Da etnia taushiro, habitante das profundezas da Amazônia peruana, só restavam quinze sobreviventes, poucas décadas atrás, e eles foram caindo um a um. Uma criança foi morta por uma onça enquanto dormia; duas outras morreram por picadas de cobra; um rapaz sangrou até morrer quando caçava na floresta. Enfim, a malária levou o chefe do grupo e só sobraram dois de seus filhos, Juan e Amadeo. Juan morreu em 1999, também de malária, e Amadeo se converteu no último sobrevivente de sua pequena nação, e no único, neste vasto mundo e alhures, falante de seu idioma. Amadeo vive hoje em Intuto, um posto avançado do governo peruano à beira do Rio Tigre, perto da fronteira com o Equador e longe do recanto da selva onde viviam os taushiros. Com presumíveis 70 anos (ele não sabe o ano em que nasceu), passa os dias numa rede, frequentemente embriagado; às vezes recita versículos da Bíblia traduzidos para sua língua natal.
A história de Amadeo, o último falante da língua taushiro, é tema de uma reportagem recentemente publicada pelo The New York Times, assinada pelo correspondente do jornal no Peru, Nicholas Casey. De nações que morrem, e com elas seu idioma, a história mundial está cheia. No Peru, 37 línguas desapareceram no século XX, informa a reportagem. Subsistem 47, metade das quais ameaçada. A Wikipedia lista dezenove desaparecidas no século XXI (verbete “extinct language”), nem sempre faladas por povos perdidos na selva. Fazem parte da lista um dialeto de pescadores da Escócia, desaparecido em 2012, e uma variante do português praticada na região de Cochin, na Índia, desaparecida em 2010. A originalidade da reportagem de Casey está em dirigir o foco não a uma comunidade, mas ao último falante, alguém que sobrou, descartado como um solitário fragmento no espaço, depois de um asteroide ter atingido seu planeta.
A desgraça dos taushiros teve início quando a área em que viviam foi invadida por exploradores de seus seringais. Forçados a trabalhar como escravos na extração do látex, até então eles nem tinham nome — eram identificados por palavras equivalentes a “pai”, “mãe”, “irmão”. Para distingui-los, os patrões lhes conferiram nomes espanhóis, e foi assim que Amadeo virou Amadeo, e seu irmão virou Juan. Nos anos 1970, junto com a Occidental Petroleum Corporation, empenhada em prospectar petróleo na região, vieram missionários evangélicos que, no propósito de ensinar a Bíblia, começaram por pesquisar a língua dos taushiros. Amadeo, então com 20 e poucos anos, foi escolhido como professor — e objeto de pesquisa — da missionária-linguista Nectali Alicea. A linguista anotava as palavras que ele lhe ditava, ao mesmo tempo em que procurava penetrar na sintaxe do misterioso idioma. Com tais métodos, produziu uma tradução de trechos do Gênesis e do Novo Testamento que se constitui na única literatura existente em taushiro.
Ter sido peça estratégica nesse trabalho exacerbou a relação afetiva de Amadeo com seu idioma. Também lhe exacerbou a angústia de se ver como o último falante, uma condição que, segundo Nicholas Casey, representa para ele um pesado fardo. Uma nação morre dentro dele. Também lhe pesa não ter mais com quem conversar no idioma nativo, desde a morte do irmão. Amadeo fala um espanhol rudimentar. Mesmo que o falasse melhor, certas intimidades e certas nuances não se expressam senão no idioma ouvido da mãe quando se ainda é um bebê. O idioma está enclausurado nele, sem ter como sair. Não existe parceiro que, ao emitir os mesmos sons, proporcionaria o aconchego do pássaro ao ouvir de volta o canto lançado aos ares. O caso de Amadeo é de uma solidão única e irremediável.
O ano de 2018 se inicia com dramas de variada índole. Os Estados Unidos se defrontam com a inédita questão da sanidade mental de seu presidente. A Coreia do Norte faz acenos de paz à do Sul sem tirar o dedo do gatilho nuclear. Multidões nas ruas abalam o regime dos aiatolás no Irã. O papa enfrenta conspirações dos cardeais conservadores. A Venezuela prossegue na política de extermínio da população como meio de salvá-la do capitalismo. O Brasil velho de guerra, de corrupção e de atraso, com a gente errada no comando, aprofunda-se na corrupção e no atraso. O distante, isolado e esquecido drama de Amadeo é maior que tudo isso, na opinião do colunista, na medida em que diz mais sobre a trajetória do bicho-homem no universo.
15 de janeiro de 2018
Roberto Pompeu de Toledo, Revista VEJA
A história de Amadeo, o último falante da língua taushiro, é tema de uma reportagem recentemente publicada pelo The New York Times, assinada pelo correspondente do jornal no Peru, Nicholas Casey. De nações que morrem, e com elas seu idioma, a história mundial está cheia. No Peru, 37 línguas desapareceram no século XX, informa a reportagem. Subsistem 47, metade das quais ameaçada. A Wikipedia lista dezenove desaparecidas no século XXI (verbete “extinct language”), nem sempre faladas por povos perdidos na selva. Fazem parte da lista um dialeto de pescadores da Escócia, desaparecido em 2012, e uma variante do português praticada na região de Cochin, na Índia, desaparecida em 2010. A originalidade da reportagem de Casey está em dirigir o foco não a uma comunidade, mas ao último falante, alguém que sobrou, descartado como um solitário fragmento no espaço, depois de um asteroide ter atingido seu planeta.
A desgraça dos taushiros teve início quando a área em que viviam foi invadida por exploradores de seus seringais. Forçados a trabalhar como escravos na extração do látex, até então eles nem tinham nome — eram identificados por palavras equivalentes a “pai”, “mãe”, “irmão”. Para distingui-los, os patrões lhes conferiram nomes espanhóis, e foi assim que Amadeo virou Amadeo, e seu irmão virou Juan. Nos anos 1970, junto com a Occidental Petroleum Corporation, empenhada em prospectar petróleo na região, vieram missionários evangélicos que, no propósito de ensinar a Bíblia, começaram por pesquisar a língua dos taushiros. Amadeo, então com 20 e poucos anos, foi escolhido como professor — e objeto de pesquisa — da missionária-linguista Nectali Alicea. A linguista anotava as palavras que ele lhe ditava, ao mesmo tempo em que procurava penetrar na sintaxe do misterioso idioma. Com tais métodos, produziu uma tradução de trechos do Gênesis e do Novo Testamento que se constitui na única literatura existente em taushiro.
Ter sido peça estratégica nesse trabalho exacerbou a relação afetiva de Amadeo com seu idioma. Também lhe exacerbou a angústia de se ver como o último falante, uma condição que, segundo Nicholas Casey, representa para ele um pesado fardo. Uma nação morre dentro dele. Também lhe pesa não ter mais com quem conversar no idioma nativo, desde a morte do irmão. Amadeo fala um espanhol rudimentar. Mesmo que o falasse melhor, certas intimidades e certas nuances não se expressam senão no idioma ouvido da mãe quando se ainda é um bebê. O idioma está enclausurado nele, sem ter como sair. Não existe parceiro que, ao emitir os mesmos sons, proporcionaria o aconchego do pássaro ao ouvir de volta o canto lançado aos ares. O caso de Amadeo é de uma solidão única e irremediável.
O ano de 2018 se inicia com dramas de variada índole. Os Estados Unidos se defrontam com a inédita questão da sanidade mental de seu presidente. A Coreia do Norte faz acenos de paz à do Sul sem tirar o dedo do gatilho nuclear. Multidões nas ruas abalam o regime dos aiatolás no Irã. O papa enfrenta conspirações dos cardeais conservadores. A Venezuela prossegue na política de extermínio da população como meio de salvá-la do capitalismo. O Brasil velho de guerra, de corrupção e de atraso, com a gente errada no comando, aprofunda-se na corrupção e no atraso. O distante, isolado e esquecido drama de Amadeo é maior que tudo isso, na opinião do colunista, na medida em que diz mais sobre a trajetória do bicho-homem no universo.
15 de janeiro de 2018
Roberto Pompeu de Toledo, Revista VEJA
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