"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

BRASIL: OS INQUIETANTES SINAIS DE UMA RUPTURA INSTITUCIONAL



“A situação do país não deveria causar tanta surpresa”

Nenhum “meme” comparando os acontecimentos recentes com a série televisiva “House of Cards” – que até eram engraçados quando Eduardo Cunha ainda presidia a Câmara dos Deputados – dá conta do que vem acontecendo, com vertiginosa rapidez, no Brasil. 
Embora pareça desafiar a imaginação do mais sagaz dos roteiristas, a situação do país não deveria causar tanta surpresa. 
Depois de quase 15 anos de governos francamente populistas, que aparelharam completamente os órgãos estatais, distorceram grosseiramente todas as estatísticas e pretenderam se apossar do país como se ele fosse a sede campestre do sindicato dos bancários, algum estrago era de se esperar – e todos os índices o revelam, agora que se afastou um pouco do “filtro” imposto pela militância empregada em cargos de comissão. Saúde, educação, renda, emprego: as coisas estão iguais ou piores do que quando o PT assumiu o poder central. 
O dano, no entanto, é mais profundo: depois de quase duas décadas de um “subtexto” segundo o qual a democracia é apenas o meio aparente para imposição de um programa ideológico (e um projeto de poder e de locupletamento), isso parece ter se espalhado como a mais agressiva das metástases pelos três poderes da República.

Rios de tinta já foram gastos explicando como a cultura brasileira é do “jeitinho”: furar a fila fingindo que “não entendeu” onde ela termina; obter uma vantagem à custa da desvantagem dos outros; a carteira perdida com dinheiro e devolvida só com os documentos etc. 
Falando em “carteira”, não podemos esquecer de outro hábito típico do brasileiro concursado e do parente de autoridade: a famosa “carteirada”, expediente cuja utilização é recorrentemente noticiada e que acontece sempre que um juiz, promotor (ou filho/esposa/sobrinho de algum deles) é flagrado bêbado em uma blitz – é batata: a autoridade ou seu parente vão pra casa; o policial que apenas cumpriu sua função ao impedir um condutor bêbado de continuar dirigindo acaba preso ou perdendo o emprego. Isso acontece com frequência e já é tão representativo de nossa cultura quanto o samba ou o boi-bumbá. Pois então, como se não bastasse a toda a instabilidade que acompanhou o impeachment – derivada não só da crise política, mas da delicada situação econômica do país – teve início um confronto entre os poderes Legislativo e Judiciário, a culminação simbólica do teste de resistência pelo qual vem passando a “jovem democracia” brasileira. E é mesmo uma luta repleta de simbolismo.

De um lado, o Poder Judiciário: representado por funcionários concursados e vitalícios, donos dos maiores salários do país e praticantes de uma ética de trabalho sui generis: há juízes e desembargadores que “trabalham em casa” – não nos finais de semana ou depois do expediente, mas durante ele todo, em dias úteis. 
Os chamados “supersalários” são uma tradição do Judiciário. Quando as leis de transparência passaram a vigorar, obrigando os poderes a divulgar quanto gastam e com o que, logo se deu um jeito de “dar uma curva” na obrigação, separando “salários” e “subsídios” de “vantagens eventuais”. Assim é que há juízes, desembargadores – e também promotores e procuradores – que recebem cerca de R$ 300 mil por mês, mas cujo “salário” respeita o teto constitucional, sendo o restante da renda constituída de “penduricalhos” que, por algum mistério insondável, não são divulgados nos portais da transparência.

De outro lado, o Legislativo: dependendo do voto popular para exercer o poder, deputados e senadores tem um perfil diferente de juízes e promotores, os quais passam em concurso e, assim, por terem dependido apenas de si próprios (na maioria dos casos) para obter a tão almejada carreira, tendem a ser um pouco mais, digamos, “seguros de si”. Políticos precisam fazer cálculos eleitorais e refletir um pouco mais sobre suas atitudes tendo em vista o próximo pleito: juízes e promotores precisam se preocupar apenas com a terrível perspectiva de uma aposentadoria forçada – mas integral… 
De qualquer forma, o Legislativo representa, na forma do manancial inesgotável de escândalos que protagoniza, o lado do brasileiro que fura a fila, rouba o dinheiro da carteira achada na rua, obtém grandes e pequenas vantagens: esquemas de propina e tráfico de influência com os quais já estamos não só habituados, mas de saco cheio. O Judiciário personifica a carteirada. São como metades divorciadas não de uma laranja, mas da jaca que é o Brasil.

Depois de convivência pacífica e de ajuda mútua entre Legislativo e Judiciário ao longo de décadas, a operação Lava Jato – mais do que um expediente Judiciário, um caso de estudo para a ciência política – vem alterando a estrutura do poder político e relembrando que entre as atribuições institucionais dos poderes está a fiscalização mútua. 
O Judiciário, por definição, manda punir criminosos, entre os quais há políticos de todos os matizes e que já começaram a sentir agudamente a mudança dos ventos e a possibilidade concreta de pararem na cadeia. 
Eles se arregimentaram para aprovar, a toque de caixa, leis que dificultem a persecução a seus crimes; de outro lado, responderam à investida do Judiciário questionando as obscenas sinecuras daquele poder. Tudo isso acabou, ontem, com o STF determinando, por medida liminar, o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado; e com Renan se recusando a cumprir a ordem judicial. 
O assunto está sendo decidido pelo plenário do STF na tarde de hoje, quarta-feira, enquanto essa coluna é escrita. Seja qual for o resultado, o estrago já foi feito: vivemos sob uma crise institucional grave, com o Poder Executivo sendo capitaneado pelo vice-presidente em um mandato tampão; o Legislativo e o Judiciário em disputa, e grande parte da classe política sob escrutínio da Polícia Federal. 
A legitimidade dos mandatários se evapora a cada dia – e a pouca legitimidade de quem não foi eleito, como ministros do STF, é posta à prova por aventuras argumentativas como a de Luís Roberto Barroso, ativista judicial de carteirinha, que não poderia ter escolhido um momento pior e mais inoportuno para, novamente, se pavonear – apenas queimou o filme do STF e, pasme-se, fomentou mais discussão sobre tripartição de poderes e os malefícios do ativismo judicial do que “políticas públicas e aborto”, como ele pretendia.

Enfim, os poderes da República, por intermédio de seus líderes e integrantes, nesse exato momento, se comportam como crianças que comeram muito chocolate no recreio da escola – hiperativas, brigando, correndo, gritando, puxando o cabelo e roubando o lanche umas das outras. Se as coisas não se acalmarem, não vale reclamar quando o bedel intervier.


O8 de dezembro de 2016
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.

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