Antes das pancadas, lembrem-se que também sou brasileiro, moreno como vocês, como diz o verso de Drummond. No entanto, o ufanismo me constrange. Dizem que é um antídoto para o complexo de vira-lata. Será? Complexos têm a manha de reaparecer nos seus antídotos. O sexo, por exemplo, reprimido com uma intensa dedicação à geometria, pode ressurgir numa estranha paixão pelas curvas, triângulos e círculos.
Num hotel do interior de Goiás acompanhei a cerimônia final dos Jogos Olímpicos. Confesso que fiquei meio sem jeito quando ouvi Carlos Nuzman declarar no discurso de encerramento que o Rio era o melhor lugar do mundo. A plateia do discurso era gente de todos os cantos do planeta. Gente que também gosta de onde vive. Se encontrasse o Nuzman, e creio que não virá nos próximos dias ao interior de Goiás, iria propor uma negociação: o Rio é um dos melhores lugares do mundo.
Não creio que tenha ferido outras sensibilidades além da minha. A frase inicial do discurso atenua qualquer juízo: sou o homem mais feliz do mundo. Uma frase que ouvimos de um noivo inebriado na noite de núpcias, um pai na formatura da filha. Quem nega um desconto a um homem que se diz o mais feliz do mundo? No entanto, a Olimpíada é um momento planetário em que as sensibilidades nacionais estão muito à flor da pele. O Brasil é uma sociedade multicultural, mas não recebeu grandes fluxos migratórios no final do século. Na Europa, o multiculturalismo, com todas as suas deformações, aguçou mais ainda essa consciência da presença do outro, tornou mais delicada essa teia nervosa da convivência na diversidade.
Na mesma televisão do quarto tinha visto Brasil e Itália disputando o ouro no vôlei. Torcia por uma a vitória do Brasil e mais uma vitória do Bernardinho. Mas tinha de descarregar e ver imagens do trabalho matinal. Optei por seguir trabalhando no computador, ligado apenas na voz dos locutores. Foi impossível não só pela emoção da partida. Só pelo áudio precário de algumas TVs no interior, não conseguiria saber o resultado. Os pontos do Brasil eram nítidos pelos gritos do locutor. Os da Itália, reportados de forma tão breve que seria preciso levantar sempre para ver o letreiro na tela. O episódio dos nadadores americanos é o mais delicado para discutir. Cometeram um grave erro. Mas foram punidos em vários níveis. Pagaram pela destruição da placa, em seguida foram processados, um deles pagou multa e Bryan Lochte perdeu a quase totalidade de seu patrocínio. Os Estados Unidos cooperaram com a Justiça brasileira.
O balanço registra um equilíbrio entre crime e castigo. Num site de notícias, li um artigo em que o autor dizia: se os brasileiros fizessem nos Estados Unidos seriam mandados para Guantánamo. O prefeito Eduardo Paes, que se saiu bem na gestão do megaevento, disse que desprezava os nadadores porque tinham falhas de caráter. Houve quem defendesse que fossem banidos do esporte. Se os americanos mandassem todos os mentirosos para Guantánamo iriam realmente afundar a ilha com um gigantesco aumento populacional. A frase do prefeito Eduardo Paes me surpreendeu. É um dirigente do PMDB. O partido não costuma ter o discurso de rigor moral na avaliação do outro. A própria cúpula, em escala nacional, é medalha de prata na modalidade defeitos de caráter. Com a derrocada do PT vencedor será desclassificado. E o ouro, vai para quem?
Cada vez que se fala num contexto como anfitrião da Olimpíada, Paes fala pelo Rio e pelo Brasil. Os nadadores precisam nadar. Acabar com a carreira de um atleta de alta performance é uma pena muito dura. E uma cidade tão feliz, hospitaleira, enfim todas as qualidades evidenciadas de novo na Olimpíada, certamente, conhece a fronteira entre justiça e vingança. Critiquei a Olimpíada, um fato irreversível. Meu desejo era de que acontecesse da melhor forma possível. A entrada do saneamento na agenda imediata do governo foi um avanço. A decisão do COI de rever a escolha das cidades-sede, considerando a crise econômica e ambiental no planeta também fortalece a visão das formigas no diálogo com as cigarras. A ideia de aproveitar as cidades que já hospedaram os Jogos corresponde às mudanças de estilo de vida que a escassez de recursos naturais e o aquecimento global recomendam.
Os que sonharam com o sucesso da Olimpíada estavam certos. Os que lembravam o baixo nível de saneamento como uma de nossas fragilidades, também. Li um comentário na rede afirmando que a baía está limpa porque os atletas da vela mergulharam nela, após a vitória. Depois de uma medalha de ouro a pessoa se sente a mais feliz do mundo como o Carlos Nuzman. Se de toda a energia e emoção restar um pouco, que sejam canalizados para os desafios da crise que nos envolve desde antes dos jogos. No fundo, talvez sejamos todos brasileiros com muito orgulho e muito amor. Mas há múltiplas maneiras de expressar esses sentimento, diferentes ritmos, melodias e até mesmo outros versos.
30 de agosto de 2016
Fernando Gabeira, O Globo
Num hotel do interior de Goiás acompanhei a cerimônia final dos Jogos Olímpicos. Confesso que fiquei meio sem jeito quando ouvi Carlos Nuzman declarar no discurso de encerramento que o Rio era o melhor lugar do mundo. A plateia do discurso era gente de todos os cantos do planeta. Gente que também gosta de onde vive. Se encontrasse o Nuzman, e creio que não virá nos próximos dias ao interior de Goiás, iria propor uma negociação: o Rio é um dos melhores lugares do mundo.
Não creio que tenha ferido outras sensibilidades além da minha. A frase inicial do discurso atenua qualquer juízo: sou o homem mais feliz do mundo. Uma frase que ouvimos de um noivo inebriado na noite de núpcias, um pai na formatura da filha. Quem nega um desconto a um homem que se diz o mais feliz do mundo? No entanto, a Olimpíada é um momento planetário em que as sensibilidades nacionais estão muito à flor da pele. O Brasil é uma sociedade multicultural, mas não recebeu grandes fluxos migratórios no final do século. Na Europa, o multiculturalismo, com todas as suas deformações, aguçou mais ainda essa consciência da presença do outro, tornou mais delicada essa teia nervosa da convivência na diversidade.
Na mesma televisão do quarto tinha visto Brasil e Itália disputando o ouro no vôlei. Torcia por uma a vitória do Brasil e mais uma vitória do Bernardinho. Mas tinha de descarregar e ver imagens do trabalho matinal. Optei por seguir trabalhando no computador, ligado apenas na voz dos locutores. Foi impossível não só pela emoção da partida. Só pelo áudio precário de algumas TVs no interior, não conseguiria saber o resultado. Os pontos do Brasil eram nítidos pelos gritos do locutor. Os da Itália, reportados de forma tão breve que seria preciso levantar sempre para ver o letreiro na tela. O episódio dos nadadores americanos é o mais delicado para discutir. Cometeram um grave erro. Mas foram punidos em vários níveis. Pagaram pela destruição da placa, em seguida foram processados, um deles pagou multa e Bryan Lochte perdeu a quase totalidade de seu patrocínio. Os Estados Unidos cooperaram com a Justiça brasileira.
O balanço registra um equilíbrio entre crime e castigo. Num site de notícias, li um artigo em que o autor dizia: se os brasileiros fizessem nos Estados Unidos seriam mandados para Guantánamo. O prefeito Eduardo Paes, que se saiu bem na gestão do megaevento, disse que desprezava os nadadores porque tinham falhas de caráter. Houve quem defendesse que fossem banidos do esporte. Se os americanos mandassem todos os mentirosos para Guantánamo iriam realmente afundar a ilha com um gigantesco aumento populacional. A frase do prefeito Eduardo Paes me surpreendeu. É um dirigente do PMDB. O partido não costuma ter o discurso de rigor moral na avaliação do outro. A própria cúpula, em escala nacional, é medalha de prata na modalidade defeitos de caráter. Com a derrocada do PT vencedor será desclassificado. E o ouro, vai para quem?
Cada vez que se fala num contexto como anfitrião da Olimpíada, Paes fala pelo Rio e pelo Brasil. Os nadadores precisam nadar. Acabar com a carreira de um atleta de alta performance é uma pena muito dura. E uma cidade tão feliz, hospitaleira, enfim todas as qualidades evidenciadas de novo na Olimpíada, certamente, conhece a fronteira entre justiça e vingança. Critiquei a Olimpíada, um fato irreversível. Meu desejo era de que acontecesse da melhor forma possível. A entrada do saneamento na agenda imediata do governo foi um avanço. A decisão do COI de rever a escolha das cidades-sede, considerando a crise econômica e ambiental no planeta também fortalece a visão das formigas no diálogo com as cigarras. A ideia de aproveitar as cidades que já hospedaram os Jogos corresponde às mudanças de estilo de vida que a escassez de recursos naturais e o aquecimento global recomendam.
Os que sonharam com o sucesso da Olimpíada estavam certos. Os que lembravam o baixo nível de saneamento como uma de nossas fragilidades, também. Li um comentário na rede afirmando que a baía está limpa porque os atletas da vela mergulharam nela, após a vitória. Depois de uma medalha de ouro a pessoa se sente a mais feliz do mundo como o Carlos Nuzman. Se de toda a energia e emoção restar um pouco, que sejam canalizados para os desafios da crise que nos envolve desde antes dos jogos. No fundo, talvez sejamos todos brasileiros com muito orgulho e muito amor. Mas há múltiplas maneiras de expressar esses sentimento, diferentes ritmos, melodias e até mesmo outros versos.
30 de agosto de 2016
Fernando Gabeira, O Globo
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