Filme é simpático para o mundo de 2018, mas trai as "horas sombrias" de 1940
Concordo com Elio Gaspari, em coluna para esta Folha: o filme "O Destino de uma Nação" demoniza a figura de Lord Halifax. Injusto. Em 1940, Halifax estava disposto a negociar a paz com Hitler?
Era uma opção perfeitamente racional: com a França de joelhos e os EUA ainda longe de entrar na dança, sem falar do pacto germano-soviético que mantinha a União Soviética na jaula (pormenor que os camaradas sempre esquecem), só um louco não contemplaria essa opção.
O próprio Churchill, antes da decisão final, ponderou todos os cenários. Mas recusou-os. Por quê?
Sim, porque entendeu que a rendição seria o primeiro passo para Hitler rasgar qualquer acordo (como rasgou com Stálin) e transformar a Inglaterra num "estado escravo".
Mas o filme sugere uma outra razão e a cena do metrô é exemplar: ali vemos Churchill viajando com o povo e percebendo que os seus compatriotas queriam continuar a lutar. Até o fim.
Essa cena não é apenas uma "licença cinematográfica", como escreve Elio Gaspari. É uma mentira histórica e intelectual em vários sentidos da expressão.
Primeiro, porque não aconteceu. Segundo, porque não podia acontecer. E, terceiro, porque contamina a lucidez e a resiliência de Churchill com um toque de populismo assaz nefasto.
Eu sei, eu sei: nas "ultrademocracias" em que vivemos, a palavra "elitismo" ganhou má fama. Como defender a velha ideia platônica de que a política deve ser exercida pelos melhores, mesmo que os melhores não sejam imediatamente reconhecidos pelas massas?
Acontece que a decisão de Churchill em recusar qualquer compromisso com Hitler foi uma decisão "elitista", sim, por dois motivos.
Para começar, porque foi uma decisão solitária, ou quase, à imagem do seu percurso na década de 1930. Nesses "wilderness years" (anos desérticos, desoladores), os seus discursos antinazistas recebiam as gargalhadas dos restantes membros do Parlamento.
Os "apaziguadores", como Lord Halifax ou Neville Chamberlain, não eram a exceção; eram a regra. Como explica John Lukacs nesse livrinho divino que Elio Gaspari recomenda ("Cinco Dias em Londres"), os argumentos favoráveis ao "apaziguamento" batiam sempre nas mesmas teclas: a humilhação da Alemanha com o Tratado de Versalhes; as memórias dolorosas da Primeira Guerra Mundial (no fundo, quem desejava uma Segunda?); e, claro, o antibolchevismo de Hitler (Moscou assustava mais do que Berlim).
Para Churchill, nenhum desses argumentos convencia: o nazismo era uma mistura de ressentimento e desumanidade contrária à tradição liberal inglesa e a uma certa ideia de "civilização ocidental", com as suas raízes intelectuais em Jerusalém, Atenas e Roma. E que tradição era essa?
O elitismo de Churchill também a explica: a tradição que ele aprendeu, não no metrô com os "homens comuns", mas nos livros da sua formação, sobretudo durante os anos como soldado em finais do século 19. A lista é extensa: Aristóteles, Cícero, Adam Smith, Macaulay, Edward Gibbon.
Bem sei que a lista só tem "dead white males". Mas foram esses homens brancos e mortos que ensinaram ao jovem Winston a importância do império da lei sobre os caprichos dos homens, a essencial dignidade da vida humana e um amor pela liberdade que os nazistas ameaçavam com sua "tirania monstruosa".
Foi com esse patrimônio intelectual que Churchill enfrentou o Gabinete de Guerra e o convenceu a lutar. Mas a verdadeira tarefa hercúlea, ao contrário do que o filme mostra, foi levar os ingleses a acreditar no "espírito heroico" de uma nação e na missão civilizacional que ela enfrentava. Não foi o povo que convenceu Churchill de nada. O desafio foi precisamente o inverso.
Em ensaio magistral, intitulado "Winston Churchill em 1940", o filósofo Isaiah Berlin resumiu o gênio do premiê britânico: a sua "imaginação histórica".
Traduzindo: quando olhamos para os fatos, o senso comum talvez estivesse do lado de Halifax. Mas Churchill tinha algo superior: uma capacidade quase poética para idealizar uma realidade que ainda não existia. Uma realidade feita de coragem, sacrifício e vitória que levou os ingleses a acreditar.
Foi o elitismo de Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo. O filme de Joe Wright é simpático para o mundo igualitário de 2018, mas é uma traição às "horas sombrias" de 1940.
14 de fevereiro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
Concordo com Elio Gaspari, em coluna para esta Folha: o filme "O Destino de uma Nação" demoniza a figura de Lord Halifax. Injusto. Em 1940, Halifax estava disposto a negociar a paz com Hitler?
Era uma opção perfeitamente racional: com a França de joelhos e os EUA ainda longe de entrar na dança, sem falar do pacto germano-soviético que mantinha a União Soviética na jaula (pormenor que os camaradas sempre esquecem), só um louco não contemplaria essa opção.
O próprio Churchill, antes da decisão final, ponderou todos os cenários. Mas recusou-os. Por quê?
Sim, porque entendeu que a rendição seria o primeiro passo para Hitler rasgar qualquer acordo (como rasgou com Stálin) e transformar a Inglaterra num "estado escravo".
Mas o filme sugere uma outra razão e a cena do metrô é exemplar: ali vemos Churchill viajando com o povo e percebendo que os seus compatriotas queriam continuar a lutar. Até o fim.
Essa cena não é apenas uma "licença cinematográfica", como escreve Elio Gaspari. É uma mentira histórica e intelectual em vários sentidos da expressão.
Primeiro, porque não aconteceu. Segundo, porque não podia acontecer. E, terceiro, porque contamina a lucidez e a resiliência de Churchill com um toque de populismo assaz nefasto.
Eu sei, eu sei: nas "ultrademocracias" em que vivemos, a palavra "elitismo" ganhou má fama. Como defender a velha ideia platônica de que a política deve ser exercida pelos melhores, mesmo que os melhores não sejam imediatamente reconhecidos pelas massas?
Acontece que a decisão de Churchill em recusar qualquer compromisso com Hitler foi uma decisão "elitista", sim, por dois motivos.
Para começar, porque foi uma decisão solitária, ou quase, à imagem do seu percurso na década de 1930. Nesses "wilderness years" (anos desérticos, desoladores), os seus discursos antinazistas recebiam as gargalhadas dos restantes membros do Parlamento.
Os "apaziguadores", como Lord Halifax ou Neville Chamberlain, não eram a exceção; eram a regra. Como explica John Lukacs nesse livrinho divino que Elio Gaspari recomenda ("Cinco Dias em Londres"), os argumentos favoráveis ao "apaziguamento" batiam sempre nas mesmas teclas: a humilhação da Alemanha com o Tratado de Versalhes; as memórias dolorosas da Primeira Guerra Mundial (no fundo, quem desejava uma Segunda?); e, claro, o antibolchevismo de Hitler (Moscou assustava mais do que Berlim).
Para Churchill, nenhum desses argumentos convencia: o nazismo era uma mistura de ressentimento e desumanidade contrária à tradição liberal inglesa e a uma certa ideia de "civilização ocidental", com as suas raízes intelectuais em Jerusalém, Atenas e Roma. E que tradição era essa?
O elitismo de Churchill também a explica: a tradição que ele aprendeu, não no metrô com os "homens comuns", mas nos livros da sua formação, sobretudo durante os anos como soldado em finais do século 19. A lista é extensa: Aristóteles, Cícero, Adam Smith, Macaulay, Edward Gibbon.
Bem sei que a lista só tem "dead white males". Mas foram esses homens brancos e mortos que ensinaram ao jovem Winston a importância do império da lei sobre os caprichos dos homens, a essencial dignidade da vida humana e um amor pela liberdade que os nazistas ameaçavam com sua "tirania monstruosa".
Foi com esse patrimônio intelectual que Churchill enfrentou o Gabinete de Guerra e o convenceu a lutar. Mas a verdadeira tarefa hercúlea, ao contrário do que o filme mostra, foi levar os ingleses a acreditar no "espírito heroico" de uma nação e na missão civilizacional que ela enfrentava. Não foi o povo que convenceu Churchill de nada. O desafio foi precisamente o inverso.
Em ensaio magistral, intitulado "Winston Churchill em 1940", o filósofo Isaiah Berlin resumiu o gênio do premiê britânico: a sua "imaginação histórica".
Traduzindo: quando olhamos para os fatos, o senso comum talvez estivesse do lado de Halifax. Mas Churchill tinha algo superior: uma capacidade quase poética para idealizar uma realidade que ainda não existia. Uma realidade feita de coragem, sacrifício e vitória que levou os ingleses a acreditar.
Foi o elitismo de Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo. O filme de Joe Wright é simpático para o mundo igualitário de 2018, mas é uma traição às "horas sombrias" de 1940.
14 de fevereiro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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