"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

QUÃO REPRESENTATIVA É A NOSSA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA?

“Nosso sistema eleitoral distorce esse princípio”


O voto é universal no Brasil desde 1936, o que significa que, desde esta data, qualquer cidadão brasileiro no gozo de seus direitos políticos tem o direito de votar e ser votado, o que se chama de cidadania ativa e passiva. Através disso, se busca garantir representação política igualitária a todos aqueles que gozem de nossa cidadania.

Só que, na prática, por uma série de regras, nosso sistema eleitoral distorce esse princípio até o ponto em que a própria ideia de que haja representatividade se torna, na melhor das hipóteses, apenas uma boa intenção, e na pior delas uma mentira escancarada.

O inciso I do art. 45 da Constituição Federal dispõe:

O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições (…)

A leitura apressada parece confirmar a conclusão de que todos os cidadãos brasileiros estão igualmente representados. Infelizmente, o arremate do dispositivo legal citado enterra qualquer esperança nesse sentido:

para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.

A forma de cálculo da representação eleitoral é feita pelo TSE com base nos dados do último censo realizado. No censo de 2010, por exemplo, apurou-se que a população total era de 190,755 milhões de habitantes. Esse número foi dividido pelo número de cadeiras na Câmara (fixado em 513). Os estados que não alcançaram o número mínimo de 8 deputados foram “promovidos” a esse total (isso ocorreu em 11 estados). O (único) estado que ultrapassou o limite de 70 foi “rebaixado” a esse total (caso de São Paulo). Esse critério é responsável por preencher 496 das 513 cadeiras da Câmara. As demais são distribuídas entre os estados em atenção a outros critérios demográficos.

Não é incomum que, de uma eleição para outra, alguns estados percam representação e outros a ganhem, em virtude de variação populacional. Para 2014, por exemplo, isso aconteceu com 13 estados. Alguns, como Alagoas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, elegeram menos deputados em 2014, e outros como Amazonas, Minas Gerais e Santa Catarina elegeram mais.

Entretanto, por mais que a população varie, nenhum estado pode eleger menos de 8 deputados, ou mais de 70. E temos aí a primeira (e grave) distorção do nosso sistema eleitoral.

São Paulo é o maior colégio eleitoral, tendo registrado, nas eleições de 2006, um total de 28.037.256 eleitores, ou cerca de 22% do eleitorado nacional. Isso dá pouco mais de 400.000 eleitores para cada deputado eleito pelo estado de São Paulo.

O segundo maior colégio eleitoral do Brasil é Minas Gerais, que registrou 15.019.136 eleitores aptos, ou 10,6% do eleitorado, que elegeram 53 deputados federais. Em outras palavras, em Minas Gerais há um deputado para cada cerca de 283 mil eleitores.

O voto de um mineiro, portanto, vale muito mais do que o voto de um paulista. Ainda assim, nenhum voto é tão valioso quanto o de um eleitor de Roraima. Em 2010, Roraima registrou pouco mais de 271.000 eleitores, ou menos de 0,3% do total de eleitores em todo o Brasil. Pelo artigo 45 da CF, esses eleitores elegeram um mínimo de 8 deputados federais. Cada deputado federal roraimense eleito em 2010, assim, acabou representando apenas 33 mil brasileiros. O voto de um eleitor de Roraima, na prática, vale 12 vezes mais que de um paulista, e quase 9 vezes mais que de um mineiro.

Pra que fique mais claro: com 22% do eleitorado nacional, São Paulo elege menos de 14% da Câmara de Deputados. Minas Gerais tem uma representação mais ou menos equivalente ao seu número de eleitores. E Roraima, com 0,3% do eleitorado, elege 1,5% do total de representantes na Câmara Baixa nacional.

Na democracia representativa brasileira, você é discriminado em virtude do local onde deposita seu voto.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à eleição no Senado. O legislativo brasileiro é bicameral, inspirado no sistema inglês onde há uma “Câmara Alta” e uma “Câmara Baixa”, ou “Câmara dos Lordes” e “Câmara dos Comuns”. A Câmara dos Comuns é o local de representação popular, e a Câmara dos Lordes é onde a aristocracia está representada. O sistema funciona bem há séculos porque é coerente com sua origem: os “comuns” são eleitos por comuns”, mas os “lordes” não são eleitos pelo voto popular. Além disso, as duas casas tem atribuições totalmente distintas: não há sobreposição de funções.

Esse arranjo foi transposto para nosso país através do sistema norte americano, que a seu turno justificou seu bicameralismo pra evitar que o norte mais populoso obliterasse o sul mais esparsamente povoado. Assim, o nosso Senado Federal (e a expressão é redundante, visto que, ao contrário do que ocorre nos EUA, não há Senados Estaduais) é o local de representação não do povo, mas dos estados que integram o pacto federativo.

O problema é que, ainda que os estados, e não o povo, sejam os representados no Senado Federal, é pelo voto popular que os senadores chegam a ocupar suas cadeiras, através de eleições majoritárias (diferentemente da votação para deputados federais, estaduais e vereadores, que é proporcional). Além disso, como o sistema é foi copiado do norte-americano e não do inglês, na prática o Senado deve rever todo projeto de lei aprovado na Câmara, e vice-versa. Destarte, embora a gênese do Senado Federal difira daquela da Câmara de Deputados, na prática seu funcionamento é idêntico (a exceção das matérias que a Constituição Federal reserva exclusivamente ao Senado, como processar e julgar o Presidente da República e seus Ministros de Estado em crimes de responsabilidade).

Podemos, então, usar os mesmos números já citados para calcular se todos os brasileiros são iguais na hora de votar.

São Paulo, que elege os mesmos 3 senadores que quaisquer outros estados, tem um senador para cada 9,3 milhões de eleitores. Minas Gerais elege um senador para cada 5 milhões de eleitores. E novamente, o eleitor de Roraima é uma espécie de “super-cidadão”, já que elege um senador para cada 90 mil eleitores.

Uma comparação útil que exemplifica a disparidade acima mencionada: o atual presidente do Senado Federal, Jorge Viana, foi eleito pelo Acre com 205 mil votos. Caso Michel Temer e Rodrigo Maia se ausentem, se tornará Presidente da República (há controvérsias em relação ao fato de ele poder ou não assumir a Presidência em caso de vacância, dada a interinidade). Já Eduardo Suplicy recebeu 6,17 milhões de votos por São Paulo em 2014, e foi chutado do Senado. Esse ano, elegeu-se vereador em São Paulo. Com 301 mil votos. Em miúdos: o possível Presidente do Brasil teve menos votos que um vereador por São Paulo.

Mais uma vez, repita-se, é evidente que a Câmara é locus de representação popular, ao passo que o Senado é onde os Estados ostentam representação paritária, independentemente de tamanho ou população. O raciocínio aqui traçado, contudo, se justifica por dois fatores: ambas as casas legislativas são revisoras uma da outra, e os membros de uma e de outra são eleitos pelo mesmo voto popular.

A soma de voto proporcional na Câmara Baixa, aumentando-se artificialmente o número de deputados de estados menos populosos e diminuindo o dos mais populosos, combinada com a representação paritária na Câmara Alta, contribui para o “divórcio” entre representantes e representados. Por exemplo, em abril de 2015 senadores se organizaram numa frente suprapartidária pra barrar as pautas “conservadoras” do então presidente das Câmara, Eduardo Cunha. “Temos um momento novo na política e um presidente da Câmara que está vindo com uma agenda extremamente conservadora e de supressão de direitos”, afirmou o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), um dos articuladores da criação da frente. “(É preciso) somar força com o presidente Renan Calheiros no enfrentamento dessa ameaça que o presidente da Câmara, lamentavelmente, faz”, disse o 1.º vice-presidente do Senado, Jorge Viana (PT-AC).

Então vamos lá: 87% dos eleitores são favoráveis à redução da maioridade penal. 75% são contra a legalização da maconha. 82% são contra o aborto. E vamos lembrar que em 2005 2/3 da população votou NÃO à proibição do comércio de armas, apesar da Presidência da República, desde então e através de “regulamentações”, ter passado por cima da vontade popular e, na prática, ter tornado praticamente impossível a qualquer um comprar uma arma. Além disso, 57% das pessoas se declaram católicas e 25% se dizem evangélicas, e essas pessoas, que formam 82% da população, presumivelmente tem uma visão mais restritiva do conceito de “família” do que o Jean Wyllys. Entretanto, na democracia brasileira, 81 iluminados se arrogam uma sabedoria maior que 80 ou 90 milhões de pessoas. Deputados e senadores, que em tese “representam” seus eleitores, defendem pautas que vão no sentido OPOSTO ao que acreditam seus representados.

O que aconteceria se você desse procuração a um advogado e pagasse seus honorários, mas invés de defender os seus interesses, ele defendesse os interesses dele e sua própria agenda, contrários aos seus?

Resultado direto disso é que apenas 6% da população afirma confiar nos partidos políticos, e 19% no Congresso Nacional, índice inferior ao do Judiciário (29%), emissoras de TV (33%) e da Igreja Católica (59%) – lembrando que as pessoas não votam pra eleger juízes, jornalistas e padres.

A saída para esse impasse existe, e se encontra no mesmo lugar de onde macaqueamos nosso bicameralismo. Nos EUA, os representantes (deputados) são eleitos através de voto distrital puro. Cada estado é dividido em condados, cada condado com uma população mais ou menos equivalente, e em cada condado ocorre uma eleição de maioria simples (votação majoritária), como nas eleições para prefeito, governador ou presidente. Ganha o candidato que tiver mais votos. Como cada candidato só precisa da maioria em seu condado, e não em todo o estado, as campanhas ficam mais baratas, os eleitores em geral conhecem os candidatos, e sabem quem cobrar após as eleições. A seu turno os candidatos estão fortemente vinculados a seus respectivos condados, conhecendo seus problemas e os seus eleitores, o que é garantia de que aquela porção do território, e aquela porção do eleitorado, terão voz ativa no parlamento.

De acordo com a Lei de Duverger, um sistema distrital puro tende a reduzir o número de partidos políticos, convergindo, no longo prazo, ao bipartidarismo forte (a nossa tão sonhada “reforma política”). Esse sistema ainda afasta correntes radicais e grupos de interesse do parlamento, em virtude da aplicação da Teoria do Eleitor Médio. Por esse sistema, tanto Jean Wyllys quanto Tiririca não teriam chegado ao parlamento, o primeiro por falta de densidade eleitoral (obteve 13 mil votos em sua primeira eleição, em 2010), o segundo por falta de conhecimento real dos seus eleitores (concorreria por um distrito com apenas outros 3 ou 4 candidatos, não havendo espaço para o “voto de protesto”). Num sistema em que o candidato precisa, pela proximidade com o eleitor e sua zona eleitoral, lidar com problemas concretos (um distrito pode ter problemas com esgoto a céu aberto, ao passo que outro pode ter deficiência de creches), nenhum candidato poderia se apresentar ao eleitor prometendo “melhorar saúde, educação, transporte e segurança”, nem dizendo “pior que tá não fica”. Cada candidato deveria mostrar que conhece a realidade de seu distrito, e demonstrar como pretende resolver os problemas mais prementes de seus eleitores.

O sistema vigente no Brasil, contudo, enterra qualquer ideia de representatividade que possa estar embutida na palavra “mandato” (do latim “manus data”, de mãos dadas). E junto com ela leva embora qualquer chance de algum dia haver democracia nesse país. Sem melhorar a percepção de representatividade, cada vez mais gente deixará de crer na política como instrumento de mediação de conflitos, e passará a acreditar em soluções rápida e impostas por algum salvador da pátria.


08 de dezembro de 2016
Rafael Rosset é advogado há 15 anos, especialista em Direito Ambiental, palestrante e articulista

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