De maneira inusitada, a Tuiuti criticou a crítica. Colocou na avenida, como fantoches, personagens vestidos com a camisa da seleção batendo panelas
O carnaval da Marquês de Sapucaí é uma escola. Os desfiles contam histórias brasileiras repletas de cores e licenças artísticas. Um festival de sambas exuberantes e momentos inesquecíveis da criatividade popular. E quase sempre trazem críticas contundentes, desenhadas para alertar almas e consciências. Claro que sem sofisticação acadêmica, mas, ainda assim, críticas que são facilmente compreendidas por toda a arquibancada, por toda a plateia.
Este ano não foi diferente. Quatro escolas se destacaram neste quesito. Mangueira, que cantou o carnaval do Rio sem dinheiro e sem prefeito. Salgueiro, que foi muito bem ao celebrar a mulher negra, apesar da polêmica black face da turma da bateria. A campeã Beija-Flor, que usou a história de Frankenstein para criticar a corrupção e a violência no Brasil. E Paraíso do Tuiuti, que usou a escravidão para criticar as reformas do governo Temer e para também tratar da corrupção.
Mas há um problema. Quando se contam histórias tão recentes, como a das reformas e a da corrupção endêmica brasileira, deve-se levar em conta que elas ainda estão em curso e, portanto, vivas na memória das pessoas. Se a história atravessar, será fácil perceber. A Beija-Flor, por exemplo, acertou ao retratar o Rio de Sérgio Cabral, com seus jantares fartos e guardanapos na cabeça, mas errou ao praticamente ignorar o PT no seu enredo de ratazanas.
A escola mostrou alegoricamente o assalto à Petrobras, mas sem qualquer referência aos governos Lula e Dilma. Corretamente, a Beija-Flor colocou uma ala de políticos de terno carregando malas de dinheiro, numa alusão direta a um primo do senador Aécio Neves e ao deputado Rodrigo Loures, amigo do presidente Michel Temer, que foram filmados pela Polícia Federal com malas iguais. Mas se era para mostrar cédulas, por que não as cuecas petistas inchadas de dólares ou as caixas de Geddel?
Na casa de tolerância da Petrobras, a escola mostrou empreiteiros com os bolsos dos paletós e das calças cheios de cédulas. Mas não houve menção aos tesoureiros do PT e de partidos aliados sendo presos em escala industrial por uso indiscriminado de caixa dois repletos de dinheiro dos mesmos empreiteiros nas campanhas eleitorais.
E em se tratando da corrupção brasileira, não poderiam faltar o tríplex e o sítio do ex-presidente Lula. Nada é mais emblemático neste ambiente que os dois imóveis, mesmo para aqueles que dizem não existir provas de o apartamento do Guarujá ser mesmo de Lula. O fato é que o ex-presidente foi condenado a 12 anos de cadeia por sua causa. Como o tríplex poderia faltar neste enredo? E que alegoria mais simples e eficiente se faria com a sua fachada.
Sobre a Tuiuti, pode-se dizer que fez uma leitura parcial da história das reformas. Foi correta a citação ao presidente Temer. Não há dúvida de que ele foi a principal personagem das reformas criticadas pela escola. Do alto de um carro, com a faixa presidencial, o presidente era caracterizado como um vampiro, talvez porque o carnavalesco Jack Vasconcelos o veja sugando o sangue dos pobres brasileiros indefesos. Tudo bem, carnaval é assim mesmo, e claramente a escola tinha um lado.
Mas, de maneira inusitada, a Tuiuti criticou a crítica. Colocou na avenida, como fantoches, personagens vestidos com a camisa da seleção brasileira batendo panelas. Talvez quisesse se referir aos que apoiaram as reformas de Temer, mas a história diz que aquelas manifestações foram na verdade em favor do impeachment da ex-presidente Dilma. Apesar de ser estranho fazer crítica a manifestações, uma vez que ela foi feita, por que não criticar também as favoráveis a Dilma?
E, da mesma forma, só apareceram fantoches amarelos ao lado dos patos da Fiesp. Como se todos os manifestantes que apoiaram o impeachment de Dilma fossem manipulados pelo sindicato patronal da indústria paulista. E aqui, mais uma vez, a parcialidade da Tuiuti não mostrou os fantoches da Central Única dos Trabalhadores, do MST e do MTST, os movimentos dos sem-terra e sem-teto ligados ao PT, que ajudaram a dar volume às manifestações a favor de Dilma e em defesa de Lula.
Vamos ser justos, o PT e seus aliados mereciam mais destaque nos carnavais críticos de Beija-Flor e Tuiuti. Mas há, claro, quem discorde. O diretor de carnaval da escola de São Cristóvão, Thiago Monteiro, disse para o site da revista “Carta Capital” que a Paraíso do Tuiuti “falou o que o povo quer ouvir”. Pode ser, mas o povo ficaria mais feliz se ouvisse a história toda, e não apenas uma parte dela.
16 de fevereiro de 2018
Ascânio Seleme é jornalista. O Globo
O carnaval da Marquês de Sapucaí é uma escola. Os desfiles contam histórias brasileiras repletas de cores e licenças artísticas. Um festival de sambas exuberantes e momentos inesquecíveis da criatividade popular. E quase sempre trazem críticas contundentes, desenhadas para alertar almas e consciências. Claro que sem sofisticação acadêmica, mas, ainda assim, críticas que são facilmente compreendidas por toda a arquibancada, por toda a plateia.
Este ano não foi diferente. Quatro escolas se destacaram neste quesito. Mangueira, que cantou o carnaval do Rio sem dinheiro e sem prefeito. Salgueiro, que foi muito bem ao celebrar a mulher negra, apesar da polêmica black face da turma da bateria. A campeã Beija-Flor, que usou a história de Frankenstein para criticar a corrupção e a violência no Brasil. E Paraíso do Tuiuti, que usou a escravidão para criticar as reformas do governo Temer e para também tratar da corrupção.
Mas há um problema. Quando se contam histórias tão recentes, como a das reformas e a da corrupção endêmica brasileira, deve-se levar em conta que elas ainda estão em curso e, portanto, vivas na memória das pessoas. Se a história atravessar, será fácil perceber. A Beija-Flor, por exemplo, acertou ao retratar o Rio de Sérgio Cabral, com seus jantares fartos e guardanapos na cabeça, mas errou ao praticamente ignorar o PT no seu enredo de ratazanas.
A escola mostrou alegoricamente o assalto à Petrobras, mas sem qualquer referência aos governos Lula e Dilma. Corretamente, a Beija-Flor colocou uma ala de políticos de terno carregando malas de dinheiro, numa alusão direta a um primo do senador Aécio Neves e ao deputado Rodrigo Loures, amigo do presidente Michel Temer, que foram filmados pela Polícia Federal com malas iguais. Mas se era para mostrar cédulas, por que não as cuecas petistas inchadas de dólares ou as caixas de Geddel?
Na casa de tolerância da Petrobras, a escola mostrou empreiteiros com os bolsos dos paletós e das calças cheios de cédulas. Mas não houve menção aos tesoureiros do PT e de partidos aliados sendo presos em escala industrial por uso indiscriminado de caixa dois repletos de dinheiro dos mesmos empreiteiros nas campanhas eleitorais.
E em se tratando da corrupção brasileira, não poderiam faltar o tríplex e o sítio do ex-presidente Lula. Nada é mais emblemático neste ambiente que os dois imóveis, mesmo para aqueles que dizem não existir provas de o apartamento do Guarujá ser mesmo de Lula. O fato é que o ex-presidente foi condenado a 12 anos de cadeia por sua causa. Como o tríplex poderia faltar neste enredo? E que alegoria mais simples e eficiente se faria com a sua fachada.
Sobre a Tuiuti, pode-se dizer que fez uma leitura parcial da história das reformas. Foi correta a citação ao presidente Temer. Não há dúvida de que ele foi a principal personagem das reformas criticadas pela escola. Do alto de um carro, com a faixa presidencial, o presidente era caracterizado como um vampiro, talvez porque o carnavalesco Jack Vasconcelos o veja sugando o sangue dos pobres brasileiros indefesos. Tudo bem, carnaval é assim mesmo, e claramente a escola tinha um lado.
Mas, de maneira inusitada, a Tuiuti criticou a crítica. Colocou na avenida, como fantoches, personagens vestidos com a camisa da seleção brasileira batendo panelas. Talvez quisesse se referir aos que apoiaram as reformas de Temer, mas a história diz que aquelas manifestações foram na verdade em favor do impeachment da ex-presidente Dilma. Apesar de ser estranho fazer crítica a manifestações, uma vez que ela foi feita, por que não criticar também as favoráveis a Dilma?
E, da mesma forma, só apareceram fantoches amarelos ao lado dos patos da Fiesp. Como se todos os manifestantes que apoiaram o impeachment de Dilma fossem manipulados pelo sindicato patronal da indústria paulista. E aqui, mais uma vez, a parcialidade da Tuiuti não mostrou os fantoches da Central Única dos Trabalhadores, do MST e do MTST, os movimentos dos sem-terra e sem-teto ligados ao PT, que ajudaram a dar volume às manifestações a favor de Dilma e em defesa de Lula.
Vamos ser justos, o PT e seus aliados mereciam mais destaque nos carnavais críticos de Beija-Flor e Tuiuti. Mas há, claro, quem discorde. O diretor de carnaval da escola de São Cristóvão, Thiago Monteiro, disse para o site da revista “Carta Capital” que a Paraíso do Tuiuti “falou o que o povo quer ouvir”. Pode ser, mas o povo ficaria mais feliz se ouvisse a história toda, e não apenas uma parte dela.
16 de fevereiro de 2018
Ascânio Seleme é jornalista. O Globo
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