Acabo de ler o ensaio de André Singer na Revista Piauí de dezembro de 2015 e recomendo-o a todos que desejam pensar sobre o período do PT no controle do poder executivo federal. Em“O lulismo nas cordas”, Singer dá continuidade às suas reflexões acerca das movimentações da base social que apoiou os governos de Lula e Dilma, focando-se, grosso modo, sobre o ano decorrido entre novembro de 2014 e novembro de 2015.
Interessantemente, o artigo já chegou relativamente atrasado às bancas e aos assinantes da revista, pois não previa maiores desenvolvimentos no processo de impeachment de Dilma Roussef ainda em 2015 – o que acabou por acontecer nos primeiros dias de dezembro. Não obstante, a leitura do texto continua absolutamente válida, pois procura colocar ordem no caos do noticiário dos últimos meses, construindo uma análise consistente dos fatos que levaram a presidenta à beira do despejo do Palácio do Planalto.
De maneira geral, eu teria pouco a acrescentar à avaliação política e social que Singer faz do fenômeno que foi o ano de 2015 no Brasil. O professor da USP capta o espírito do tempo que rejeita Dilma, ainda que haja espaço para aprofundar sua análise – pontos como os interesses dos movimentos que querem derrubar o governo do PT e seu financiamento, por exemplo, enriqueceriam a narrativa. Nada, porém, que alterasse as conclusões gerais do artigo e a descrição dos fatos que lhe são mais caros.
A única temática merecedora de alguns reparos mais fundamentais talvez seja a econômica. Creio que alguns pontos da história contada no ensaio não se coadunam com o que ocorreu no Brasil no período 2011-2014. Uma análise mais sóbria dos rumos da economia nesse período poderia enriquecer o bom trabalho de Singer que, da sua parte, tem plena consciência das dificuldades que se impõem à tarefa que ele se atribuiu. A “reflexão a quente” acarreta irremediáveis imperfeições, e o objeto do ensaio é tão carregado de tensões que seria merecedor, como destaca o próprio autor, de um livro só para seu desvelamento.
A título de (humilde) contribuição ao trabalho de Singer, portanto, gostaria de comentar o que o seu artigo alcunha de “ousado ensaio desenvolvimentista em momento adverso”, referindo-se à “nova matriz econômica” operada no primeiro mandato de Dilma. Como é bem pontuado no texto, foram centenas, talvez milhares, de ações promovidas pelo setor público para tentar acelerar a expansão da economia no período 2012-2013. Tamanho ativismo, porém, não deu os frutos esperados, e Singer não se aprofunda nos motivos desse revés, invariavelmente utilizado pelas forças mais à direita do espectro político como exemplo da má gestão econômica do governo Dilma.
Em linhas gerais, lê-se nos principais cotidianos nacionais que as medidas adotadas pelo governo nos últimos anos foram excessivamente intervencionistas e abalaram a confiança dos investidores no Brasil, gerando a recessão à qual estamos submetidos agora. Essa explicação é um tanto curiosa, mesmo para os padrões da ortodoxia econômica, pois desconsidera os efeitos que seriam esperados das próprias políticas de governo, a curto e médio prazo, em termos de variáveis reais e monetárias, e que simplesmente não foram verificadas como prediria a “boa teoria”. Parece apenas que nossos capitalistas, prevendo de antemão que todas as ações trariam desequilíbrio irreversível às contas públicas, inflação e aumento futuro de juros, se abstiveram de investir, ainda que houvesse expansão da demanda – e ainda que, ao fim e ao cabo, a expansão nem tenha gerado tanta inflação assim... De forma quase automática, ativismo governamental gera inflação e, ao que parece, contração dos investimentos, não?
A verdade é que não, e que esse tipo de resposta só tomou conta dos meios de comunicação porque outros interesses – inclusive o de destituir o governo – se tornaram muito mais importantes do que o de fazer uma crítica consistente às políticas públicas. Artigos menos alinhado com os preceitos ortodoxos, porém, não necessariamente darão direcionamento muito melhor às dúvidas levantadas pela diminuição do ritmo da economia entre 2011 e 2012. “Lulismo nas cordas”, por exemplo, atribui o início da desaceleração ao recrudescimento da crise internacional em 2011, e a sua piora posterior à reação de um bloco burguês contra as medidas desenvolvimentistas de Dilma e Mantega. Pois cabe dizer que se houve, de fato, uma piora do quadro externo, ela esteve mais concentrada no ano de 2012, não tendo sido, porém, capaz de alterar sobremaneira os fluxos de investimento para o Brasil, e tampouco as exportações do País – houve, sim, redução da taxa de crescimento destas, mas incapaz de explicar, sozinha, a retração no restante da economia. Finalmente, se houve a formação de um bloco da burguesia contra Dilma é porque as medidas que o governo executou para superar a redução de ritmo da economia ficaram longe dos objetivos que o próprio poder público tinha. Caso se tivesse dinamizado os ganhos do capital produtivo, seus representantes não se colocariam contra quem lhe garantira a melhora dos lucros.
Diante da insuficiência dessas respostas, talvez devamos voltar um pouco na história para entender o que aconteceu com a economia brasileira*. Pois bem, de forma estilizada, pode-se dizer que o Brasil chegava ao final de 2010 crescendo a taxas anualizadas de quase 8% após um ciclo de elevação de gastos e investimentos do governo. Esse crescimento engendrara leve aumento inflacionário (5,91%), que levou as velhas raposas que cuidam do galinheiro financeiro brasileiro a alvissararem o caos altista que o prosseguimento dessa política teria nos preços da economia. O remédio para essa doença estava, como sempre, na elevação da taxa de juros.
A leitura da conjuntura pela equipe econômica da época parece ter seguido essa mesma tese rudimentar: diante da subida da inflação, seria necessário elevar a taxa de juros, o que colocaria um freio na economia e conteria os preços. Pensando em prazo mais longo, para nos livrarmos desse “freio” cíclico da economia, a única saída duradoura estaria na elevação do nosso superávit, de forma a reduzirmos a necessidade de financiamento do setor público e abrirmos espaço para a queda da taxa de juros e a alocação das poupanças privadas em investimentos produtivos.
Olhando em retrospecto, parece que houve um esquecimento seletivo dos críticos mais conservadores da política econômica de Dilma do que se passou no início do seu mandato, pois esse diagnóstico e as ações adotadas em seguida puseram em prática teses defendidas por aqueles senhores e senhoras. Assim, o governo iniciou 2011 anunciando corte de gastos e elevação da meta de superávit no ano (que seria alcançado, aliás), ao mesmo tempo em que elevava as taxas de juros. Conforme o tempo passava, porém, os resultados dessa política ficaram claros para os seus gestores, mas não como eles desejavam: a economia desacelerou fortemente, e o ano de 2011 termina com o crescimento de 3,9% do PIB, enquanto o ano de 2012 testemunharia um recrudescimento deste quadro, com somente 1,8% de crescimento.
Com a constatação dessa retração, e diante do espaço fiscal que fora aberto, o governo muda a direção da taxa de juros ainda em 2011. Consciente da demora dos efeitos dessa alteração sobre a economia real, entretanto, procura atuar também em outras frentes, dando inicio ao ativismo “desenvolvimentista” do qual Singer destaca, além da redução de juros, a reforma do setor elétrico que reduziria os custos de energia para os consumidores finais. Ao que parece, no contexto do artigo, o relevo dado a essas duas políticas tem o objetivo de demonstrar como um projeto de desenvolvimento entraria em conflito com os interesses de setores dominantes da lógica de acumulação brasileira – regida basicamente pelo capital financeiro internacional. É preciso se destacar, porém, que tanto essas políticas quanto muitas das outras executadas no período (das quais menciono o apoio quase irrestrito do BNDES e a redução dos impostos para setores selecionados) tiveram o objetivo básico de diminuir os custos empresariais, visando, com isso, deslanchar os investimentos e o crescimento do País. Ou seja, foram políticas feitas em benefício dos detentores do capital produtivo, e não contra estes, a partir de recursos públicos.
Novamente o diagnóstico e as medidas tomadas foram no sentido de corroborar as teses ortodoxas que pululam pela nossa imprensa – no caso, do “custo Brasil”. O resultado foi, como quase todos concordam, decepcionante. Isso porque a redução de custos para o capital não engendra necessariamente novos investimentos, sobretudo quando, em um contexto de concentração de mercado, a demanda interna arrefece em decorrência das políticas contracionistas anteriores e do cenário externo. Ademais, a situação cambial nunca foi plenamente tratada, o que levou parcela da demanda criada no período a “vazar” para o exterior.
Até meados de 2014, as medidas tomadas pelo governo conseguiram manter o nível relativamente alto de empregos e renda, mas não tiveram maiores efeitos na produtividade da economia nem foram suficientes para elevar a lucratividade do capital e levar ao seu reinvestimento. A sensação de estagnação começa a se espalhar pela sociedade – ajudada, ao que tudo indica, pela pouca capacidade de diálogo da presidenta – o que acabará por unir, de fato, as classes detentoras do capital e os abastados em geral do Brasil em torno da candidatura de Aécio Neves. Como se a experiência passada nos anos 1990 fosse esquecida – e as lições de países como Coreia e China ignoradas – a classe empresarial voltou a se reunir em prol de um projeto de matriz mais liberal.
Nesse contexto, após ganhar as eleições por margem apertada, Dilma sente que precisa se reaproximar dos interesses do capital nacional e, para tanto, opta por seguir o receituário ortodoxo, indicando Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Essa ação, contudo, não consegue atrair para o seu lado a burguesia que, diante de uma recessão maior do que projetara, passa a se organizar em outro bloco político, como decorrência do processo eleitoral artificialmente polarizado. Ao mesmo tempo, as políticas de contenção de gastos, elevação de juros e liberação de preços de petróleo e energia acabam por rachar o pouco de apoio que a presidenta tinha. Afinal, não foi dito que a economia estava bem e que não seria necessário ajuste? Não tivemos críticas aos banqueiros em rede nacional? Como que agora faremos um ajuste nos moldes propostos pela candidatura derrotada e que recairá, convenhamos, com mais força sobre as camadas populares? O desagrado generaliza-se, e será potencializado politicamente quando um senhor de índole questionável se apoderar da câmara dos deputados.
O resto é História – bem contada por Singer, aliás. Como tentei demonstrar, creio que cabe apenas ponderar que o bloco lulista deve-nos um mea-culpa pelas políticas econômicas levadas à cabo durante o primeiro mandato de Dilma. Elas não surtiram o efeito desejado na economia pois basearam-se em premissas equivocadas – na melhor das hipóteses foram muito indulgentes com o comportamento do empresariado nacional; na pior, ignorantes sobre os efeitos que a redução de custos pura e simples teria para o investimento na nossa estrutura de mercado concentrada.
De toda forma, esse mea-culpa não deveria ser seguido pela subscrição automática às teses ortodoxas e (neo)liberais, tal como foi feito nesse segundo mandato de Dilma. Deveria servir para que o bloco renovasse seu projeto para a economia e para a sociedade, por caminhos mais próximos daqueles que foram propostos em campanha, utilizando de inventividade para relançar blocos de investimento voltados para as nossas necessidades sociais mais prementes. Assim talvez não estivéssemos presos na atual cilada em que todos os grupos políticos majoritários do País apresentam como única saída para a crise o ajuste draconiano das contas públicas – cujos resultados, a História nos ensina, estarão longe dos anseios da nossa população.
11 de janeiro de 2016
in banalidades básicas
*A argumentação que segui, de raízes heterodoxas, pode ser avaliada em termos mais específicos no trabalho de Franklin Serrano e Ricardo Summa, “Aggregate demand and the slowdown of brazilian economic growth from 2011-2014”. Ainda que eu tenha pequenas diferenças em relação ao modelo apresentado pelos autores, ele me parece um dos mais consistentes para explicar a deriva da atual política econômica.
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