“O passado é uma terra estrangeira: eles lá fazem as coisas de modo diferente”, escreveu Hartley (em O Mensageiro, 1953). O tempo do verbo é instigante: fazem, não faziam ou fizeram. Afinal, a terra estrangeira do passado pode ser visitada, no presente, por viajantes interessados em saber como eles fazem por lá. E por que viajam? Porque cada geração visita, aprende, interpreta e por vezes reescreve o passado, à luz de exigências interrogativas impostas pelo presente e de sonhos, desejos - e temores - sobre o futuro. Há encruzilhadas-chave desse infindável diálogo.
O Brasil encontra-se hoje - como raras vezes em nossa História - num desses angustiantes momentos definidores de sua trajetória futura. É obvio que não há soluções simples e as que parecem sê-lo estão erradas (na economia como na política). Não haverá uma grande batalha que tudo defina. Não há um dia D. Não há um(a) salvador(a) da pátria (como o Brasil, espero, tenha aprendido ou esteja aprendendo). Mas é imperativo acelerar o processo de ampliação do espaço das convergências possíveis.
Na área econômica, é mais do que chegada a hora de avançar na tentativa de convencer governos (nos três níveis), políticos e eleitores a aceitar a existência de restrições à tendência natural do Estado à expansão de suas incumbências, com frequência por pressão da própria sociedade. Mas o Estado apenas redistribuiu recursos que por ele transitam e que lhe vêm de tributação, do endividamento, da venda de ativos, do imposto inflacionário e/ou do uso sub-reptício de poupanças compulsórias. Tem aumentado, gradualmente, a percepção de que há claros limites para esse processo de expansão, quando o Estado já se sobrecarregou de obrigações. Ao dispersar demais suas atividades, o Estado fica mais suscetível a ceder ainda mais a interesses isolados, a persistir em fazer promessas que não pode cumprir, a criar expectativas de mais direitos por adquirir e a assumir metas e objetivos inalcançáveis - que acabam, com frequência, em retumbantes problemas de dívidas por equacionar.
Como afirmei em artigo neste espaço (12/1/2014) sobre um descabido, primitivo e maniqueísta “debate” sobre o Estado (que não deveria ser nem mínimo nem máximo, apenas mais eficiente naquilo que faz, e se propõe a fazer): “É possível que uma discussão aberta, transparente e não ideologizada mostre situações em que existam incumbências, existentes ou programadas, que poderiam estar além das possibilidades técnicas, humanas, financeiras e fiscais do próprio Estado - e de suas empresas”. Faltou acrescentar: como vem demonstrando cabalmente a nossa experiência ao longo dos últimos anos.
Apenas uma ilustração exemplar, e típica, do dito acima, há cerca de dois anos (21/4/2014) a presidente Dilma declarou o seguinte: “Só em 2014, estão em construção ou contratados para serem construídos aqui no Brasil, 18 plataformas, 28 sondas de perfuração e 43 navios-tanque (...). Graças à política de compras da Petrobrás, iniciada no governo Lula e desenvolvida no meu governo, renasceu uma indústria naval dinâmica e competitiva, que irá disputar o mercado com as maiores indústrias navais do mundo”.
Este é apenas um dentre incontáveis exemplos de voluntarismo explícito em outras áreas, como petróleo e gás, energia elétrica, concessões em infraestrutura (ferrovias, rodovias, saneamento, trens-bala, etc.). Exemplos adicionais podem ser encontrados na memorável, reveladora e imperdível longa entrevista do ex-presidente Lula, no auge da inflação-de-si, ao jornal Valor (17/9/2009).
Essas lembranças me vieram à mente ao reler uma conferência do ex-secretário do Tesouro dos EUA Larry Summers sobre uma discussão específica de política pública no seu país, mas que tem uma aplicação mais geral - e relevante para a necessidade que teremos ao longo dos próximos anos de lidar com consequências de descaminhos do tipo dos mencionados acima.
Disse Summers: “A primeira coisa que você sempre tem que se perguntar ao propor mudanças em uma importante política pública é: bem, esta política foi posta em vigor por alguma razão? Talvez seja uma boa razão e a política deve permanecer; existe sempre alguma presunção a favor do status quo e, portanto, você devia ter razões convincentes para superar tal presunção”. Summers concluiu: “Mas você também pode chegar à conclusão de que não há nada, na história do estabelecimento daquela política, que gere qualquer razão para acreditar que ela seja funcional, numa base continuada, hoje”.
O Brasil precisará aprofundar esta questão, como vem insistindo número crescente de respeitados economistas brasileiros: análises cuidadosas, não ideologizadas, mas baseadas nas melhores evidências e informações disponíveis, que permitam avaliar não conjecturas e opiniões, mas projetos, políticas e programas em execução e/ou em estudo. A experiência mostrará que as grandes diferenças na área de políticas públicas não são sobre os objetivos gerais a serem alcançados, e sim sobre as formas mais eficazes de fazê-lo.
Quero concluir este artigo, nestes dias turbulentos, com espesso nevoeiro à frente e um governo à deriva, com duas observações de dois exemplares “espectadores engajados”. Uma, de Raymond Aron, que escreveu: “A sociedade moderna precisa ser vista sem arroubos de indignação ou de entusiasmo”. A outra, de Eduardo Giannetti, que expressou preocupação semelhante: “A lâmina da serenidade precisa de dois gumes, para eliminar excessos de otimismo e de pessimismo”.
Estamos precisando, agentes políticos, agentes econômicos e espectadores engajados, usar um pouco mais os dois gumes das lâminas de Aron e Giannetti. Porque, não nos iludamos, estaremos “no sereno” por alguns anos mais. O futuro é terra estrangeira.
15 de março de 2016
Pedro Malan, Estadão
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