O líder do PSTU ficou boquiaberto com o relato, publicado na terça-feira pela Folha, de que Dirceu se ajoelhara diante de uma imagem de Nossa Senhora.
Eles conviveram na década de 1990, quando integraram a comissão executiva nacional do PT. Ainda que tivessem posições conflitantes, davam-se bem. Dirceu fora preso e banido na ressaca de 1968. Passara anos em Cuba, vivera clandestino no interior do Paraná, onde abandonou política, e chegara relativamente tarde ao Partido dos Trabalhadores. Defendia as posições de Fidel Castro e de Cuba.
Já Arcary morava em Lisboa quando estourou a Revolução dos Cravos, em 1974. Voltou ao Brasil anos depois e foi um dos fundadores da Convergência Socialista, grupo trotskista cujos militantes se filiaram ao PT para cooptar novos adeptos. Ele se lembra de várias virtudes de Dirceu: "Era assertivo, não se metia em intrigas, acreditava num projeto, comprava a discussão política e a fazia às claras".
Ou seja, era quase o contrário de Lula e dos sindicalistas que o seguiam. O presidente do PT relutava em divergir frontalmente, tentava conciliar o inconciliável e volta e meia ocultava o que de fato pensava.
Dirceu e Lula tinham deficits semelhantes: não escreviam e nunca estiveram em minoria no partido. O político que escreve ordena as ideias; estar em minoria é didático, fortalece quem tem princípios e paciência.
Um belo dia, as virtudes de José Dirceu se voltaram contra Arcary. Foi quando o movimento pela derrubada de Fernando Collor ganhou corpo, em 1992. Manifestações continuadas juntavam centenas de milhares de pessoas. O presidente estava por um fio, mas o mundo político, jurídico e empresarial não chegara a um acordo quanto ao que fazer.
A Convergência Socialista defendia a derrubada de Collor, mas não queria que o vice, Itamar Franco, tomasse posse no lugar – por não ter sido eleito e por defender o programa liberal do titular. Seu objetivo era seguir com as passeatas e atos públicos até que se abrisse uma crise revolucionária.
José Dirceu partiu para cima da Convergência. Defendeu que a organização não tivesse vida independente e o seu jornalzinho semanal fosse proibido. "Quero ser secretário-geral do PT contra a palavra de ordem 'fora Collor'", repetia. No seu raciocínio, o partido deveria esperar até 1994, vencer as eleições e só então entrar no Planalto. Não deu outra: a direção do partido ficou com Dirceu, e milhares de trotskistas foram expulsos.
O PT tornou-se uma organização eleitoral. Arcary não guarda mágoa. "Dirceu optou por uma política e a defendeu com lealdade, sem dar golpes baixos", disse ele. O PT não chegou ao poder em 1994 nem quatro anos depois. Empalmou o Planalto só em 2002, com José Dirceu na condição de hiperministro e candidato óbvio à sucessão de Lula.
As mutações de Dirceu e do PT não se deram num buraco negro a-histórico. O "big bang" do processo foi a queda do Muro de Berlim. Desmoronou o "socialismo real" (que de socialismo não tinha nada), com o qual boa parte da esquerda latino-americana cultivava relações ambíguas. Esboroaram com ele a via insurrecional para a tomada do poder e a perspectiva de revolucionar a sociedade.
A vaga eleitoralista, com a adoção de um programa palatável à ordem do capital, pôs em polvorosa a Frente Sandinista de Daniel Ortega, na Nicarágua, os Tupamaros de José Mujica, no Uruguai, e o PT de Lula e José Dirceu.
Os três partidos deixaram de falar em socialismo até nos dias de festa, como mandava a etiqueta social-democrata. Vieram os showmícios.
Mesmo o róseo reformismo feneceu. Ele deu lugar às ditas políticas compensatórias, mais ao gosto dos poderes centrais. Não por acaso Obama disse que Lula era "o cara", o "político mais popular na Terra".
A transfiguração foi testemunhada por Frei Betto. Ele conheceu José Dirceu nos idos de 1968. Estudava antropologia na USP da Maria Antônia, teologia no convento dos dominicanos, nas Perdizes, e era repórter da "Folha da Tarde", para a qual cobria o movimento estudantil. "Foi o ano em que não dormi", disse-me Betto.
Conheceram-se melhor na ocasião em que o estudante se refugiou no convento. Aproximaram-se mais quando aderiram à Aliança Libertadora Nacional, a ALN de Carlos Marighella. A década de prisões e exílios os separou. Tornaram a se encontrar no início dos anos 1980. Por achar que a esquerda consistia de sabichões que queriam manipulá-lo, Lula a evitava. Mas gostava de Betto por ser frade e fazer parte da Pastoral Operária. Foi ele quem apresentou José Dirceu a Lula.
FOME ZERO
Os caminhos de Betto e Dirceu voltaram a se cruzar quando subiram a rampa do Planalto. O frei foi encarregado por Lula de construir o Fome Zero. Na sua concepção, o programa seria gerido em conjunto por técnicos do governo e pelos próprios beneficiários, que se reuniriam periodicamente. Ao longo de três anos, os favorecidos seriam treinados num ofício, passariam a trabalhar e prescindiriam da bolsa estatal.
Houve resistência de prefeitos de todo o Brasil. Eles queriam organizar o cadastro, de modo a parecer que concediam a benesse. Assim, poderiam encabrestá-los e cobrar votos.
José Dirceu, que pelejava para aproximar o governo de políticos de todos os partidos, comprou a ideia. "Como era ele que controlava o orçamento do governo, durante dois anos Zé Dirceu nos deixou a pão e água, não destinou um real ao Fome Zero", conta Betto. O frade reclamava com Lula, que lhe dizia que tomaria providências. Nunca as tomou.
O cadastro dos prefeitos foi instituído, o Fome Zero virou Bolsa Família, e Betto deixou o governo. "O que era uma política emancipatória virou uma política compensatória", avalia o religioso. "Milhões de pobres continuam sem emprego, só que agora são consumistas." A gênese do Bolsa Família está historiada em "Calendário do Poder" (Rocco, 2007), no qual relata de maneira crítica e desapaixonada como funcionou o primeiro governo Lula.
Mas nem o livro de Frei Betto dissolve o denso mistério das relações entre José Dirceu e Lula. Graças ao primeiro, o PT se tornou uma máquina eleitoral a serviço do segundo. Eles nunca deixaram entrever como se dava na prática a relação entre ambos. Observando de fora, percebe-se que Lula respeitava Dirceu, mas jamais o teve por mentor. Por sua vez, Dirceu nunca disse uma frase reveladora a respeito de Lula.
O máximo a que chegou foi resmungar "Lula, Lula, Lula" com a fisionomia contrafeita, quando lhe perguntei como ia o ex-presidente. Estávamos no seu apartamento na rua Estado de Israel, na Vila Mariana, em São Paulo. Víamos na televisão a transmissão de uma das sessões do Supremo Tribunal Federal, que julgava o mensalão.
O imóvel não tinha nada de mais: dois quartos, mobiliário de hotel duas estrelas, sinal de internet capenga. Dirceu mencionou que o apartamento passara por uma reforma. Na acusação dos procuradores de Curitiba, revelada na semana passada, tal reforma foi paga por uma empresa acusada de corrupção.
LODO
Ao se preparar para entrar no Planalto, Lula disse a Dirceu que forjasse a aliança do PT com os partidos de aluguel para formar a base do governo. Dirceu foi contra, queria que o PMDB fosse o aliado preferencial. Mas cumpriu as ordens.
A semente do mensalão germinou nesse lodo.
Mas o mensalão só floresceu com exuberância devido a uma particularidade nacional: o Brasil tem uma das campanhas eleitorais mais caras do planeta. Bilhões de reais trocam de mãos a cada dois anos. Há inúmeros motivos para isso: o peso da TV e da propaganda; a longa duração e despolitização da ditadura militar; a ausência de vida partidária consistente; as mazelas da educação básica; a importância do Estado na economia.
Essa dinheirama faz com que as eleições tenham se tornado uma forma de acesso a verbas estatais, manipuladas por partidos em benefício de empresas, com as empreiteiras e bancos puxando a fila. É um jogo de leva e traz com poucos perdedores. Nada impede que um candidato derrotado desvie para a própria conta parte do que lhe foi doado por empresários.
É virtualmente impossível que um partido chegue ao poder sem manter relações com grandes companhias, sejam essas relações promíscuas, de favor, comerciais ou decorrentes do tráfico de influência. O sistema não é exclusivo do PT e tampouco começou com ele. O pedágio político está disseminado porque a economia brasileira funciona assim há décadas.
José Dirceu prestou serviços a grandes corporações, da OAS à Ambev, da Camargo Corrêa à Parmalat. O que fazia para elas? "Faço estudos, prospecto investimentos, dou sugestões, participo de reuniões", respondeu ele. Estávamos na sede da sua consultoria, a JD, num casarão com jeito de mal- assombrado ao lado do parque Ibirapuera. Os móveis eram esparsos, e várias salas estavam desertas. Argumentei que nada disso era propriamente trabalho, criação de valor. Ele insistiu que era, e o diálogo não foi adiante.
Pouco depois de escrever uma resenha que apontava a má-fé e dezenas de erros de uma biografia de Dirceu, fui convidado por ele a almoçar na sua casa de campo. Ela fica num condomínio aprazível em Vinhedo, no interior paulista. A consultoria voltou à baila. "Ajudo na criação de empregos de empresas brasileiras", disse ele. Pode ser. Mas quem cria empregos recria a exploração dos fracos pelos fortes, aufere lucro e perpetua a desigualdade entre as pessoas.
Tarso Genro também esteve com José Dirceu, na casa de Brasília. Como as relações entre eles se deram apenas no PT, o ex-governador gaúcho não chegou a ter conhecimento íntimo da personalidade ou da vida pessoal do companheiro. "Eu o via como uma pessoa extremamente obstinada, que nunca demonstrou desejo de tirar proveito pessoal da sua atividade política", disse-me Tarso. "Depois de mais de dez anos sem conversarmos, minha visita teve finalidade humanística. Encontrei uma pessoa bastante deprimida, mas com enorme vontade de voltar a viver normalmente."
Foi outra a minha última impressão de Dirceu. Numa hora lá, ele se afastou e foi ao fundo do jardim. Parecia perdido, amargurado, sem saída. Mudara tanto que talvez não soubesse quem era. Exilado de si mesmo, escorava-se nos próprios restos, na sua ruína. Lembrava o poeta peregrino, improvável sombra florentina sob os mil sóis do Planalto Central.
A derrocada de um homem tem uma dimensão moral que a sociologia e a psicologia não alcançam. Mas a poesia pode fornecer imagens que propiciam o seu entendimento. No primeiro canto da "Divina Comédia", Dante se depara com o leopardo, o leão e a loba na selva selvagem da vida.
O significado das bestas é matéria de debate entre eruditos desde a Idade Média. No caso de José Dirceu, o leopardo é a fraude, o leão, a soberba, e a loba, a incontinência, o deixar-se levar pelos sentidos mais prementes. Encurralado pelas três feras, ele desce agora ao fundo do inferno.
MARIO SERGIO CONTI, 60, é colunista do jornal "O Globo" e apresentador do programa "Diálogos", da GloboNews
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