E Deus, sem receber qualquer comissão, sem se deixar corromper por qualquer empreiteira, fez de livre arbítrio, na camaradagem, no 0800, o fabuloso desenho em curva da praia de Copacabana. Embaixo do projeto, escreveu “divirtam-se”, e foi descansar satisfeito, coitado, crente que estava agradando. Dois mil anos depois, o homem inventou o quiosque e apagou tudo.
De uma ponta a outra daquele arco delicado entre o Leme e o Posto 6, o tal homem feito a imagem e semelhança do Criador, mas que precisa urgente de um recall, construiu uma barreira de casebres de plástico colorido. Não se veem mais o mar, nem as garotas estendidas na areia, os golfinhos saltitando ou a linha infinita da poesia no horizonte, essa necessidade que todos têm em localizar um ponto de sonho lá longe e, através da sua contemplação, fugir deste rojão cotidiano.
A curva de Copacabana era para ser um mirante plano, diziam os urbanistas da primeira Bíblia. Para um lado, contemplar-se-iam o Atlântico e o lento afastar do continente africano. Para o outro, encheríamos os olhos com as curvas das montanhas, feitas à semelhança das mulheres que chegariam aqui. Não deu certo. Primeiro os homens fizeram os prédios, e não vemos mais a cordilheira carioca. Agora, chegou a vez de quioscarem, digo, fecharem ao cidadão a visão do mar.
Eu sei que o Rio de Janeiro tem pragas mais urgentes a serem exterminadas, mas eu sou um cronista. Vejo o deputado Natan Donadon sair da prisão, ser cassado na primeira votação com voto aberto da Câmara, e o que me chama a atenção é o fato de o uniforme de presidiário agora ser branco, como se fosse um exercício de cromoterapia para purificar a índole criminosa do sujeito.
O cronista é o Jack Estripador da literatura. Reparte a cena. Valoriza as minúcias porque sabe que se esquecer uma do lado de fora da mala ou do congelador vão saber que foi ele. O cronista procura os detalhes — embora os quiosques construídos ao redor das praias do Rio já formem uma extensão tão monstruosa que se aproxima do tamanho da muralha da China. Pior. Da muralha ainda se contempla alguma coisa. O tapume dos quiosques é um muro, o verdadeiro black bloc. Ele foi construído para nada se ver.
Esta é uma cidade com um cardápio reduzido de trunfos. A política, a indústria, o mercado financeiro, os serviços, a civilidade, a segurança – tudo é tacanho. Existe, no entanto, um cenário de real valor já cantado neste tom maior por todas as escolas de samba. Isso pode dar dinheiro, progresso para a cidade e felicidade para outros. Guardem o troco. Do progresso eu quero só a sandália Havaiana. Eu quero mesmo é a dona felicidade — e uma delas é andar de um lado para o outro no calçadão da praia, como ainda fazem os personagens das fotos de Augusto Malta nos anos 1920. Copacabana, acreditem, era deslumbrante, e seria bom vê-la de volta.
Há quem prefira passeios em iates, escalar o Everest. Eu prefiro bater perna logo ali na esquina, na calçada da praia, mas sem tropeçar nos barracos construídos para um péssimo serviço de venda de coco e cerveja.
A propósito, eu e Nelson Cavaquinho fizemos um samba: “tire esse quiosque do caminho, que eu quero passar com a minha dor”. Já bastam as inacreditáveis barracas plantadas na areia, como se fossem uma segunda linha de zagueiros, impedindo o alumbramento previsto no versículo da Bíblia, aquele de que a natureza é ao homem intrínseca e ninguém lha tocará.
Estou falando isso, blasfemando contra os vendilhões do grande templo carioca que é a praia, porque é verão. Porque ainda dá tempo. Passei pela praia de Ipanema e os quiosques gigantes ao estilo dos de Copacabana, apesar das obras anunciadas há anos, ainda não chegaram ali. Sobrevivem uns casebres menores — fora com todos! — igualmente pútridos, mal ajambrados, cercados de cadeiras, cachos de coco e lixeiras abóbora.
O que se ganha com eles?
Qual a necessidade de eles serem colocados maiores ainda no espaço reduzido de Ipanema?
Quem são essas pessoas autorizadas a construir dentro do mais importante metro quadrado da cidade?
Ainda há tempo de evitar que as Cagarras e todo o deslumbrante cenário da praia de Ipanema fiquem escondidos atrás do mesmo bloco de tapumes gigantescos que em Copacabana tirou a linha do mar da visão do carioca. É um vício da cidade. O Aterro do Flamengo, por mais bonito, acabou com praias e trocou o mar pelas pistas de alta velocidade. O alargamento da Avenida Atlântica também mandou o oceano para longe. Não deve ser à toa que na esquina de República do Peru alguém grafitou: “o horror, o horror”.
Agora a maldição dos quiosques ameaça se espalhar, murar a praia e dar mais um golpe nesta moribunda civilização à beira-mar plantada. O calor, está no Apocalipse, completará o serviço. Ou alguém duvida que este verão seria diferente com a brisa marinha ventando mais próxima e diretamente nos poros dos nossos cangotes?
17 de fevereiro de 2014
Joaquim Ferreira dos Santos
Joaquim Ferreira dos Santos
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