Em seu manual, ele faz questão de explicar didaticamente como deve ser cometido um assassinato
Desde os anos 1980 consolidou-se como verdade absoluta que a luta armada conduziu o Brasil à redemocratização. Isto é reproduzido nos livros didáticos e repetido ad nauseam no debate político. Questionar esta versão falaciosa da História é tarefa fundamental no processo de construção da democracia no nosso país. E, em momento algum, deve representar qualquer tipo de elogio à bárbara repressão efetuada pelo regime militar, especialmente nos anos 1968-1976. Ou seja, o terrorista e o torturador são faces da mesma moeda. Com o agravante, no caso do torturador, de que sua ação foi realizada sob cobertura estatal.
Num país sem tradição democrática, os cultores do extremismo ganharam espaço — inclusive na reconstrução do passado. Hoje, torturadores são elogiados em pleno Congresso Nacional, como vimos na sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o encaminhamento para o Senado do pedido de impeachment de Dilma Rousseff; assim como, no dia a dia, terroristas são homenageados nas denominações dos logradouros e edifícios públicos.
Carlos Marighella é um caso exemplar. Militante comunista desde a juventude, stalinista, acabou rompendo com o Partidão após os acontecimentos de 1964. Fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), um grupo terrorista, fortemente influenciado pelas teorias revolucionárias de Fidel Castro e, especialmente, Che Guevara. Foi a Cuba e estabeleceu uma aliança com a ditadura castrista. A ALN se notabilizou pelos impiedosos ataques terroristas e pelo assassinato até de militantes que desejavam abandonar a organização, como no caso do jovem Márcio Leite de Toledo.
Mesmo assim, na canhestra metamorfose tupiniquim, virou um lutador da liberdade. Agora também no cinema. O ator Wagner Moura está produzindo um filme — claro que com o apoio da Lei Rouanet — para glorificar, ainda mais, Marighella, apesar de a Constituição definir no artigo 5º, inciso XLIII, o terrorismo como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ou seja, o Estado brasileiro, através do Ministério da Cultura, está rasgando a Constituição ao conceder seu apoio financeiro a uma película que afronta um princípio tão caro da Carta Magna.
Carlos Marighella é autor do Manual do Guerrilheiro Urbano. O documento não pode ser considerado uma ode ao humanismo, muito pelo contrário. Logo no início, afirma que o terrorista “somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais.” E que deve se dedicar “ao extermínio físico dos agentes da repressão.” O herói de Wagner Moura exemplifica várias vezes como matar policiais: “a grande desvantagem do policial montado é que se apresenta ao guerrilheiro urbano como dois alvos excelentes: o cavalo e o cavaleiro.” E continua, páginas depois: “as greves e as breves interrupções de trânsito podem oferecer uma excelente oportunidade para a preparação de emboscadas ou armadilhas cujo fim é o de destruição física da cruel e sanguinária polícia.” Marighella faz questão de explicar didaticamente como deve ser cometido um assassinato: “a execução pode ser realizada por um franco-atirador, paciente, sozinho e desconhecido, e operando absolutamente secreto e a sangue-frio.”
O fundador da ALN não tem pejo em se proclamar um terrorista: “o terrorismo é uma ação usualmente envolvendo a colocação de uma bomba ou uma bomba de fogo de grande poder destrutivo, o qual é capaz de influir perdas irreparáveis ao inimigo.” O democrata Marighella, ídolo de Wagner Moura, quer ficar distante dos defensores da “luta sem violência.” Diz ele — delirando — que não passam de manobras pedir “eleições, ‘redemocratização’ (as aspas são do terrorista), reformas constitucionais e outras bobagens desenhadas para confundir as massas e fazê-las parar a rebelião revolucionária nas cidades e nas áreas rurais do país.” E, raivoso, conclui: “Atacando de coração essa falsa eleição e a chamada ‘solução política’ (aspas dele) tão apeladora aos oportunistas, o guerrilheiro urbano tem que se fazer mais agressivo e violento, girando em torno da sabotagem, do terrorismo, das expropriações, dos assaltos, dos sequestros, das execuções.”
O terrorista é infatigável na defesa da violação dos direitos humanos. Indica como tarefa fundamental os sequestros. Diz Marighella: “sequestrar é capturar e assegurar em um lugar secreto um agente policial, um espião norte-americano, uma personalidade política ou um notório e perigoso inimigo do movimento revolucionário.” Em todo manual não há, em momento algum, qualquer valorização de algum ideário democrático. Nada disso. A morte — e não o voto — é a companheira fiel do terrorista. Cabe a ele, matar, matar, matar.
O filme poderá captar R$ 10 milhões (!!) do Estado burguês, não é, Wagner Moura? Afinal, o Erário serve para isso. Até para subsidiar uma película reacionária, antidemocrática e stalinista. Que falsifica a história sem nenhum pudor. Chega até a transformar um pardo em um negro, pois, de acordo com as notícias, o terrorista será interpretado pelo cantor Seu Jorge. Inacreditável.
A resistência democrática não fez parte do programa de nenhum grupo terrorista. Todos, sem exceção, defendiam religiosamente que o Brasil deveria caminhar para uma ditadura do proletariado. A divergência é se o nosso país seria uma Cuba, União Soviética ou uma China. A triste ironia é que os perdedores acabaram vencendo no discurso histórico. Aqueles que desqualificavam a democracia e agiam tão ditatorialmente como o regime militar, que diziam combater, foram alçados a mártires da liberdade.
14 de fevereiro de 2018
Marco Antonio Villa é historiador, O Globo
Desde os anos 1980 consolidou-se como verdade absoluta que a luta armada conduziu o Brasil à redemocratização. Isto é reproduzido nos livros didáticos e repetido ad nauseam no debate político. Questionar esta versão falaciosa da História é tarefa fundamental no processo de construção da democracia no nosso país. E, em momento algum, deve representar qualquer tipo de elogio à bárbara repressão efetuada pelo regime militar, especialmente nos anos 1968-1976. Ou seja, o terrorista e o torturador são faces da mesma moeda. Com o agravante, no caso do torturador, de que sua ação foi realizada sob cobertura estatal.
Num país sem tradição democrática, os cultores do extremismo ganharam espaço — inclusive na reconstrução do passado. Hoje, torturadores são elogiados em pleno Congresso Nacional, como vimos na sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o encaminhamento para o Senado do pedido de impeachment de Dilma Rousseff; assim como, no dia a dia, terroristas são homenageados nas denominações dos logradouros e edifícios públicos.
Carlos Marighella é um caso exemplar. Militante comunista desde a juventude, stalinista, acabou rompendo com o Partidão após os acontecimentos de 1964. Fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), um grupo terrorista, fortemente influenciado pelas teorias revolucionárias de Fidel Castro e, especialmente, Che Guevara. Foi a Cuba e estabeleceu uma aliança com a ditadura castrista. A ALN se notabilizou pelos impiedosos ataques terroristas e pelo assassinato até de militantes que desejavam abandonar a organização, como no caso do jovem Márcio Leite de Toledo.
Mesmo assim, na canhestra metamorfose tupiniquim, virou um lutador da liberdade. Agora também no cinema. O ator Wagner Moura está produzindo um filme — claro que com o apoio da Lei Rouanet — para glorificar, ainda mais, Marighella, apesar de a Constituição definir no artigo 5º, inciso XLIII, o terrorismo como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ou seja, o Estado brasileiro, através do Ministério da Cultura, está rasgando a Constituição ao conceder seu apoio financeiro a uma película que afronta um princípio tão caro da Carta Magna.
Carlos Marighella é autor do Manual do Guerrilheiro Urbano. O documento não pode ser considerado uma ode ao humanismo, muito pelo contrário. Logo no início, afirma que o terrorista “somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais.” E que deve se dedicar “ao extermínio físico dos agentes da repressão.” O herói de Wagner Moura exemplifica várias vezes como matar policiais: “a grande desvantagem do policial montado é que se apresenta ao guerrilheiro urbano como dois alvos excelentes: o cavalo e o cavaleiro.” E continua, páginas depois: “as greves e as breves interrupções de trânsito podem oferecer uma excelente oportunidade para a preparação de emboscadas ou armadilhas cujo fim é o de destruição física da cruel e sanguinária polícia.” Marighella faz questão de explicar didaticamente como deve ser cometido um assassinato: “a execução pode ser realizada por um franco-atirador, paciente, sozinho e desconhecido, e operando absolutamente secreto e a sangue-frio.”
O fundador da ALN não tem pejo em se proclamar um terrorista: “o terrorismo é uma ação usualmente envolvendo a colocação de uma bomba ou uma bomba de fogo de grande poder destrutivo, o qual é capaz de influir perdas irreparáveis ao inimigo.” O democrata Marighella, ídolo de Wagner Moura, quer ficar distante dos defensores da “luta sem violência.” Diz ele — delirando — que não passam de manobras pedir “eleições, ‘redemocratização’ (as aspas são do terrorista), reformas constitucionais e outras bobagens desenhadas para confundir as massas e fazê-las parar a rebelião revolucionária nas cidades e nas áreas rurais do país.” E, raivoso, conclui: “Atacando de coração essa falsa eleição e a chamada ‘solução política’ (aspas dele) tão apeladora aos oportunistas, o guerrilheiro urbano tem que se fazer mais agressivo e violento, girando em torno da sabotagem, do terrorismo, das expropriações, dos assaltos, dos sequestros, das execuções.”
O terrorista é infatigável na defesa da violação dos direitos humanos. Indica como tarefa fundamental os sequestros. Diz Marighella: “sequestrar é capturar e assegurar em um lugar secreto um agente policial, um espião norte-americano, uma personalidade política ou um notório e perigoso inimigo do movimento revolucionário.” Em todo manual não há, em momento algum, qualquer valorização de algum ideário democrático. Nada disso. A morte — e não o voto — é a companheira fiel do terrorista. Cabe a ele, matar, matar, matar.
O filme poderá captar R$ 10 milhões (!!) do Estado burguês, não é, Wagner Moura? Afinal, o Erário serve para isso. Até para subsidiar uma película reacionária, antidemocrática e stalinista. Que falsifica a história sem nenhum pudor. Chega até a transformar um pardo em um negro, pois, de acordo com as notícias, o terrorista será interpretado pelo cantor Seu Jorge. Inacreditável.
A resistência democrática não fez parte do programa de nenhum grupo terrorista. Todos, sem exceção, defendiam religiosamente que o Brasil deveria caminhar para uma ditadura do proletariado. A divergência é se o nosso país seria uma Cuba, União Soviética ou uma China. A triste ironia é que os perdedores acabaram vencendo no discurso histórico. Aqueles que desqualificavam a democracia e agiam tão ditatorialmente como o regime militar, que diziam combater, foram alçados a mártires da liberdade.
14 de fevereiro de 2018
Marco Antonio Villa é historiador, O Globo
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