"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

É O CALOR

‘Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável’

Pode acontecer. A moça do tempo na TV entra no bar com um grupo de amigos. É recebida com óbvio desconforto pelos frequentadores do bar. Ouve-se um zum-zum-zum de desaprovação à sua presença. O grupo da moça ocupa uma mesa. Depois de algum tempo, um homem da mesa ao lado não se contém e pergunta:

— Você não é a moça do tempo, na TV?

A moça diz que é, sorrindo, mas o homem não sorri. Pergunta:

— Até quando vai esse calor?

— Pois é — diz a moça, ainda sorrindo. — Está difícil de prever. Tem uma zona de pressão na...

— Não — interrompe o homem. — Não me venha com zona de pressão. Chega de enrolação.

Uma mulher de outra mesa se manifesta:

— Há dias que você põe a culpa pelo calor nessa zona de pressão. E não toma providências.

— Minha senhora, eu...

Outros começam a gritar.

— Sensação térmica de 51 graus. Onde já se viu isso?

— Não dá mais para aguentar!

— Faça alguma coisa!

A moça do tempo na TV agora está em pânico.

— O que eu posso fazer? Eu só descrevo o tempo. Não tenho o poder de...

— Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável.

— A culpa é da Natureza!

— Rá. Natureza. Muito bonito. Muito conveniente. É como culpar a corrupção pela índole do brasileiro. Aqui ninguém tem culpa de ser corrupto, é a índole. A índole do tempo, num país tropical, é essa. E quem pode reclamar da índole? Ou da Natureza? De você nós podemos reclamar, querida.

— Mas a culpa não é minha!

— Estamos cansados do seu distanciamento enquanto mostra no mapa que o calor só vai aumentar. Seu ar superior, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Chega!

A mesa da moça do tempo na TV está cercada. Caras raivosas. Ameaça de violência. A moça do tempo na TV se ergue e grita:

— Esta bem! Está bem! Amanhã eu faço chegar uma frente fria. Eu prometo!

As pessoas se acalmam. Todos voltam para as suas mesas. O garçom vem tirar o pedido do grupo da moça do tempo na TV e tenta explicar:

— É o calor... O pessoal fica meio louco.

 
09 de fevereiro de 2014
Luis Fernando Verissimo, O Globo

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