"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 27 de agosto de 2016

AO USAR A INDIGNIDADE DO TERMO "HOSPÍCIO", RENAN QUEBROU O DECORO PARLAMENTAR



Renan ofendeu senadores e pacientes das clínicas psiquiátrica













O senador Renan Calheiros, ao chamar o Senado de “hospício”, deste modo demonstrando seu saudosismo dos tempos da Ditadura Militar, desmereceu os senadores, não só por taxá-los como alienados e loucos, como desmereceu a Casa que dirige, comparando-a aos grandes galpões de tortura do passado, como o de Barbacena, galpões que a Ditadura Militar também utilizou para internar e torturar seus presos políticos.
Penso que o senador Renan Calheiros, ao ofender tão duramente seus pares do Senado Federal ao chamá-los de “loucos” e ao Senado de “hospício”, cometeu grave falta de decoro parlamentar, além do crime de calúnia. Num clima tenso, que é o julgamento de impeachment de uma presidente da República que tem ferrenhos adeptos, não era de se esperar que os senadores se comportassem como numa Igreja assistindo uma missa.
Além do mais, ofende aos pacientes psiquiátricos, que não são baderneiros e se tratam em consultórios e casas de saúde dignas, com tratamento multidisciplinar, que não podem ser confundidas com a estrutura dos gulags da Rússia stalinista, aqui chamados de hospício.
Ofende também aos profissionais de saúde mental que hoje trabalham em equipe multidisciplinar nos CAPS do SUS , com dedicação, apesar dos baixos salários, e as modernas clínicas privadas que cuidam desta clientela, de forma personalizada e que em vez de tratar uma “doença”, tratam de pessoas acometidas de conflitos biopsicossociais. Merece, o senador Renan Calheiros uma ação por quebra de decoro parlamentar e ofensa a milhões de brasileiros.
“O ALIENISTA” -Sempre que algum aluno me pergunta o que deve ler para começar a compreender a questão da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, indico sem pestanejar “O alienista”, de Machado de Assis, conto publicado sob forma de folhetim entre 1881 e 1882.  Machado foi, sem sombra de dúvida, o pioneiro na crítica ao saber e às instituições psiquiátricas no Brasil (e talvez no mundo – “Enfermaria no 6”, de Anton Tchekhov, é de 1892).
Nesse conto clássico, Machado antecipou todas as críticas ao paradigma psiquiátrico que anos depois seriam aprofundadas por autores como Michel Foucault, Franco Basaglia, Erving Goffman, Ronald Laing, David Cooper, entre outros.
É realmente impressionante a sagacidade do autor, a forma como ele apreende o processo de constituição da psiquiatria e como identifica e destaca seus pontos mais frágeis e seus dispositivos de poder.
DEMANDA EXTERNA – Primeiro, quando o escritor se refere à necessidade de criação do hospício como uma demanda externa, artificial, vinda de um cientista recém-chegado da Europa: “A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes”, diz Simão Bacamarte, protagonista da história.
Depois, quando evoca o princípio universal de internar todos os loucos em um único espaço, pois só aí seria possível pesquisar e identificar todos os tipos de loucura. Sem falar na idéia segundo a qual a loucura seria a ausência da razão: “Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”.
HISTÓRIA REAL – Em “O alienista” tudo nos aproxima da história real de Philippe Pinel e de seu trabalho na construção do alienismo no final do século XVIII. Suspeito, aliás, que Machado de Assis tenha acompanhado bem de perto a trajetória de João Carlos Teixeira Brandão, conhecido como o “Pinel Brasileiro”.
Fundador da psiquiatria brasileira, Brandão fez severas críticas ao primeiro hospício no país, o D. Pedro II, no Rio de Janeiro, do qual foi nomeado diretor médico em 1890. Nesse mesmo ano, assumiu também a direção da Assistência Médico-Legal aos Alienados, o primeiro órgão nacional de normatização e coordenação da assistência psiquiátrica.
Com Machado de Assis podemos questionar: por que um saber tão frágil e inconsistente acumula tanto poder? Essa foi a pergunta de Foucault, muito tempo depois de Simão Bacamarte já havê-la respondido. Aliás, se Machado tivesse escrito “O alienista” um século depois, poderíamos concluir que Foucault, Basaglia e todos os outros aos quais me referi acima estavam entre suas leituras.
A FORÇA DO TRABALHO – Uma das mais importantes aplicações do tratamento moral estava no trabalho. Daí a origem de inúmeras instituições psiquiátricas, denominadas “colônias de alienados”, espalhadas por todo o mundo, particularmente no Brasil, onde foram responsáveis por parte considerável de nossos quase 100 mil leitos psiquiátricos no final da década de 1980.
A ide
ia era levar os alienados para os hospitais-colônia, onde pudessem trabalhar, principalmente na lavoura, pois o trabalho os recuperaria. A expressão “colônia” é muito curiosa e provém da noção de um aglomerado de pessoas de uma mesma origem que se estabelecem em terra estranha, voltadas para um mesmo objetivo.
Com essa concepção foram criadas, em 1890, meses após a proclamação da República, as primeiras colônias de alienados do Brasil, na Ilha do Governador, estado do Rio de Janeiro. Lá trabalhou o pai do escritor Lima Barreto que, assim como o filho, foi mais tarde internado num hospício.
LIMA BARRETO – Isso resultou, pelas mãos do filho, em algumas das mais importantes obras da literatura brasileira, todas elas muito críticas ao modelo e às instituições psiquiátricas: “Diário do hospício”, “Cemitério dos vivos” e “Como o homem chegou”. Não considero equivocado incluir, no aspecto da crítica à ciência e ao positivismo de Estado, o “Triste fim de Policarpo Quaresma” – outra obra-prima.
Em 1978, eu e mais dois colegas plantonistas do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, decidimos denunciar uma série de violações aos direitos humanos das pessoas lá internadas. Como se tratou de uma denúncia escrita, registrada em documento oficial, a resposta foi imediata e violenta, como era comum naqueles tempos.
Além de nós três, foram demitidos mais 263 profissionais que ousaram nos defender ou que confirmaram nossas denúncias. Nasceu aí o movimento de trabalhadores da saúde mental que, dez anos mais tarde, transformou-se no movimento de luta antimanicomial, ainda hoje o mais importante movimento social pela reforma psiquiátrica e pela extinção dos manicômios.
PRESOS POLÍTICOS – Não denunciamos apenas os maus-tratos aos “pacientes psiquiátricos”, mas também a presos políticos que, a exemplo dos gulags da Rússia stalinista, eram internados pela Ditadura Militar e torturados nessas instituições.
Descobri que a situação do Rio de Janeiro era a mesma de outros Estados e, para minha tristeza, constatei mais tarde, que o modelo era quase universal, predominantemente asilar e manicomial, com milhares de pessoas abandonadas em macroinstituições financiadas pelo poder público, fossem elas públicas ou privadas.
Na época os leitos privados já eram mais de 70 mil, todos pagos pelo setor público.
SORTE GRANDE – Para nós a vinda de Basaglia ao Brasil naquele ano de 1978 foi considerada a “sorte grande”. E ele retornou ao país no ano seguinte, quando fez uma visita ao Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, um dos mais cruéis manicômios brasileiros.
Suas visitas seguidas acabaram produzindo uma forte e decisiva influência na trajetória de nossa reforma psiquiátrica.
Em Barbacena, Basaglia comparou a colônia de alienados a um campo de concentração, reforçando nossas denúncias de maus-tratos e violência. Sua presença aqui recebeu tratamento e atenção especiais da imprensa, além de dar origem ao clássico documentário de Helvécio Ratton, “Em nome da razão”, de 1980, um marco da luta antimanicomial brasileira, ao lado de uma premiada série de reportagens de Hiran Firmino, publicadas inicialmente no jornal Estado de Minas e posteriormente pela Editora Codecri sob o título “Nos porões da loucura”, de 1982.
INSTITUIÇÃO ARCAICA – O hospício, ou manicômio, caminha inevitavelmente para o fim devido a seu caráter arcaico de instituição fundada há mais de 300 anos para responder a outras demandas sociais.
Sua persistência está muito mais relacionada ao fator econômico do que ao valor terapêutico ou social. Os hospícios, como já nos ensinou Simão Bacamarte, devem ser fechados. Esse deve ser o destino de todas as Casas Verdes, mesmo das que se escondem atrás de discursos progressistas. Quem nos garante que o alienado não é o alienista?
A frase de Caetano Veloso “de perto ninguém é normal” tem sido pretexto para questionarmos o conceito de normalidade, tão caro no campo da saúde mental.
Curiosamente, a mesma frase foi utilizada em um congresso de psiquiatria em São Paulo para demonstrar como toda a sociedade é, no fundo, carente de algum tipo de terapêutica.

27 de agosto de 2016
Ednei Freitas

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