“Embora nem sempre as massas sejam revolucionárias, sem elas não há revolução possível” (Marta Harnecker - escritora chilena)
Marta Harnecker é uma escritora chilena, de formação marxista-leninista. Durante o governo de Salvador Allende, no Chile (1970-1973), foi diretora da revista “Chile Hoy”. Ganhou projeção internacional no final dos anos 60, quando escreveu o livro “Conceitos Elementares do Materialismo Histórico”, editado no México, que vendeu, somente em edições em espanhol, cerca de 1 milhão de exemplares e desempenhou um importante papel na formação política de jovens universitários. Era militante do Partido Socialista – o mesmo de Salvador Allende – e seus alunos, na maioria militantes do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), a criticavam, chamando-a de “reformista”. Isso a levou a que passasse a ministrar aulas de marxismo a operários e camponeses.
Pode ser dito que esse livro significou para a esquerda o mesmo que a Bíblia significa para os seminaristas.
Embora o marxismo-leninismo tenha implodido, esse manual continua a ser utilizado em muitas Universidades latino-americanas.
Após a deposição de Allende, em 11 de setembro de 1973, Marta Harnecker passou a viver em Cuba, onde casou-se com Manuel Piñero Losada (falecido em março de 1988), que por cerca de 30 anos foi o chefe da Inteligência cubana, primeiro no Ministério do Interior e, a partir de 1975, no Departamento América do Comitê Central do Partido Comunista Cubano.
Marta Harnecker é, hoje, a principal ideóloga do Foro de São Paulo e, em Cuba, dirige, há cerca de 10 anos, uma ONG dedicada a “resgatar a memória histórica, bem como a prática do movimento revolucionário latino-americano”, o Centro de Investigações Memória Popular Latino-Americana (MEPLA).
- Critica das Esquerdas latino-americanas
O mais recente livro escrito por Marta Harnecker é “Tornar Possível o Impossível – A Esquerda no Limiar do Século XXI”, editado no Brasil no ano 2000 pela “Paz e Terra”, uma demolidora crítica da esquerda latino-americana dos anos 60 e 70.
Segundo Miguel Urbano Rodrigues, jornalista português, militante do PC Português, autor do prefácio, o livro é um “ensaio político e também um manual para a ação revolucionária”, e considera que o mundo não dispõe, hoje, de “um estudo tão rigoroso” como o que Marx escreveu sobre a sociedade de sua época.
O livro refere-se especificamente à esquerda latino-americana e aos seus desafios atuais, embora muitos dos temas ali abordados tenham caráter universal.
Passando ao livro de Marta Harnecker, no capítulo em que se refere à situação da esquerda no mundo, diz ela que a esquerda, além de viver uma crise teórica e programática, também não conta com um sujeito político adequado aos novos desafios.
E prossegue: A crise da atual institucionalidade dos partidos de esquerda exprime-se tanto na perda de sua capacidade de atração e mobilização, especialmente perante a juventude, quanto numa evidente disfuncionalidade das suas atuais estruturas, hábitos, tradições e maneiras de fazer política, com as exigências que a realidade social reclama de um ator político de caráter popular e socialista, em processo de renovação substancial.
Para levar adiante o processo de transformação social profunda, Marta propõe uma organização em que a análise política se assuma como uma síntese de um processo coletivo de construção de conhecimento, que integre tanto a experiência direta como o exame da realidade global a partir da teoria.
Isso implica a rejeição de duas teses extremas: a Vanguarda Iluminada e o basismo. A primeira concebe a instância política como a única capaz de conhecer a verdade: o partido é a consciência, a sabedoria; e a massa, um setor atrasado.
A tese oposta é o basismo. Este supervaloriza as potencialidades dos movimentos sociais, supondo que esses movimentos são auto-suficientes. Rejeita indiscriminadamente a intervenção de qualquer instância política, e com isso contribui muitas vezes para levar água ao moinho da divisão do movimento popular.
A história de múltiplas explosões populares no Século XX demonstra cabalmente que não basta a iniciativa criadora das massas para conseguir a vitória sobre os regimes imperantes. Os acontecimentos de maio de 1968 na França são um dos muitos exemplos que corroboram esta afirmação.
Para que a ação política seja eficaz, para que as atividades de protesto, de resistência e de luta do movimento popular consigam os seus objetivos anti-sistêmicos, é necessário um sujeito organizador – o Partido - que seja capaz de orientar os múltiplos esforços que surgem espontaneamente, e de promover outros.
Reconhecendo a importância da organização política para conseguir os objetivos de transformação social, a esquerda marxista, porém, fez pouquíssimo para adequá-la às exigências dos novos tempos. Durante um longo período, isso teve muito a ver com a cópia acrítica do modelo bolchevique de partido.
Segundo Marta, o que a maior parte da esquerda latino-americana conheceu não foi o pensamento de Lênin em toda a sua complexidade, mas a versão simplificada dada por Stalin.
Lenin sempre concebeu o partido como o sujeito político da transformação social, como oinstrumento para exercer a condução política da luta de classes - luta que se dá sempre em condições históricas, políticas e sociais específicas -, e, por isso, considerava que sua estrutura orgânica tinha de adequar-se à realidade de cada país e modificar-se de acordo com as exigências concretas da luta.
Essas foram idéias precoces de Lênin: as condições da luta proletária transformam-se incessantemente e, de acordo com essas transformações, as organizações de vanguarda do proletariado também têm de procurar constantemente novas formas. As particularidades históricas de cada país, por sua vez, determinam formas especiais de organização para os diferentes partidos.
Os dirigentes da esquerda latino-americana sempre se dedicaram a transferir fórmulas já elaboradas para um Terceiro Mundo, desconhecendo a especificidade do nosso continente.
A cópia acrítica do modelo bolchevique de partido levou a uma série de erros, desvios e faltas, assim enumeradas por Marta Harnecker:
- Vanguardismo
Uma das atitudes mais negativas da esquerda marxista latino-americana e caribenha foi se autoproclamar a vanguarda do processo revolucionário, e muitas delas a vanguarda da classe operária, embora essa classe fosse quase inexistente em alguns desses países.
Por outro lado, não compreenderam que o caráter de vanguarda não é coisa que se autoproclame, mas sim que se conquiste na luta, e que não pode haver vanguarda se não houver uma retaguarda.
Seguramente, não conheciam a distinção, estabelecida por Lênin, entre o momento de formação do partido ou organização revolucionária, isto é, aquele em que se preparam os quadros de condução, e o momento em que se chega a obter a capacidade real de direção da luta de classes. A maior parte das organizações de esquerda latino-americanas e caribenhas nunca conseguiu obter essa capacidade real de condução.
Cada organização disputava o título de ser catalogada a mais revolucionária. O que importava era a seita e não a revolução. Dai o sectarismo em que caiu a maior parte delas.
As organizações político-militares, por seu turno, consideravam reformistas todos os partidos que não estivessem envolvidos com a luta armada. E estes, em especial os partidos comunistas - alguns dos quais consideravam que não poderia existir mais ninguém à esquerda senão eles próprios -, intitulavam pejorativamente de ultra-esquerdistas os que estavam mais à sua esquerda.
- Verticalismo e Autoritarismo
O estilo de condução verticalista - que se traduzia por pretender dirigir autoritariamente de cima,enviando para baixo linhas de ação - era a prática habitual. Não havia uma preocupação de convencer as pessoas das propostas que apresentavam.
Isso conduzia a outro desvio: a tendência para ocupar cargos de direção nos movimentos sociais para controlá-los do topo, em vez de levar a cabo um paciente trabalho de base.
- Cópia de Modelos Externos
A maioria das vezes, as elaborações estratégicas eram construídas não como resultado da procura de um caminho próprio adequado à especificidade do País, mas através da soma de componentes estratégicos parciais de diferentes experiências revolucionárias de outras latitudes.
Tanto em Cuba como na Nicarágua, o Movimento 26 de Julho e a Frente Sandinista, ganharam a hegemonia porque souberam inserir-se profundamente nas tradições nacionais. Como já foi dito, fizeram uma revolução em espanhol e não em russo. Os seus pais espirituais foram Martí e Sandino.
Afinal, o que simboliza para os povos da América Latina a foice que figura na bandeira vermelha de muitos partidos comunistas? O que significa para os indígenas guatemaltecos o nome de Ho-Chi-Minh e até mesmo o de Che Guevara?
- Teoricismo, Dogmatismo e Estrategismo
As direções das organizações político-militares imaginaram que se deveria fazer o caminho da unidade evitando as discussões teóricas, e caíram no praticismo, rejeitando teorizar sobre a realidade.
Outro dos males que sofreu a esquerda, especialmente a esquerda revolucionária, foi o doestrategismo. Grandes metas estratégicas eram formuladas - a luta pela libertação nacional e pelo socialismo -, mas não se fazia uma análise da situação concreta da qual tinha-se de partir. Partia-se, então, da errada apreciação de que existia uma situação revolucionária em toda a América Latina e que bastava atear uma centelha para que ela fosse incendiada.
- Subjetivismo
Os dirigentes, movidos por sua paixão revolucionária, tendiam a confundir os desejos com a realidade. Não se fazia uma avaliação objetiva da situação, tendia-se a subestimar as possibilidades do inimigo e, por outro lado, superestimar as possibilidades próprias.
Por outro lado, os dirigentes tendiam, também, a confundir o estado de espírito da militância mais radical com o estado de espírito dos setores populares da base.
A visão que têm do país os que trabalham com os setores mais radicalizados é diferente da que têm os que realizam a sua atividade política entre os setores menos politizados.
É importante, portanto, que os dirigentes máximos aprendam a ouvir e evitem projetar as suas idéias preconcebidas nos seus contatos com os dirigentes intermediários e de base, o que requer uma grande dose de modéstia revolucionária.
Por outro lado, sempre houve na esquerda uma tendência para se auto-enganar, para falsificar os dados das mobilizações, dos comícios, das greves, da força que dispõe cada organização, etc.
Se uma greve nacional era proposta e só se conseguiam paralisações parciais, não se reconhecia o revés, mas exaltava-se o êxito da greve, porque em relação a ações anteriores desse tipo tinha-se obtido algum aumento no número de grevistas.
- Concepção da Revolução como Assalto ao Poder
A esquerda, em geral, tinha uma concepção do Poder reduzida ao Poder do Estado, e a esquerda revolucionária concebia a revolução essencialmente como assalto ao Poder do Estado e, portanto, concentrava todos os seus esforços em criar condições para esse assalto, descurando outros aspectos essenciais da luta, entre os quais o trabalho gramsciano de transformação cultural da consciência popular, tarefa que era relegada para depois da tomada do poder.
- Insuficiente Avaliação da Democracia
Durante anos, as organizações de esquerda, influenciadas pela tônica que Lênin colocou na ditadura do proletariado, desdenharam outra das suas considerações: que “o socialismo deveria ser concebido como a sociedade mais democrática, ao contrário da sociedade burguesa, que só é democrática para uma minoria”.
Em lugar de reivindicar a democracia, nos seus discursos e na sua propaganda, colocava-se ênfase na ditadura do proletariado.
Esta situação fez com que a esquerda de tradição marxista-leninista tivesse subavaliado o tema da democracia. Ao denunciar os limites da democracia representativa ou democracia formal, a esquerda acabou por negar o próprio valor universal da democracia.
- Consideração dos Movimentos Sociais como Meras Correias de Transmissão
Sempre existiu uma tendência para considerar as organizações populares como manipuláveis, como simples correias de transmissão da linha do partido. Essa posição apoiava-se na tese de Lênin em relação aos sindicatos no início da revolução russa.
Tal tese, mal digerida, foi sempre aplicada pela esquerda no seu trabalho, primeiro com o movimento sindical e a seguir com os movimentos sociais. A direção do movimento, os cargos nos organismos de direção, as plataformas de luta, enfim, tudo era resolvido nas direções partidárias e depois mandava-se para baixo a linha a ser seguida pelo movimento social em questão, sem que este participasse da gestação de nenhuma das coisas que lhes diziam respeito.
- Visão do Cristianismo como Ópio do Povo
Até meados da década de 60, a esquerda latino-americana, aplicando de forma mecânica a apreciação que Marx fez da religião de sua época - ópio do povo -, identificou o cristianismo com a hierarquia da Igreja Católica.
Mas as transformações que começaram a ocorrer na Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) e que culminaram com a Conferência de Medellin, em 1968, que deu surgimento àTeologia da Libertação e ao movimento das Comunidades Eclesiais de Base, foram alterando essa injusta apreciação do papel que podem desempenhar os cristãos na revolução.
- Desconhecimento do Fator Étnico-Cultural
A esquerda viveu durante decênios ignorando o fenômeno indígena. A aplicação do reducionismo classista ao campesinato indígena levava a considerá-lo como uma classe social explorada que deveria lutar pela terra como qualquer outro camponês, ignorando a importância do fator étnico-cultural que fazia desse campesinato um setor social duplamente explorado e com uma cultura ancestral de resistência ao opressor.
Finalmente, a conclusão de Marta Harnecker é que, nos anos 70, com os duros golpes recebidos e o auge do processo revolucionário na América Central, deu-se um rápido processo de amadurecimento entre os dirigentes de esquerda, que começaram a ter consciência de todos esses erros e desvios.
Deve ser reconhecido, no entanto, que a tomada de consciência nem sempre se traduz em prática política imediata, pois é necessário certo tempo para superar hábitos que a marcaram, durante décadas, bem como para que essas transformações sejam assimiladas pelos quadros intermediários e de base.
30 de junho de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.