"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

NULIDADES PARA LEGISLAR

Perderam-se conceitos elementares nessa trajetória cartesiana, fragmentária e reducionista quanto ao entendimento ideal dos fatos e ações

Por que a didática e a pedagogia não se preocupam, mesmo antes da alfabetização das crianças, em ministrar-lhes princípios elementares de cosmologia, biologia e antropologia? Essa visão inicial, certamente, daria ao ser humano maior consciência de sua mínima e verdadeira condição diante da magnitude do Universo, além de situá-lo de maneira mais conveniente dentro da biosfera, do convívio mais harmônico com as demais espécies e com a nossa própria, traduzindo de modo mais claro a condição do indivíduo diante da coletividade. Como a política decorre da organização da sociedade humana, desde a horda, certamente essa abordagem holística haveria de contribuir para um melhor entendimento dos interesses econômicos e sociais que se movimentam em seu tabuleiro.

A aventura da espécie humana, depois do surgimento do homo sapiens, desde seus primórdios, examina o Cosmo a partir de uma visão individualista e pouco pragmática. Ou seja, do particular fragmentário e reducionista, para um hipotético todo. E não o inverso, como deveria, do geral para o particular. Isso dificulta enormemente o entendimento desse todo, pela recomposição cartesiana das partes. Transforma a educação num confuso puzzle, com suas peças embaralhadas. O físico nuclear Fritjof Capra, por exemplo, entende que essa fragmentação reducionista é a responsável por forte distorção da relação do homem com o restante da Natureza e do Cosmo.

A cosmologia, nesse sentido, é a abordagem ideal, porque transita sempre entre metafísica e dialética. Mas é inquestionável que o número de energias cósmicas e telúricas que desconhecemos é incomensurável e pouquíssimo estudado pela ciência cartesiana. O que tem feito essa ciência é fragmentar a realidade anterior e reapresentá-la sob suas fórmulas incompletas e precárias. A água da fonte é cristalina e potável, independentemente de se saber se o seu pH é neutro, alcalino ou ácido. Sai da floresta e faz bem às bocas e aos corpos sedentos. Igualmente a antropologia, no estudo da nossa espécie, faz a ponte entre criacionismo e evolucionismo, tal como a cosmologia faz entre metafísica e dialética.

Não é diferente com a ciência política. Perderam-se conceitos elementares nessa trajetória cartesiana, fragmentária e reducionista quanto ao entendimento ideal dos fatos e ações, como esse papel do indivíduo na coletividade, citado anteriormente. Turva-se o olhar para a própria substância da política, que é o bem coletivo, perversamente, em favor do ator/personagem/indivíduo que aspira ao poder, gerando aberrações como o culto da personalidade, primeiro passo para a criação de sistemas autoritários, carismáticos, voluntaristas e despóticos. Vide o caso Trump! A própria mídia padece desse entendimento perverso e transita nessa falsa senda. As manchetes contemplam nomes de atores políticos e de personalidades públicas, para o bem ou para o mal. Raramente destacam princípios políticos a serem defendidos que realmente digam respeito à coisa pública. Isso implica em indução do leitor/eleitor ao falso dilema da escolha de seu candidato, não pelo que este possa representar em termos de projetos, mas pela projeção pessoal e pelo carisma eventuais.

Jogadores de futebol famosos, sem qualquer formação universitária ou rudimentares conhecimentos de direito público ou administrativo, lançam-se candidatos a legislar em questões de altíssima complexidade ou de importância transcendental para o interesse público sem o mínimo preparo ou experiência. Apenas porque são eventualmente notórios.

É uma visão estreita da política. Um apequenamento da importância do legislador. Não se leva em conta, por exemplo, ao sufragar um tal candidato com votações estupendas — ou um palhaço de circo contestador — que o maior prejudicado é o próprio eleitor que nessas figuras vota. Esquece-se, nessa prática leviana e reducionista, que quem faz as leis que os juízes aplicam são exatamente esses legisladores. Perde-se a visão do coletivo em favor de um único indivíduo ungido. Imagine-se um parlamento em que predominem essas bizarras figuras, ainda mais potencializado pela existência obscena do voto de legenda, que carrega, a reboque, outras nulidades como legisladores.



09 de agosto de 2016
Nelson Paes Leme, O Globo

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