“A utopia vem sendo permanentemente adiada. Nunca ser realizou, mas amanhã, quem sabe? Com um pouco mais de boa vontade, mais algumas voltas no parafuso, mais algumas milhares de vozes silenciadas, de presos recolhidos a masmorras, de opositores executados – e já chegamos lá” (Texto de José Arthur Rios, extraído da Apresentação do livro “A Grande Parada” de Jean François Revel, editado no Brasil em 2001, pela Biblioteca do Exército Editora)
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Durante o outono de 1938, quando a onda de prisões e execuções atingia o seu paroxismo na Rússia, uma nova obra de Stalin, intitulada “Do Materialismo Dialético e Histórico”, foi publicada. Entre a assinatura de duas sentenças de morte, o ditador redigira essa “obra filosófica”.
Desde o primeiro parágrafo, o leitor estupefato topa com a seguinte definição: “O Materialismo Histórico é a concepção do mundo do Partido marxista-leninista”. Isso significa afirmar que toda declaração do Partido se transforma, ipso-facto, em materialismo histórico, mesmo que ele se afaste das teses expostas por Marx.
Essa maneira tão simples de professar sabedoria marxista, sem mesmo recorrer a Marx, sobreviveu ao culto de Stalin. A despeito do XX Congresso do PCUS, os escritos do ditador continuam a figurar na lista das leituras edificantes em matéria de marxismo-leninismo.
Marx, em pessoa, afirmou um dia, brincando, que não era marxista. Essa brincadeira se revelou profética: Para a Nomenklatura, o marxismo não é o que disse ou escreveu Marx. É apenas o que o Partido, quer dizer, a classe dos nomenklaturistas, afirma em um certo momento.
A ideologia soviética é ou não marxista?
As idéias divergem consideravelmente quanto à natureza exata do que seja o marxismo. Marx considerava sua obra uma teoria científica, expondo teses perfeitamente definidas. Nesse sentido, o “marxismo-leninismo” de inspiração stalinista não é certamente marxismo. A propaganda marxista da classe dos nomenklaturistas, ditada por considerações táticas, nada tem estritamente a ver com uma teoria científica.
Mas há outras concepções possíveis do marxismo. Poderia ser a integralidade do que Marx e Engels escreveram durante suas vidas, de seus cadernos de escola aos seus testamentos, passando pelas anotações e comentários, feitos de próprio punho, nas obras que leram. Esse marxismo literal não repousaria sobre o que há de essencial na teoria de Marx, mas sobre citações utilizadas ao capricho das necessidades.
A ideologia nomenklaturista não pode nem mesmo reclamar dessa definição do marxismo. Se bem que ela faça uso considerável de citações extraídas dos escritos de Marx e de Engels, e utilize uma terminologia marxista, salvo algumas teses de Marx que podem servir aos fins de sua propaganda, a Nomenklatura silencia, ao mesmo tempo, sobre uma série de princípios marxistas. Algumas de suas obras foram mesmo oficialmente proibidas, entre elas A História da Diplomacia Secreta do Século XVIII, na qual ele se exprime em termos pouco elogiosos sobre a História da Rússia.
Ao contrário do marxismo, o leninismo não é uma teoria e nem mesmo uma hipótese. É uma estratégia e uma tática para a tomada do Poder, disfarçadas com palavras de ordem marxistas. O leninismo é uma teoria mais familiar à classe dos nomenklaturistas do que o marxismo, mas já é uma relíquia do seu passado, já que há muito tempo ela conquistou o Poder.
O leninismo só poderia, portanto, ser atual em política exterior, pois a conquista do Poder em outros países figura, com efeito, na ordem do dia da Nomenklatura. O espírito subversivo do leninismo pré-revolucionário, como não se adapta mais à situação interna da URSS, a Nomenklatura o eliminou, pois, cuidadosamente, da sua ideologia.
O princípio marxista da abordagem dos fenômenos sociais desapareceu progressivamente da ideologia soviética, a Nova Classe dominante se esforçando em dissimular a própria existência de classes dentro da sociedade soviética. Sua nova abordagem é fortemente marcada pelo que Lenin chamava de “nacionalismo chauvinista de grande potência”. Esse nacionalismo chauvinista não poderia ser relacionado com um nacionalismo russo. Se bem que a Nomenklatura goste de qualificar de “russo” tudo o que refira a ela, elogia, com igual entusiasmo, as virtudes especificamente mongóis, cubanas ou vietnamitas. Internacionalismo socialista? NÃO, pois as qualidades especificamente chinesas, albanesas ou iugoslavas não são objeto de uma admiração semelhante. O nacionalismo chauvinista da Nomenklatura não estabelece uma distinção entre russo e não russo, mas entre aqueles que lhes são submissos e o os que não o são.
A imprensa soviética regurgita a propaganda soviética. O “patriotismo soviético” é celebrado em qualquer ocasião. Para encontrar expressões semelhantes na imprensa ocidental, temos que remontar à Alemanha hitlerista ou à Itália mussolínica. As formas que a propaganda assumiu nesses dois países se parecem, a ponto de se confundirem àquelas confrontadas na União Soviética. A única diferença reside na escolha da terminologia, nazista e fascista de um lado, marxista-leninista do outro.
Mas, o componente fundamental da ideologia oficial soviética não é o marxismo, é o nacionalismo chauvinista de grande potência da Nomenklatura. Ele é a expressão da concepção do mundo dos carreiristas que conseguiram içar-se à frente da grande potência que era União Soviética.
Uma constatação se impõe: essa ideologia lhes assegura, não obstante tudo, um certo apoio popular. A vitalidade de seu nacionalismo chauvinista provém de que ele é menos mentiroso do que os elementos marxistas ou leninistas de sua ideologia.
Com efeito, se os senhores da Nomenklatura não são, pois, nem marxistas – Marx teria abandonado, desgostoso, o sistema que eles edificaram – nem leninistas - os verdadeiros leninistas foram liquidados nos porões da NKVD -, são, por outro lado, russos,na sua maior parte, e acentuando o patriotismo russo, conseguem fazer admitir sua política de grande potência ao povo russo, ou seja, despertar um eco favorável junto dele.
Não se pode, pois, subestimar este fator, pois a Nomenklatura soviética, aliás, lhe deve – e à política de Hitler – a vitória conseguida na II Guerra Mundial. Ela, que a exemplo da nobreza – classe dominante na Rússia czarista -, tomou o cuidado de se isolar do povo, conseguiu, então, renovar os laços com ele através do subterfúgio dessa ideologia pseudopatriótica.
Os leninistas compreenderam as vantagens que a nobreza tirava desta manobra, nos anos que precederam a Revolução, por isto, tentaram romper esse laço ideológico entre a nobreza e o povo russo, propagando conceitos de luta de classes e de internacionalismo. Chegando ao Poder, eles próprios recorreram ao nacionalismo chauvinista de grande potência, e aproveitaram para colocar um disfarce nas tensões resultantes da sua dominação de classe da sociedade soviética.
Resumindo, à guisa de conclusão: a ideologia da classe dos nomenklaturistas não é marxista e nem mesmo leninista. Ela é, de fato, a criação da nobreza, classe dominante da antiga sociedade feudal russa. Trata-se, portanto, de um nacionalismo chauvinista de grande potência, ao qual foram integradas uma terminologia marxista e as teses de Marx e de Lenin, que sirvam aos interesses da Nomenklatura.
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O texto acima é o resumo de um dos capítulos do livro “A NOMENKLATURA – Como Vivem as Classes Privilegiadas na União Soviética”, de autoria de MICHAEL S. VOSLENSKY, considerado no Ocidente um dos mais eminentes especialistas em política soviética. Foi professor de História na Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba, em Moscou, e membro da Academia de Ciências Sociais junto ao Comitê Central do PCUS. O livro foi editado no Brasil pela Editora Record.
NOMENKLATURA, uma palavra praticamente desconhecida pela maioria dos brasileiros, exceto por alguns especialistas, merece tornar-se tão célebre quanto o termo GULAG. Designa a classe dos novos privilegiados, essa aristocracia vermelha que dispõe de um poder sem precedentes na História, já que ela é o próprio Estado. Atribui a si mesma imensos e inalienáveis privilégios – dachas e moradias luxuosas, limusines, restaurantes, lojas, clínicas, centros de repouso especiais e quase gratuitos -.
15 de agosto de 2016
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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