Dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas
Marcelo Crivella trancou o caixa da prefeitura à histórica subvenção de escolas de samba. O discurso foi de austeridade: em tempos de crise, as prioridades seriam outras. Colheu aplausos dos (loucos) que não gostam de carnaval e dos que, não sem razão, alegam que dinheiro público para cultura deveria ter destinação restrita, certamente vedada a produções — o desfile das escolas de samba entre elas — capazes de se financiar na iniciativa privada. E apanhou dos que defendem a indústria do carnaval e contabilizam os dividendos turísticos do evento para a cidade, dos que pensam que cabe ao Estado bancar a atividade cultural e dos que, com razão, identificaram, no fundamento da decisão do prefeito, uma imposição de natureza político-religiosa: o desprezo tirânico de lideranças evangélicas por manifestações derivadas de religiões de matriz africana.
Esse é o quadro do que se estabeleceu como debate público a respeito da relação econômica entre poder público e escolas de samba; mas é, sobretudo, um dos casos em que elemento presente nenhum na tela será mais importante do que aquele que falta e cuja ausência me espanta, o argumento essencial de por que nem sequer um centavo de dinheiro público deveria ser posto em escolas de samba: o fato de que, controladas por esquemas criminosos, monumentais tanques para lavagem de dinheiro imundo, entidades cujas contas não suportariam dez minutos de auditoria, é inaceitável que o Estado contribua com isso enquanto assim for. Ponto final. Esta é a chave arrumadora do debate — mas que, por covardia ou comodidade, está fora do debate: dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas.
A situação é de anomia e em muito extrapola o financiamento estrito dos desfiles. Por exemplo: a prefeitura construiu a Cidade do Samba, conjunto de galpões em que alegorias e fantasias são preparadas, e a entregou — como se propriedade privada — à Liga Independente das Escolas de Samba. Da mesma forma ocorre na organização estrutural do carnaval, monopólio da Liesa e território inacessível ao poder público, desde a comercialização de ingressos até a escolha de jurados e a apuração dos resultados. Duas perguntas — as mais urgentes tanto quanto nunca feitas: quando o Estado retomará os aparelhos públicos usados pelas agremiações para deflagrar o processo licitatório por meio do qual a gestão do espetáculo na Sapucaí passará à iniciativa privada? Quando o julgamento dos desfiles terá a óbvia independência decorrente de não ser dirigido pela elite da parte interessada?
Comandadas pelo complexo de atividades criminosas que fez o Rio de Janeiro refém e sustentadas pela sucessão de governantes que nos entregaram ao sequestrador, escolas de samba são peculiares instituições do Estado. Todas. Ou quase. E as que não são sonham ser. Nem sempre foi assim. Mas assim é há muito. São, acima de tudo, a perfeita representação da sociedade, tipicamente brasileira, entre Estado e crime organizado; centros de criação cultural e de vida comunitária (algumas poucas, cada vez menos) tanto quanto núcleos (quase todas) para exercício autoritário de poder; agremiações que (com modestas exceções) não sobreviveriam sem os braços trançados de bandidos e governantes; e que se acostumaram a exigir dinheiro do Estado tanto quanto se recusam a funcionar sob a lei do Estado, com o aval do Estado.
Aí está, descrita, a engenharia corrompida da farra. Um universo de podridão inescapável — isso se formos capazes de nos despir da paixão, no caso daqueles que, como eu, amam, cada vez mais à distância, uma escola de samba, o glorioso Império Serrano. Não posso, a propósito, deixar de registrar o constrangimento em ver jornalistas, que passam o ano todo se capitalizando com o discurso contra a desigualdade e em defesa da alforria, batendo cabeça para papai bicheiro quando se acerca o carnaval. A cobertura jornalística das escolas de samba há muito está, com respeitáveis exceções, contaminada por relações promíscuas.
Chego, pois, a meu ponto — desdobrado dessa cegueira voluntária. Se as escolas de samba, quase todas, não existiriam sem o casamento entre crime e Estado, tornam-se vergonhosos — farsantes mesmo — alguns dos desfiles apresentados em 2018, aqueles cujos enredos tiveram natureza crítica, carregados de protestos sociais e políticos, e exaltados como vigorosos acontecimentos no campo da liberdade. Depois de curiosa mais de década em que essa valentia seletiva se amorteceu (escolas de samba são de esquerda pelo mesmo mecanismo de adesão-pressão sob o qual artistas têm de ser?), houve agremiação — uma dessas com dono não exatamente democrata — apresentando-se contra a escravidão moderna, e até mesmo um vampirão houve, referência a Michel Temer, chefe de um governo a cujo Ministério da Cultura, porém, as escolas correram em busca de dinheiro.
Gosto, especialmente, do caso da grande Beija-Flor, propriedade de um dos barões do bicho, cujo crescimento bebeu gostoso na fonte — sede expressa não apenas em desfiles de exaltação aos generais — do regime militar, e que não faz muito desfilou em homenagem a uma ditadura africana, mas que, neste ano, resolveu, com um lindíssimo samba, protestar contra a intolerância, contra o opressor modelo político e social vigente no Brasil. Não foi uma autocrítica. Chora, cavaco.
14 de fevereiro de 2018
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo
Marcelo Crivella trancou o caixa da prefeitura à histórica subvenção de escolas de samba. O discurso foi de austeridade: em tempos de crise, as prioridades seriam outras. Colheu aplausos dos (loucos) que não gostam de carnaval e dos que, não sem razão, alegam que dinheiro público para cultura deveria ter destinação restrita, certamente vedada a produções — o desfile das escolas de samba entre elas — capazes de se financiar na iniciativa privada. E apanhou dos que defendem a indústria do carnaval e contabilizam os dividendos turísticos do evento para a cidade, dos que pensam que cabe ao Estado bancar a atividade cultural e dos que, com razão, identificaram, no fundamento da decisão do prefeito, uma imposição de natureza político-religiosa: o desprezo tirânico de lideranças evangélicas por manifestações derivadas de religiões de matriz africana.
Esse é o quadro do que se estabeleceu como debate público a respeito da relação econômica entre poder público e escolas de samba; mas é, sobretudo, um dos casos em que elemento presente nenhum na tela será mais importante do que aquele que falta e cuja ausência me espanta, o argumento essencial de por que nem sequer um centavo de dinheiro público deveria ser posto em escolas de samba: o fato de que, controladas por esquemas criminosos, monumentais tanques para lavagem de dinheiro imundo, entidades cujas contas não suportariam dez minutos de auditoria, é inaceitável que o Estado contribua com isso enquanto assim for. Ponto final. Esta é a chave arrumadora do debate — mas que, por covardia ou comodidade, está fora do debate: dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas.
A situação é de anomia e em muito extrapola o financiamento estrito dos desfiles. Por exemplo: a prefeitura construiu a Cidade do Samba, conjunto de galpões em que alegorias e fantasias são preparadas, e a entregou — como se propriedade privada — à Liga Independente das Escolas de Samba. Da mesma forma ocorre na organização estrutural do carnaval, monopólio da Liesa e território inacessível ao poder público, desde a comercialização de ingressos até a escolha de jurados e a apuração dos resultados. Duas perguntas — as mais urgentes tanto quanto nunca feitas: quando o Estado retomará os aparelhos públicos usados pelas agremiações para deflagrar o processo licitatório por meio do qual a gestão do espetáculo na Sapucaí passará à iniciativa privada? Quando o julgamento dos desfiles terá a óbvia independência decorrente de não ser dirigido pela elite da parte interessada?
Comandadas pelo complexo de atividades criminosas que fez o Rio de Janeiro refém e sustentadas pela sucessão de governantes que nos entregaram ao sequestrador, escolas de samba são peculiares instituições do Estado. Todas. Ou quase. E as que não são sonham ser. Nem sempre foi assim. Mas assim é há muito. São, acima de tudo, a perfeita representação da sociedade, tipicamente brasileira, entre Estado e crime organizado; centros de criação cultural e de vida comunitária (algumas poucas, cada vez menos) tanto quanto núcleos (quase todas) para exercício autoritário de poder; agremiações que (com modestas exceções) não sobreviveriam sem os braços trançados de bandidos e governantes; e que se acostumaram a exigir dinheiro do Estado tanto quanto se recusam a funcionar sob a lei do Estado, com o aval do Estado.
Aí está, descrita, a engenharia corrompida da farra. Um universo de podridão inescapável — isso se formos capazes de nos despir da paixão, no caso daqueles que, como eu, amam, cada vez mais à distância, uma escola de samba, o glorioso Império Serrano. Não posso, a propósito, deixar de registrar o constrangimento em ver jornalistas, que passam o ano todo se capitalizando com o discurso contra a desigualdade e em defesa da alforria, batendo cabeça para papai bicheiro quando se acerca o carnaval. A cobertura jornalística das escolas de samba há muito está, com respeitáveis exceções, contaminada por relações promíscuas.
Chego, pois, a meu ponto — desdobrado dessa cegueira voluntária. Se as escolas de samba, quase todas, não existiriam sem o casamento entre crime e Estado, tornam-se vergonhosos — farsantes mesmo — alguns dos desfiles apresentados em 2018, aqueles cujos enredos tiveram natureza crítica, carregados de protestos sociais e políticos, e exaltados como vigorosos acontecimentos no campo da liberdade. Depois de curiosa mais de década em que essa valentia seletiva se amorteceu (escolas de samba são de esquerda pelo mesmo mecanismo de adesão-pressão sob o qual artistas têm de ser?), houve agremiação — uma dessas com dono não exatamente democrata — apresentando-se contra a escravidão moderna, e até mesmo um vampirão houve, referência a Michel Temer, chefe de um governo a cujo Ministério da Cultura, porém, as escolas correram em busca de dinheiro.
Gosto, especialmente, do caso da grande Beija-Flor, propriedade de um dos barões do bicho, cujo crescimento bebeu gostoso na fonte — sede expressa não apenas em desfiles de exaltação aos generais — do regime militar, e que não faz muito desfilou em homenagem a uma ditadura africana, mas que, neste ano, resolveu, com um lindíssimo samba, protestar contra a intolerância, contra o opressor modelo político e social vigente no Brasil. Não foi uma autocrítica. Chora, cavaco.
14 de fevereiro de 2018
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo
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