Uma história que jamais deve ser esquecida
A história da destruição do marco alemão durante a hiperinflação da República de Weimar, de 1919 até o seu auge em novembro de 1923, é normalmente descartada como sendo apenas uma bizarra anomalia ocorrida em toda a história econômica do século XX.
Mas nenhum episódio ilustra de maneira mais completa as sinistras consequências do que pode ocorrer quando o dinheiro se torna um mero papel sem nenhum lastro e passa a ser utilizado livremente pelo governo.
Mais ainda: nenhum episódio apresenta um argumento mais devastador e real contra o papel-moeda fiduciário: quando não há restrição à maneira como o governo gerencia moeda, ela morrerá.
"O fato de que as causas da inflação ocorrida na República de Weimar, bem como toda a conjuntura da época, dificilmente irão se repetir é o de menos", escreveu o historiador britânico Adam Fergusson em seu clássico de 1975, Quando o Dinheiro Morre. "A pergunta a ser feita — ou perigo a ser reconhecido — é como a inflação, qualquer que seja a sua causa, afeta uma nação."
Antes da Primeira Guerra Mundial, o marco alemão, o xelim britânico, o franco francês e a lira italiana tinham aproximadamente os mesmos valores — quatro para um dólar.
Ao fim de 1923, a taxa de câmbio do marco já era de um trilhão de marcos para um dólar — o que significa que a moeda havia perdido 99,9999999996% do seu poder de compra nesse período; ou, em outras palavras, ela valia um milionésimo de milhão do que valia há apenas dez anos.
Em meados de 1922, uma fatia de pão custava 428 milhões de marcos, e todas as ações da Daimler Corporation compravam o equivalente a 327 de seus carros. Já em novembro de 1923, uma quantidade de marcos que, dez anos atrás compraria 500 bilhões de ovos, agora mal conseguia comprar um ovo.
O ex-primeiro ministro britânico David Lloyd George, escrevendo em 1932, comentou que palavras como "catástrofe", "ruína" e "devastação" não eram suficientes para descrever a situação alemã, dado que seus significados já haviam se tornado banais. Saques, vandalismo, roubos, ascensão da prostituição, inanição, doenças, e até mesmo consumo de cães se tornaram banais. Pessoas tinham suas roupas roubadas nas ruas. Tudo isso eram eventos do cotidiano de uma sociedade "burguesa" da época.
A constante iminência de uma guerra civil pairava sobre a Alemanha, como já estava acontecendo com o bolchevismo na Rússia. A Baviera teve de declarar lei marcial.
A ascensão da moeda de papel após 1910
A inflação na Alemanha começou lentamente.
Em 1871, o marco se tornou a moeda oficial do Império Alemão (Deutsches Reich). Porém, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a conversibilidade do agora chamado reichsmark em ouro foi suspensa no dia 4 de agosto de 1914. Sendo assim, o reichsmark, que até então era lastreado em ouro (e que, por isso, também era chamado de goldmark), se transformou no papiermark, uma moeda de papel puramente fiduciária, sem nenhum lastro.
Em 1914, a quantidade de papiermark em circulação era de 5,9 bilhões; já em 1918, era de 32,9 bilhões. De agosto de 1914 a novembro de 1918, os preços no atacado subiram 115%, o que significa que o poder de compra do papiermark caiu mais de 50%. Neste mesmo período, a taxa de câmbio do papiermark se depreciou 84% em relação ao dólar americano.
Inicialmente, o Reich financiou suas despesas de guerra majoritariamente por meio do endividamento. A dívida pública total subiu de 5,2 bilhões de papiermark em 1914 para 105,3 bilhões em 1918.[1]
E aí o governo recorreu cada vez mais à inflação monetária (impressão de dinheiro).
Começando em 1919, a velocidade da inflação aumentou, e o índice pulou para 12,6 em janeiro de 1920; 14,4 em janeiro de 1921 e 36,7 em janeiro de 1922. Na segunda metade de 1922, o índice já estava em 101 em julho; e foi para 74.787 em julho de 1923 e 750 bilhões em 15 de novembro de 1923.[2]
A nota de 100 trilhões de marcos foi então emitida e as impressoras do Reichsbank estavam imprimindo dinheiro ao ritmo recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana.
Em vez de parar com essa loucura, o Reichsbank continuou a imprimir cada vez mais dinheiro, com a justificativa de que, agindo assim, estava mantendo o emprego estável, e que o momento de voltar à normalidade "estava próximo".
Enquanto isso, uma atmosfera de caos civil reinava.
A Primeira Guerra
Antes de 1914, a política do Reichsbank impunha que pelo menos 1/3 do papel-moeda emitido tinha de estar lastreado em ouro. Porém, tão logo o dinheiro de papel sem lastrou passou a ser de curso forçado na Alemanha, em 1910, tudo se tornou um experimento imprudente.
Ao explodir a guerra, a maioria do mundo já havia desistido do padrão-ouro e abraçado com entusiasmo o dinheiro de papel sem lastro e de curso forçado. O ouro foi retirado de circulação e majoritariamente estocado nos cofres de alguns poucos bancos centrais, principalmente o dos EUA: de agosto de 1913 a agosto de 1919 o estoque de ouro monetário em posse do Banco Central americano — o Federal Reserve — aumentou 65%.
Enquanto isso, na Alemanha, o governo vendia maciçamente títulos do Tesouro, apelando ao patriotismo de massa para pagar pela guerra. Fortunas privadas foram transferidas para meros títulos de papel emitidos pelo estado, enquanto o Reichsbank suspendia a restituição de cédulas de dinheiro em ouro. Foram criados vários bancos com o objetivo único de imprimir dinheiro para emprestar, de modo que o crédito se tornou irrestrito para estimular as compras dos títulos emitidos pelo Tesouro alemão para financiar a guerra.
Em contraste, a Grã-Bretanha financiou a guerra com uma medida bem mais prudente do ponto de vista inflacionário: Londres aumentou os impostos sobre os grupos e indústrias que lucrariam com a guerra.
Após a guerra, o ouro da Alemanha foi exaurido com o pagamento das reparações de guerra e também como resultado da invasão francesa do Ruhr. Ainda assim, o pouco que restou do ouro era o que fornecia algum alívio ocasional aos cidadãos alemães, quando algumas indústrias conseguiam pagar seus funcionários com pequenas quantias do metal dourado. A Höchst Dye Works, por exemplo, pagava seus funcionários com os 400.000 francos suíços que ela havia armazenado em bancos suíços.
O Tratado de Versalhes e a República de Weimar
O tratado de Versalhes não foi o culpado principal; ele apenas piorou a política monetária que já estava em curso antes da guerra.
A nova República de Weimar enfrentou desafios econômicos e políticos magnânimos. Em 1920, a produção industrial havia despencado para apenas 61% do nível alcançado em 1913, e em 1923 caiu ainda mais, para 54%. Os terrenos perdidos após a promulgação do Tratado de Versalhes haviam enfraquecido consideravelmente a capacidade produtiva do Reich: o Império perdera aproximadamente 13% de suas terras e, em decorrência disso, aproximadamente 10% da população alemã vivia agora fora das fronteiras.
Adicionalmente, a Alemanha tinha de fazer vários pagamentos indenizatórios para os países vencedores da Primeira Guerra.
Ainda mais importante, no entanto, foi o fato de que os novos e inexperientes governos democráticos da Alemanha queriam atender ao máximo possível os desejos de seus eleitores. Dado que as receitas tributárias eram insuficientes para financiar estas despesas, o Reichsbank teve de recorrer à impressora de dinheiro.
De abril de 1920 a março de 1921, a proporção de receitas tributárias em relação aos gastos totais do governo era de apenas 37%. Após isso, a situação melhorou um pouco, de modo que, em junho de 1922, os impostos chegaram a cobrir 75% dos gastos totais.
Mas então a situação voltou a deteriorar. E de maneira pavorosa.
Já no final de 1922, a Alemanha foi acusada de atrasar seus pagamentos indenizatórios. Para reforçar suas reivindicações, tropas belgas e francesas invadiram e ocuparam o Vale do Ruhr, o coração industrial do Reich, em janeiro de 1923. O governo alemão, então sob o comando do chanceler Wilhelm Kuno, conclamou os trabalhadores do Vale do Ruhr a resistir a toda e qualquer ordem dos invasores, prometendo que o Reich continuaria pagando seus salários.
Para manter todo esse arranjo, o Reichsbank começou a imprimir ainda mais dinheiro para financiar os gastos do governo (em termos técnicos, o Reichsbank estava "monetizando as dívidas do governo").
O intuito era utilizar o dinheiro recém-criado para compensar a queda da arrecadação tributária e pagar os salários, as transferências sociais e os subsídios.
De maio de 1923 em diante, a quantidade de papiermark começou a ficar fora de controle. Subiu de 8,610 bilhões em maio para 17,340 bilhões em abril, para 669,703 bilhões em agosto até alcançar 400 quintilhões (ou seja, 400 seguido de 18 zeros) em novembro de 1923.
Os preços no atacado dispararam para níveis astronômicos, aumentando 18.000.000.000.000% (dezoito trilhões por cento) desde o final de 1919 até novembro de 1923.
Apenas naquele mês, o preço do dólar em termos de papiermark subiu 8,9 trilhão por cento. Em suma, o papiermark havia afundado e não comprava nem poeira.
O colapso da moeda e da economia
Em seu livro The Downfall of Money:Germany's Hyperinflation and the Destruction of the Middle Class, Frederick Taylor escreve que "pessoas com renda média e sem nenhum acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a aprender a caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda frequentemente não era o suficiente para comprar o que queriam em um determinado dia, como também porque havia, à medida que a hiperinflação se intensificava, uma genuína escassez de comida."
Já os agricultores simplesmente não queriam trocar seus alimentos por inúteis pedaços de papel que não tinham nenhum valor. "Naquilo que rapidamente estava regredindo para voltar a ser uma economia baseada no escambo, os mais espertos, para não dizer desonestos, chegavam rapidamente ao topo da cadeia darwiniana", escreveu Taylor. "Nas áreas rurais, os médicos exigiam pagamento em comida dos fazendeiros que os procuravam".
Os trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens, tão logo recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar qualquer coisa que conseguissem. O objetivo era tentar trocar o dinheiro por qualquer quantidade de bens possível. Caso não fizessem, o dinheiro que em suas mãos iria simplesmente perder todo o seu poder de compra ao longo do dia, e não lhes permitiria adquirir nada no dia seguinte.
Após comprar os itens essenciais, eles corriam até um banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse. O número de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo negócio.
Em 1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais 401 surgiram em 1923-24.
O número de funcionários de banco quadruplicou nesse período. O Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já eram 242.
Não foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade desses novos bancos. "Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para comprar e vender ações e moedas estrangeiras. E os cidadãos comuns, em número cada vez maior, se tornavam especuladores da bolsa".
Com o colapso da moeda, o desemprego disparou. Desde o final da Primeira Guerra, o desemprego havia se mantido em níveis consideravelmente baixos, uma vez que os governos de Weimar mantiveram a economia artificialmente aditivada por meio de vigorosos déficits e impressão de dinheiro. Ao final de 1919, a taxa de desemprego estava em 2,9%; em 1920, em 4,1%; em 1921, em 1,6%; e em 1922, em 2,8%.
Após o colapso, a taxa de desemprego chegou a 19,1% em outubro, a 23,4% em novembro e a 28,2% em dezembro de 1923.
A hiperinflação empobreceu a esmagadora maioria da população alemã, especialmente a classe média. As pessoas passaram a sofrer com a escassez de alimentos e com a falta de proteção contra o frio. Elas estavam também literalmente morrendo de fome, pois nenhum agricultor queria abrir mão de seus produtos em troca de uma moeda que não valia nada. Toda a colheita de 1923 ficou estocada nos silos dos agricultores; enquanto isso, as prateleiras dos supermercados estavam vazias.
O extremismo político passou a ficar em evidência e se tornou plenamente aceitável.
O colapso da moral
Tendo gerado escassez no mercado com suas políticas inflacionárias, as autoridades alemãs criaram novas regulações para tentar corrigir a irracionalidade que eles próprios haviam criado. O roteiro é sempre o mesmo, em todos os países: o governo cria intervenções que geram consequências inesperadas, e decide então recorrer a intervenções ainda mais violentas para "sanar" as consequências não previstas das intervenções anteriores.
Mas isso logrou apenas destruir também toda a moralidade.
"O colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram idênticos", escreveu Frederick Taylor.
Não eram apenas as prostitutas que vendiam seus corpos. "As recém-desprovidas filhas da classe média educada (em alguns casos, filhos também), que agora estavam no mercado do sexo pago, estavam inteiramente disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em troca de cigarros, metais preciosos ou moeda forte em vez de marcos de papel."
Com a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média, as moças jovens simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos futuros maridos. "Quando a moeda perde totalmente seu valor", escreveu uma mulher, "ela destrói todo o sistema burguês baseado no matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter casta até o casamento".
Taylor cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya Ehrenburg sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya, eles terminaram a noite visitando uma família alemã em um "apartamento burguês perfeitamente respeitável". Foi-lhes oferecido limonada com um pouco de álcool e
então as duas filhas que estavam na casa entraram na sala, totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as visitas estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez as visitas pagassem bem — em dólares, obviamente. "E é isso o que chamamos de vida", suspirou a mãe. "Na verdade, é pura e simplesmente o fim do mundo".
[Nota do Editor: a hiperinflação vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que, além do mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe média e a classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas aplicações (como as aplicações no overnight) para se proteger da hiperinflação. Essas duas coisas não existiam na Alemanha da década de 1920. Houve muita escassez e racionamento no Brasil, mas não houve uma completa chacina da classe média, como houve na Alemanha].
A Alemanha se vira para o Rentenmark
No momento de maior crise, a política monetária foi retirada das mãos do Reichsbank naquilo que foi efetivamente um coup d'etat pelo chanceler Gustav Stresemann. Todos os empréstimos ao governo foram cancelados. A política monetária foi descentralizada. O estado foi rigorosamente separado da economia.
Uma estrutura bancária paralela foi organizada por um proeminente economista rebelde não-ligado ao governo. Ele criou um novo esquema em que a moeda era lastreada por pão de centeio — a commodity mais cobiçada na época —, e mais tarde por ouro, quando a commodity passou ser usada novamente.
As moedas "lastreadas por ouro", os Rentenmarks, tinham como garantia financiamentos imobiliários em propriedades fundiárias e títulos de dívida da indústria alemã na quantia de 3 bilhões de marcos de ouro.
Mas eis o curioso: praticamente não havia reservas de ouro. Não havia ouro nos cofres do Rentenbank (o então Banco Central alemão). Nenhuma cédula de rentenmark era conversível em ouro. Simplesmente o valor do rentenmark era mantido constante em termos de ouro. Como isso era feito? O Rentenbank simplesmente expandia e contraía a base monetária (vendendo e comprando ativos) de modo a manter o valor do rentenmark o mais estável possível em termos de ouro. O mecanismo era um simples ajuste da oferta de moeda.
Mesmo não havendo ouro, o incalculável efeito social e psicológico sobre a população gerado pelo simples anúncio de que a moeda havia retornado a uma paridade com o ouro, na relação de um para um. Acalmou as tensões sociais e deu início à estabilização econômica.
Os agricultores aceitaram o rentenmark, desovaram seus estoques, e a população alemã repentinamente se viu repleta de opções alimentícia à sua volta. Bastou apenas devolver estabilidade à moeda e toda a crise acabou e a economia voltou a crescer.
"A genialidade do Rentenmark é que ele livrou o Reichsbank de ter de financiar o governo," escreveu Adam Fergusson. Uma disciplina rigorosa sobre os gastos públicos foi imposta, assim como a proibição de o Reichsbank emprestar para o governo. Por muitos anos após, era comum que obrigações de longo prazo contivessem cláusulas de ouro para que os credores pudessem se garantir contra uma nova e repentina desvalorização da moeda.
Conclusão
Não é difícil de entender por que os alemães de hoje são tão avessos a qualquer tipo de política monetária que tenha semelhanças com uma política hiperinflacionária. A revista britânica The Economist disse jocosamente que os alemães sofrem de "fobia" em relação à hiperinflação.
É claro. Quando um alemão se lembra de como a taxa de câmbio do marco pulou de 4,2 marcos por dólar em 1914 para 4,2 trilhões de marcos por dólar em novembro de 1923; quando ele se lembra de que, em meados de 1922, um pão custava 428 milhões de marcos; e que, em novembro de 1923, um ovo custava 500 bilhões de marcos, as memórias obviamente não podem ser boas.
Tendo conhecimento de algumas dessas histórias, e olhando a corrupção moral a que foi submetida a Alemanha, não é de todo incompreensível entender fenômenos como a ascensão de Hitler. E também não é incompreensível por que os alemães de hoje não são muito tolerantes com seus vizinhos europeus que defendem políticas inflacionárias.
A Venezuela já passou do ponto, mas há outros países, como a Argentina, que estão em caminhos perigosos no que tange às suas moedas. Eles deveriam ler um pouco da história da Alemanha.
13 de junho de 2018
Thorsten Polleit
A história da destruição do marco alemão durante a hiperinflação da República de Weimar, de 1919 até o seu auge em novembro de 1923, é normalmente descartada como sendo apenas uma bizarra anomalia ocorrida em toda a história econômica do século XX.
Mas nenhum episódio ilustra de maneira mais completa as sinistras consequências do que pode ocorrer quando o dinheiro se torna um mero papel sem nenhum lastro e passa a ser utilizado livremente pelo governo.
Mais ainda: nenhum episódio apresenta um argumento mais devastador e real contra o papel-moeda fiduciário: quando não há restrição à maneira como o governo gerencia moeda, ela morrerá.
"O fato de que as causas da inflação ocorrida na República de Weimar, bem como toda a conjuntura da época, dificilmente irão se repetir é o de menos", escreveu o historiador britânico Adam Fergusson em seu clássico de 1975, Quando o Dinheiro Morre. "A pergunta a ser feita — ou perigo a ser reconhecido — é como a inflação, qualquer que seja a sua causa, afeta uma nação."
Antes da Primeira Guerra Mundial, o marco alemão, o xelim britânico, o franco francês e a lira italiana tinham aproximadamente os mesmos valores — quatro para um dólar.
Ao fim de 1923, a taxa de câmbio do marco já era de um trilhão de marcos para um dólar — o que significa que a moeda havia perdido 99,9999999996% do seu poder de compra nesse período; ou, em outras palavras, ela valia um milionésimo de milhão do que valia há apenas dez anos.
Em meados de 1922, uma fatia de pão custava 428 milhões de marcos, e todas as ações da Daimler Corporation compravam o equivalente a 327 de seus carros. Já em novembro de 1923, uma quantidade de marcos que, dez anos atrás compraria 500 bilhões de ovos, agora mal conseguia comprar um ovo.
O ex-primeiro ministro britânico David Lloyd George, escrevendo em 1932, comentou que palavras como "catástrofe", "ruína" e "devastação" não eram suficientes para descrever a situação alemã, dado que seus significados já haviam se tornado banais. Saques, vandalismo, roubos, ascensão da prostituição, inanição, doenças, e até mesmo consumo de cães se tornaram banais. Pessoas tinham suas roupas roubadas nas ruas. Tudo isso eram eventos do cotidiano de uma sociedade "burguesa" da época.
A constante iminência de uma guerra civil pairava sobre a Alemanha, como já estava acontecendo com o bolchevismo na Rússia. A Baviera teve de declarar lei marcial.
A ascensão da moeda de papel após 1910
A inflação na Alemanha começou lentamente.
Em 1871, o marco se tornou a moeda oficial do Império Alemão (Deutsches Reich). Porém, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a conversibilidade do agora chamado reichsmark em ouro foi suspensa no dia 4 de agosto de 1914. Sendo assim, o reichsmark, que até então era lastreado em ouro (e que, por isso, também era chamado de goldmark), se transformou no papiermark, uma moeda de papel puramente fiduciária, sem nenhum lastro.
Em 1914, a quantidade de papiermark em circulação era de 5,9 bilhões; já em 1918, era de 32,9 bilhões. De agosto de 1914 a novembro de 1918, os preços no atacado subiram 115%, o que significa que o poder de compra do papiermark caiu mais de 50%. Neste mesmo período, a taxa de câmbio do papiermark se depreciou 84% em relação ao dólar americano.
Inicialmente, o Reich financiou suas despesas de guerra majoritariamente por meio do endividamento. A dívida pública total subiu de 5,2 bilhões de papiermark em 1914 para 105,3 bilhões em 1918.[1]
E aí o governo recorreu cada vez mais à inflação monetária (impressão de dinheiro).
Começando em 1919, a velocidade da inflação aumentou, e o índice pulou para 12,6 em janeiro de 1920; 14,4 em janeiro de 1921 e 36,7 em janeiro de 1922. Na segunda metade de 1922, o índice já estava em 101 em julho; e foi para 74.787 em julho de 1923 e 750 bilhões em 15 de novembro de 1923.[2]
A nota de 100 trilhões de marcos foi então emitida e as impressoras do Reichsbank estavam imprimindo dinheiro ao ritmo recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana.
Em vez de parar com essa loucura, o Reichsbank continuou a imprimir cada vez mais dinheiro, com a justificativa de que, agindo assim, estava mantendo o emprego estável, e que o momento de voltar à normalidade "estava próximo".
Enquanto isso, uma atmosfera de caos civil reinava.
A Primeira Guerra
Antes de 1914, a política do Reichsbank impunha que pelo menos 1/3 do papel-moeda emitido tinha de estar lastreado em ouro. Porém, tão logo o dinheiro de papel sem lastrou passou a ser de curso forçado na Alemanha, em 1910, tudo se tornou um experimento imprudente.
Ao explodir a guerra, a maioria do mundo já havia desistido do padrão-ouro e abraçado com entusiasmo o dinheiro de papel sem lastro e de curso forçado. O ouro foi retirado de circulação e majoritariamente estocado nos cofres de alguns poucos bancos centrais, principalmente o dos EUA: de agosto de 1913 a agosto de 1919 o estoque de ouro monetário em posse do Banco Central americano — o Federal Reserve — aumentou 65%.
Enquanto isso, na Alemanha, o governo vendia maciçamente títulos do Tesouro, apelando ao patriotismo de massa para pagar pela guerra. Fortunas privadas foram transferidas para meros títulos de papel emitidos pelo estado, enquanto o Reichsbank suspendia a restituição de cédulas de dinheiro em ouro. Foram criados vários bancos com o objetivo único de imprimir dinheiro para emprestar, de modo que o crédito se tornou irrestrito para estimular as compras dos títulos emitidos pelo Tesouro alemão para financiar a guerra.
Em contraste, a Grã-Bretanha financiou a guerra com uma medida bem mais prudente do ponto de vista inflacionário: Londres aumentou os impostos sobre os grupos e indústrias que lucrariam com a guerra.
Após a guerra, o ouro da Alemanha foi exaurido com o pagamento das reparações de guerra e também como resultado da invasão francesa do Ruhr. Ainda assim, o pouco que restou do ouro era o que fornecia algum alívio ocasional aos cidadãos alemães, quando algumas indústrias conseguiam pagar seus funcionários com pequenas quantias do metal dourado. A Höchst Dye Works, por exemplo, pagava seus funcionários com os 400.000 francos suíços que ela havia armazenado em bancos suíços.
O Tratado de Versalhes e a República de Weimar
O tratado de Versalhes não foi o culpado principal; ele apenas piorou a política monetária que já estava em curso antes da guerra.
A nova República de Weimar enfrentou desafios econômicos e políticos magnânimos. Em 1920, a produção industrial havia despencado para apenas 61% do nível alcançado em 1913, e em 1923 caiu ainda mais, para 54%. Os terrenos perdidos após a promulgação do Tratado de Versalhes haviam enfraquecido consideravelmente a capacidade produtiva do Reich: o Império perdera aproximadamente 13% de suas terras e, em decorrência disso, aproximadamente 10% da população alemã vivia agora fora das fronteiras.
Adicionalmente, a Alemanha tinha de fazer vários pagamentos indenizatórios para os países vencedores da Primeira Guerra.
Ainda mais importante, no entanto, foi o fato de que os novos e inexperientes governos democráticos da Alemanha queriam atender ao máximo possível os desejos de seus eleitores. Dado que as receitas tributárias eram insuficientes para financiar estas despesas, o Reichsbank teve de recorrer à impressora de dinheiro.
De abril de 1920 a março de 1921, a proporção de receitas tributárias em relação aos gastos totais do governo era de apenas 37%. Após isso, a situação melhorou um pouco, de modo que, em junho de 1922, os impostos chegaram a cobrir 75% dos gastos totais.
Mas então a situação voltou a deteriorar. E de maneira pavorosa.
Já no final de 1922, a Alemanha foi acusada de atrasar seus pagamentos indenizatórios. Para reforçar suas reivindicações, tropas belgas e francesas invadiram e ocuparam o Vale do Ruhr, o coração industrial do Reich, em janeiro de 1923. O governo alemão, então sob o comando do chanceler Wilhelm Kuno, conclamou os trabalhadores do Vale do Ruhr a resistir a toda e qualquer ordem dos invasores, prometendo que o Reich continuaria pagando seus salários.
Para manter todo esse arranjo, o Reichsbank começou a imprimir ainda mais dinheiro para financiar os gastos do governo (em termos técnicos, o Reichsbank estava "monetizando as dívidas do governo").
O intuito era utilizar o dinheiro recém-criado para compensar a queda da arrecadação tributária e pagar os salários, as transferências sociais e os subsídios.
De maio de 1923 em diante, a quantidade de papiermark começou a ficar fora de controle. Subiu de 8,610 bilhões em maio para 17,340 bilhões em abril, para 669,703 bilhões em agosto até alcançar 400 quintilhões (ou seja, 400 seguido de 18 zeros) em novembro de 1923.
Os preços no atacado dispararam para níveis astronômicos, aumentando 18.000.000.000.000% (dezoito trilhões por cento) desde o final de 1919 até novembro de 1923.
Apenas naquele mês, o preço do dólar em termos de papiermark subiu 8,9 trilhão por cento. Em suma, o papiermark havia afundado e não comprava nem poeira.
O colapso da moeda e da economia
Em seu livro The Downfall of Money:Germany's Hyperinflation and the Destruction of the Middle Class, Frederick Taylor escreve que "pessoas com renda média e sem nenhum acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a aprender a caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda frequentemente não era o suficiente para comprar o que queriam em um determinado dia, como também porque havia, à medida que a hiperinflação se intensificava, uma genuína escassez de comida."
Já os agricultores simplesmente não queriam trocar seus alimentos por inúteis pedaços de papel que não tinham nenhum valor. "Naquilo que rapidamente estava regredindo para voltar a ser uma economia baseada no escambo, os mais espertos, para não dizer desonestos, chegavam rapidamente ao topo da cadeia darwiniana", escreveu Taylor. "Nas áreas rurais, os médicos exigiam pagamento em comida dos fazendeiros que os procuravam".
Os trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens, tão logo recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar qualquer coisa que conseguissem. O objetivo era tentar trocar o dinheiro por qualquer quantidade de bens possível. Caso não fizessem, o dinheiro que em suas mãos iria simplesmente perder todo o seu poder de compra ao longo do dia, e não lhes permitiria adquirir nada no dia seguinte.
Após comprar os itens essenciais, eles corriam até um banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse. O número de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo negócio.
Em 1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais 401 surgiram em 1923-24.
O número de funcionários de banco quadruplicou nesse período. O Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já eram 242.
Não foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade desses novos bancos. "Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para comprar e vender ações e moedas estrangeiras. E os cidadãos comuns, em número cada vez maior, se tornavam especuladores da bolsa".
Com o colapso da moeda, o desemprego disparou. Desde o final da Primeira Guerra, o desemprego havia se mantido em níveis consideravelmente baixos, uma vez que os governos de Weimar mantiveram a economia artificialmente aditivada por meio de vigorosos déficits e impressão de dinheiro. Ao final de 1919, a taxa de desemprego estava em 2,9%; em 1920, em 4,1%; em 1921, em 1,6%; e em 1922, em 2,8%.
Após o colapso, a taxa de desemprego chegou a 19,1% em outubro, a 23,4% em novembro e a 28,2% em dezembro de 1923.
A hiperinflação empobreceu a esmagadora maioria da população alemã, especialmente a classe média. As pessoas passaram a sofrer com a escassez de alimentos e com a falta de proteção contra o frio. Elas estavam também literalmente morrendo de fome, pois nenhum agricultor queria abrir mão de seus produtos em troca de uma moeda que não valia nada. Toda a colheita de 1923 ficou estocada nos silos dos agricultores; enquanto isso, as prateleiras dos supermercados estavam vazias.
O extremismo político passou a ficar em evidência e se tornou plenamente aceitável.
O colapso da moral
Tendo gerado escassez no mercado com suas políticas inflacionárias, as autoridades alemãs criaram novas regulações para tentar corrigir a irracionalidade que eles próprios haviam criado. O roteiro é sempre o mesmo, em todos os países: o governo cria intervenções que geram consequências inesperadas, e decide então recorrer a intervenções ainda mais violentas para "sanar" as consequências não previstas das intervenções anteriores.
Mas isso logrou apenas destruir também toda a moralidade.
"O colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram idênticos", escreveu Frederick Taylor.
Não eram apenas as prostitutas que vendiam seus corpos. "As recém-desprovidas filhas da classe média educada (em alguns casos, filhos também), que agora estavam no mercado do sexo pago, estavam inteiramente disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em troca de cigarros, metais preciosos ou moeda forte em vez de marcos de papel."
Com a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média, as moças jovens simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos futuros maridos. "Quando a moeda perde totalmente seu valor", escreveu uma mulher, "ela destrói todo o sistema burguês baseado no matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter casta até o casamento".
Taylor cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya Ehrenburg sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya, eles terminaram a noite visitando uma família alemã em um "apartamento burguês perfeitamente respeitável". Foi-lhes oferecido limonada com um pouco de álcool e
então as duas filhas que estavam na casa entraram na sala, totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as visitas estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez as visitas pagassem bem — em dólares, obviamente. "E é isso o que chamamos de vida", suspirou a mãe. "Na verdade, é pura e simplesmente o fim do mundo".
[Nota do Editor: a hiperinflação vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que, além do mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe média e a classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas aplicações (como as aplicações no overnight) para se proteger da hiperinflação. Essas duas coisas não existiam na Alemanha da década de 1920. Houve muita escassez e racionamento no Brasil, mas não houve uma completa chacina da classe média, como houve na Alemanha].
A Alemanha se vira para o Rentenmark
No momento de maior crise, a política monetária foi retirada das mãos do Reichsbank naquilo que foi efetivamente um coup d'etat pelo chanceler Gustav Stresemann. Todos os empréstimos ao governo foram cancelados. A política monetária foi descentralizada. O estado foi rigorosamente separado da economia.
Uma estrutura bancária paralela foi organizada por um proeminente economista rebelde não-ligado ao governo. Ele criou um novo esquema em que a moeda era lastreada por pão de centeio — a commodity mais cobiçada na época —, e mais tarde por ouro, quando a commodity passou ser usada novamente.
As moedas "lastreadas por ouro", os Rentenmarks, tinham como garantia financiamentos imobiliários em propriedades fundiárias e títulos de dívida da indústria alemã na quantia de 3 bilhões de marcos de ouro.
Mas eis o curioso: praticamente não havia reservas de ouro. Não havia ouro nos cofres do Rentenbank (o então Banco Central alemão). Nenhuma cédula de rentenmark era conversível em ouro. Simplesmente o valor do rentenmark era mantido constante em termos de ouro. Como isso era feito? O Rentenbank simplesmente expandia e contraía a base monetária (vendendo e comprando ativos) de modo a manter o valor do rentenmark o mais estável possível em termos de ouro. O mecanismo era um simples ajuste da oferta de moeda.
Mesmo não havendo ouro, o incalculável efeito social e psicológico sobre a população gerado pelo simples anúncio de que a moeda havia retornado a uma paridade com o ouro, na relação de um para um. Acalmou as tensões sociais e deu início à estabilização econômica.
Os agricultores aceitaram o rentenmark, desovaram seus estoques, e a população alemã repentinamente se viu repleta de opções alimentícia à sua volta. Bastou apenas devolver estabilidade à moeda e toda a crise acabou e a economia voltou a crescer.
"A genialidade do Rentenmark é que ele livrou o Reichsbank de ter de financiar o governo," escreveu Adam Fergusson. Uma disciplina rigorosa sobre os gastos públicos foi imposta, assim como a proibição de o Reichsbank emprestar para o governo. Por muitos anos após, era comum que obrigações de longo prazo contivessem cláusulas de ouro para que os credores pudessem se garantir contra uma nova e repentina desvalorização da moeda.
Conclusão
Não é difícil de entender por que os alemães de hoje são tão avessos a qualquer tipo de política monetária que tenha semelhanças com uma política hiperinflacionária. A revista britânica The Economist disse jocosamente que os alemães sofrem de "fobia" em relação à hiperinflação.
É claro. Quando um alemão se lembra de como a taxa de câmbio do marco pulou de 4,2 marcos por dólar em 1914 para 4,2 trilhões de marcos por dólar em novembro de 1923; quando ele se lembra de que, em meados de 1922, um pão custava 428 milhões de marcos; e que, em novembro de 1923, um ovo custava 500 bilhões de marcos, as memórias obviamente não podem ser boas.
Tendo conhecimento de algumas dessas histórias, e olhando a corrupção moral a que foi submetida a Alemanha, não é de todo incompreensível entender fenômenos como a ascensão de Hitler. E também não é incompreensível por que os alemães de hoje não são muito tolerantes com seus vizinhos europeus que defendem políticas inflacionárias.
A Venezuela já passou do ponto, mas há outros países, como a Argentina, que estão em caminhos perigosos no que tange às suas moedas. Eles deveriam ler um pouco da história da Alemanha.
13 de junho de 2018
Thorsten Polleit
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