Umas das inúmeras lições que a Operação Lava Jato nos passou é que o grande desafio de hoje, tanto para a Polícia Federal como para o Ministério Público Federal, são as investigações de fraudes em licitações. Não seria nenhum exagero reconhecer que os inquéritos que tratam de outros delitos tornaram-se procedimentos primários do ponto de vista da busca da materialidade e da autoria, mormente se comparados àqueles que apuram os estelionatos cometidos nos contratos de obras e serviços para o governo.
O que observamos, com perplexidade, é que nesses crimes envolvendo concorrências públicas, os perpetradores não se intimidam, não recuam um milímetro sequer, inclusive quando se percebem investigados. Ao contrário de um homicídio ou de um caso de tráfico de drogas, nos quais os criminosos que os planejam refreiam seus atos assim que vêem como alvos de uma investigação, suspendendo de imediato a ação criminosa, os delinquentes que promovem tais fraudes em licitações não arrefecem mesmo quando sabem que estão na mira das autoridades.
Como todas as partes que atuam nesses esquemas encontram-se arranjadas e acordadas, estas, ao se verem como alvos de investigações, simplesmente tomam, por cautela, duas únicas e singelas providências, a saber: param de falar ao telefone e “descombinam” a forma de pagamento. Começam a se encontrar pessoalmente ou usam números celulares pré-pagos recém adquiridos, ou diariamente adquiridos, e suspendem o pagamento dos kickbacks, ou as vezes nem suspendem, mas criam alternativas para seu redirecionamento. Se, por exemplo, o acordo inicial era depositar na conta de um parente de um dos envolvidos ou mandar o dinheiro para uma conta no Uruguai, essa medida é suspensa até que se pense em algo mais seguro ou mais atualizado, que não esteja ainda sob risco de conhecimento das autoridades. Mas o crime, o acerto, o sobrepreço, o acordo entre os falsos concorrentes das licitações, o vazamento de requerimentos da concorrência, o conluio, a participação do gestor público que ordena a despesa, tudo isso, segue descansadamente o seu curso.
A concorrência fraudada, enfim, é um teatro armado, uma pantomima que faz todo o sentido para quem observa sem o conhecimento do que ocorre por debaixo dos panos. A olho nu torna-se quase impossível assinalar os trambiques. E seguem inventando expedientes como “consultorias” paralelas, palestras e doações destinadas às campanhas políticas, tudo para receberem as vultosas propinas.
É um crime que o grande prejudicado, a vítima, somos todos nós, a sociedade, que está fora do ciclo, da roda criminosa. Todos os participantes e atores do esquema concorrem para o resultado nocivo e por isso não há um único elo que possa comprometer o sucesso da empreitada delituosa. Esse é o grande desafio das instituições que conduzem investigações e promovem a persecução penal, seja a Polícia Federal ou Ministério Público Federal, em seus respectivos quadrados, pois tais delitos ocorrem como um câncer, e nos fazem invariavelmente gastar o equivalente a três Brasis para manter um Brasil.
Se a História demonstra que esses crimes vêm sendo praticados há anos com a mesma receita e o mesmo modus operandi, a Lava Jato descortina que hoje tais delitos foram estendidos, institucionalizados e se encontram fortemente arrimados nas plataformas governamentais, contando com suporte e escudos políticos como nunca antes registrado.
Os crimes em tela, de tão lucrativos, acabam servindo de estofo para o estabelecimento do que já se convencionou chamar, sem exageros, de uma cleptocracia, isto é, um estado literalmente governado por ladrões.
O momento é de acreditar nas instituições do estado brasileiro, como a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça.
Não estamos vivenciando um simples quadro, mas um processo, algo dinâmico e fruto do amadurecimento das instituições, e digno de regozijo popular, pois estão sendo atingidos os historicamente intocáveis, os que se achavam donos do Brasil, os membros das elites políticas anacrônicas, das velhas e desbotadas oligarquias.
Se tivéssemos de buscar um único motivo para continuarmos a ir para as ruas, deveríamos escolher clamar pelas instituições encarregadas das investigações da Lava Jato, em especial pela blindagem e autonomia orçamentária e administrativa da Polícia Federal, hoje umbilical e desconfortavelmente subordinada ao Ministério da Justiça.
A Polícia Federal do Brasil vivencia, como diria Churchill, “its finest hour”, enfrentando o maior desafio de sua história; se vencê-lo o fará em nome de toda a sociedade brasileira.
12 de dezembro de 2016
Jorge Pontes é delegado da Polícia Federal e foi diretor da Interpol no Brasil
O que observamos, com perplexidade, é que nesses crimes envolvendo concorrências públicas, os perpetradores não se intimidam, não recuam um milímetro sequer, inclusive quando se percebem investigados. Ao contrário de um homicídio ou de um caso de tráfico de drogas, nos quais os criminosos que os planejam refreiam seus atos assim que vêem como alvos de uma investigação, suspendendo de imediato a ação criminosa, os delinquentes que promovem tais fraudes em licitações não arrefecem mesmo quando sabem que estão na mira das autoridades.
Como todas as partes que atuam nesses esquemas encontram-se arranjadas e acordadas, estas, ao se verem como alvos de investigações, simplesmente tomam, por cautela, duas únicas e singelas providências, a saber: param de falar ao telefone e “descombinam” a forma de pagamento. Começam a se encontrar pessoalmente ou usam números celulares pré-pagos recém adquiridos, ou diariamente adquiridos, e suspendem o pagamento dos kickbacks, ou as vezes nem suspendem, mas criam alternativas para seu redirecionamento. Se, por exemplo, o acordo inicial era depositar na conta de um parente de um dos envolvidos ou mandar o dinheiro para uma conta no Uruguai, essa medida é suspensa até que se pense em algo mais seguro ou mais atualizado, que não esteja ainda sob risco de conhecimento das autoridades. Mas o crime, o acerto, o sobrepreço, o acordo entre os falsos concorrentes das licitações, o vazamento de requerimentos da concorrência, o conluio, a participação do gestor público que ordena a despesa, tudo isso, segue descansadamente o seu curso.
A concorrência fraudada, enfim, é um teatro armado, uma pantomima que faz todo o sentido para quem observa sem o conhecimento do que ocorre por debaixo dos panos. A olho nu torna-se quase impossível assinalar os trambiques. E seguem inventando expedientes como “consultorias” paralelas, palestras e doações destinadas às campanhas políticas, tudo para receberem as vultosas propinas.
É um crime que o grande prejudicado, a vítima, somos todos nós, a sociedade, que está fora do ciclo, da roda criminosa. Todos os participantes e atores do esquema concorrem para o resultado nocivo e por isso não há um único elo que possa comprometer o sucesso da empreitada delituosa. Esse é o grande desafio das instituições que conduzem investigações e promovem a persecução penal, seja a Polícia Federal ou Ministério Público Federal, em seus respectivos quadrados, pois tais delitos ocorrem como um câncer, e nos fazem invariavelmente gastar o equivalente a três Brasis para manter um Brasil.
Se a História demonstra que esses crimes vêm sendo praticados há anos com a mesma receita e o mesmo modus operandi, a Lava Jato descortina que hoje tais delitos foram estendidos, institucionalizados e se encontram fortemente arrimados nas plataformas governamentais, contando com suporte e escudos políticos como nunca antes registrado.
Os crimes em tela, de tão lucrativos, acabam servindo de estofo para o estabelecimento do que já se convencionou chamar, sem exageros, de uma cleptocracia, isto é, um estado literalmente governado por ladrões.
O momento é de acreditar nas instituições do estado brasileiro, como a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça.
Não estamos vivenciando um simples quadro, mas um processo, algo dinâmico e fruto do amadurecimento das instituições, e digno de regozijo popular, pois estão sendo atingidos os historicamente intocáveis, os que se achavam donos do Brasil, os membros das elites políticas anacrônicas, das velhas e desbotadas oligarquias.
Se tivéssemos de buscar um único motivo para continuarmos a ir para as ruas, deveríamos escolher clamar pelas instituições encarregadas das investigações da Lava Jato, em especial pela blindagem e autonomia orçamentária e administrativa da Polícia Federal, hoje umbilical e desconfortavelmente subordinada ao Ministério da Justiça.
A Polícia Federal do Brasil vivencia, como diria Churchill, “its finest hour”, enfrentando o maior desafio de sua história; se vencê-lo o fará em nome de toda a sociedade brasileira.
12 de dezembro de 2016
Jorge Pontes é delegado da Polícia Federal e foi diretor da Interpol no Brasil
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