É uma reedição jurídica do western “Sem lei e sem alma” (Gunfight at the O.K. Corral), de John Sturges, agora reencenado no Supremo Tribunal Federal entre Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, sem que se saiba quem faz o papel do xerife Wyatt Earp ou do jogador Doc Holliday. A comparação é válida, porque atualmente o Supremo decaiu tanto que em breve será necessário instalar um curral em suas dependências, para abrigar as bestidades.
FOGO CERRADO – Como se sabe, Gilmar está sob fogo cerrado da Procuradoria-Geral da República, que pediu o impeachment dele por não ter se declarado “impedido” para julgar e libertar o empresário Eike Batista, que é defendido pelo escritório de advocacia no qual trabalha Guiomar Lima, mulher do ministro. Trata-se de fato público e notório que nem pode ser contestado, embora o titular Sérgio Bermudes tenha alegado que só assinou a defesa de Eike para prestigiar os colegas criminalistas Ary Bergher e Raphael Mattos, vejam que bela candidatura à Piada do Ano.
Ao redigir a nota destinada a defender o amigo Gilmar, o processualista Bermudes nem reparou que estava se tornando réu confesso, ao admitir ter descumprido a Lei 8906 (Estatuto da Advocacia), em seu artigo 34, inciso V: : “Constitui infração disciplinar: (…) assinar qualquer escrito destinado a processo judicial ou para fim extrajudicial que não tenha feito, ou em que não tenha colaborado“. Mas amigo é para essas coisas, costuma-se dizer.
VELHOS RIVAIS – O enfrentamento de Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello faz lembrar também outro clássico de Sturges, “Duelo de Titãs” (Last Train from Gun Hill), porque os ministros são velhos adversários e há tempos trocam ofensas no Supremo, onde se comportam como “inimigos cordiais”, se é que isso existe.
O mais recente disparo de Marco Aurélio foi indireto, mas ricocheteou e atingiu frontalmente Gilmar Mendes. No meio do tiroteio causado pelo pedido de impeachment feito pelo procurador Rodrigo Janot, o ministro Marco Aurélio enviou ofício à presidente do Supremo, Carmén Lúcia, para se declarar impedido de participar de votações que envolvam clientes de seus parentes.
Foi uma atitude premeditada, que representou uma provocação direta a Gilmar Mendes, que jamais se considera suspeito e atua no julgamento de pessoas intimamente ligadas a ele, como Michel Temer e Aécio Neves, procedendo da mesma forma como se comportam Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que julgam abertamente amigos como José Dirceu e Paulo Bernardo, sem se considerarem impedidos, em afronta ao Código de Processo Civil e a outras leis e normas.
ERAM INIMIGOS – Gilmar Mendes e Sérgio Bermudes hoje são grande amigos, mas nem sempre foi assim. Em dezembro de 2000, quando Gilmar era advogado-geral da União, ridicularizou Bermudes no programa “‘Opinião Brasil”, da TV Cultura, e recebeu uma carta devastadora. Entre outras coisas, Bermudes anunciou que ia processar Gilmar civil e criminalmente, além de representar contra ele na OAB e demolir sua candidatura ao Supremo:
“Gilmar, você agrediu-me brutalmente; agrediu, virulentamente, os processualistas; agrediu os advogados brasileiros e conspurcou a dignidade do cargo que imerecidamente ocupa.
Insistindo em mostrar as patas, você, muito obviamente, questionou a minha seriedade profissional.
Minha esperança é que você deixe o cargo que ocupa e que não merece por causa do seu desequilíbrio, do seu destempero, da sua leviandade, e que abdique da sua propalada pretensão de alcançar o Supremo Tribunal Federal, onde se requer, mais que um curso no exterior, reflexão e serenidade, em vez do açodamento e da empáfia que você exibe”, metralhou Bermudes.
GALHO DENTRO – Gilmar Mendes amedrontou-se e não respondeu a Bermudes. Pelo contrário, botou o galho dentro, como se dizia antigamente, pediu desculpas e os dois ficaram amigos, vejam a que ponto chega a arte do cinismo. E hoje os dois se autoajudam, é um relacionamento realmente admirável, mas fica feio para um ministro do Supremo, que está usando a mesma toga de Adaucto Lúcio Cardoso e tantos outros luminares. Em dezembro, Gilmar fez lobby para Bermudes emplacar no Conselho Nacional de Justiça o jovem advogado Henrique Ávila, de apenas 33 anos, que trabalha em seu escritório. E agora Gilmar vem a público denunciar que há “ministros covardes” no Supremo, sem se olhar no espelho, é claro.
Bem, voltando à crise atual, o fato concreto é que os dois veteranos ministros se odeiam. Em dezembro último, quando uma liminar de Marco Aurélio afastou Renan Calheiros da presidência do Senado, Gilmar Mendes imediatamente sugeriu o impeachment do ministro-relator, usando o jornalista amigo Jorge Bastos Moreno, de O Globo. Sem citar Marco Aurélio, disse que o caso era de “reconhecimento de inimputabilidade ou de impeachment”. E arrematou, ridicularizando o fato de o desafeto ser alagoano: “No Nordeste se diz que não se corre atrás de doido porque não se sabe para onde ele vai”.
BATENDO PESADO – Agora, Gilmar acaba de levar o troco, com a decisão de Marco Aurélio se julgar impedido em processos do escritório de advocacia no qual uma sobrinha atua. Gilmar ficou furioso e respondeu usando mais uma vez o blog do amigo Jorge Bastos Moreno: “Os antropólogos, quando forem estudar algumas personalidades da vida pública, terão uma grande surpresa: descobrirão que elas nunca foram grande coisa do ponto de vista ético, moral e intelectual e que essas pessoas ao envelhecerem passaram de velhos a velhacos. Ou seja, envelheceram e envileceram“, disse, sem citar Marco Aurélio nem os autores das máximas usadas (Ulysses Guimarães, com “velhos e velhacos“, ao responder ao então presidente Fernando Collor; e Rubem Braga, com “envelhecido e envilecido“, no poema “Auto-Retrato”).
Agora, Marco Aurélio vai revidar. O suspense é de matar o Hitchcock, como diria o genial compositor e publicitário Miguel Gustavo, meu vizinho aqui no Edifício Zacatecas. Aguardem os próximos capítulos.
13 de maio de 2017
Carlos Newton
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