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“Daqui a 20 ou 30 anos, não será absurdo imaginar que a legítima defesa terá deixado de existir, ou até que será proibido reagir a um assalto ou tentativa de assassinato”
"CHRIST IN LIMBO", HIERONYMOUS BOSCH
O Brasil segue, altaneiro, desafiando as mais bizarras ficções distópicas. E é uma tragédia, no fundo, que tenhamos nos acostumado a isso, quando deveríamos protagonizar uma violenta onda de desobediência civil. Já se trata essas coisas como um traço cultural, como parte da paisagem, como o Cristo Redentor: algo que está lá há muito tempo e é um caractere de identificação do país. A Torre de Pisa é um símbolo da Itália; a Torre Eiffel, da França; a Estátua da Liberdade dos Estados Unidos (embora enfeite algumas lojas e shopping centers em nosso território), e temos o nosso Cristo Redentor. Postas essas imagens lado a lado, se identifica rapidamente ao que se referem. É bem verdade que todos esses lugares também atravessam períodos estranhos, até perturbadores, mas, como gostamos de lembrar que “saudade” só existe em português e “Deus é brasileiro”, aqui o proverbial buraco é bem mais embaixo.
“Pós-verdade” é um termo que surgiu por volta da eleição de Donald Trump e que descreve um fenômeno perverso na comunicação – não apenas na imprensa, mas sobretudo nela – e que pode ser resumido da seguinte forma: os hard facts não mais importam, o que importa é a narrativa. Assim é que a imprensa, ao invés de narrar os fatos depois de apurá-los, outorgou a si mesma uma prerrogativa diferente de sua função e razão de ser: não mais descrever a realidade, mas tentar dobrá-la, moldá-la e fazê-la encaixar em uma moldura pré-definida por uma agenda ideológica, que pode representar um momentâneo interesse político-partidário e eleitoral (como se notou nos EUA, recentemente) ou um compromisso de maior duração, de permanência. Mudar, aos poucos, o significado de palavras e de conceitos, mais ou menos como acontece em “1984”, de Goerge Orwell – relembrado pela imprensa americana pelos motivos errados, mas, ironicamente, de maneira apropriada.
Assim é que a imprensa e a comunicação por meio de redes sociais foram progressivamente distorcendo o conteúdo fático que veiculam para tentar forçar a realidade a corresponder a seus desejos e interesses. Os exemplos abundam: desde a desastrosa cobertura da eleição americana (que dava a eleição de vencida por Hillary Clinton, ignorando propositalmente todas as evidências em contrário), um exemplo de distorção deliberada temperado com um pouco de incompetência; passando pela pura e simples criação de fatos inexistentes, as até divertidas “fanfics” progressistas, que narram episódios imaginários de luta de classes na fila do supermercado e agressões praticadas contra esquerdistas por “coxinhas” e “eleitores do Bolsonaro” (nunca acompanhados de fotos ou vídeos, curiosamente). O que há em comum em ambos os exemplos é exatamente a “criação de uma narrativa”, não a descrição de fatos. A finalidade é “criar o clima” cultural, seja para influenciar eleitores ou para justificar o comportamento violento da própria esquerda – o que foi visto com alarmante frequência sempre que “black blocs” tomaram as ruas, quando se relativizou até mesmo o assassinato do cinegrafista Santiago Andrade. O mecanismo da “pós-verdade” é um artifício revolucionário. É mais do que a assessoria de imprensa informal de uma causa; é a submissão de uma atividade a uma finalidade estranha a ela. No fundo, é nisso que se constitui a revolução moderna: o sequestro da linguagem, das instituições, dos agrupamentos de pessoas – das igrejas e paróquias, grêmios estudantis e escolas, universidades, centros acadêmicos, dos clubes e associações para torna-los centro de irradiação ideológica.
O Poder Judiciário é um desses importantes centros nervosos, uma instituição vital para o funcionamento da sociedade e que está lentamente se convertendo em outra coisa que não um mediador de conflitos, fiscal dos outros poderes e aplicador das leis – o que deveria ser, por definição. O julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE foi um importante marco simbólico dessa metamorfose. Por trás da retórica empolada, o que aconteceu foi uma acomodação, ou, para ser mais coloquial, um acochambramento. Ao invés da lei ser aplicada como deveria, o TSE, capitaneado por Gilmar Mendes, agiu em atenção a circunstâncias políticas e para acomodar forças que travam uma intensa luta intestina pelo poder e pela salvação. O resultado óbvio era a cassação da chapa, mas uma cortina de fumaça de tecnicalidades e truques retóricos impediu que isso se realizasse, como deveria ser. Curiosamente, Gilmar Mendes traduziu um panfleto do jurista alemão Konrad Hesse (“A Força Normativa da Constituição”) no qual se lê o seguinte:
“Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela realpolitik. Assim, o direito constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar as relações de poder dominantes”.
Todo o direito brasileiro parece se encaminhar, lentamente, para isso – justificar as relações de poder dominantes. Não apenas as político-partidárias, mutáveis e voláteis como normalmente são, e especialmente na apodrecida política brasileira, mas em tantas outras. Assim é que o Ministério Público do Mato Grosso processou policiais militares que atenderam a ocorrência de um assalto em Cuiabá, para exigir que os assaltantes fossem indenizados; ou que um policial militar mineiro foi preso em flagrante por matar um assaltante em legítima defesa, com a ocorrência descrita pela imprensa de maneira inacreditável: “sargento da PM é suspeito de reagir a tentativa de assalto”. Como é que alguém pode ser “suspeito” de se conduzir de maneira legal é um mistério. Inverteu-se barbaramente a realidade para sugerir que é “errado”, é “ilegal” e “criminoso” reagir a um assalto – e isso sem nem se levar em conta que se tratava de um policial militar fardado que saía de casa para o trabalho, o que era praticamente garantia de que seria executado, como acontece diariamente no Brasil e é conhecido ritual de iniciação de facções criminosas. Todo o recorrente discurso de “cadeia não resolve”, de que se deve optar por alternativas menos gravosas (tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar) e que a prisão é exceção, e não regra (e só pode acontecer depois do trânsito em julgado da condenação – ou sabe-se lá quando) cai por terra. No entanto, não se viu nenhum protesto dos Kakays da vida contra a prisão do sargento da PMMG.
As “relações de poder” que o abolicionismo penal protege deveriam, a essa altura, ser claras: há poucos dias um magistrado carioca, apreciando habeas corpus, liberou um traficante encontrado na posse de 4 quilos de maconha, 58 gramas de crack e dois fuzis (*). Depois de muitos truques retóricos e de tratar as palavras como massinha de modelar, se concluiu que não havia razão para manter o ofensor preso, e ele foi solto, para continuar a prática delitiva à vontade. Não se tem notícia de que isso tenha acontecido com o sargento da PMMG que matou para não ser executado.
E assim, de alto a baixo, o Poder Judiciário vai deixando de aplicar a lei e punir ofensores para “constatar e comentar os fatos criados pela realpolitik” – seja desmontando, aos poucos, a investigação de esquemas de corrupção, seja mantendo criminosos perigosos soltos para que continuem a delinquir. Nada disso acontece por acaso, mas é o objetivo tencionado por um conjunto de interesses que culmina na conquista e manutenção do poder político. O julgamento do TSE reflete isso diretamente: ali testou-se o limite da retórica para dizer, claramente, que a política é mais importante que a justiça (quando um ou mais representantes seus são os encarregados de dizê-la), e que a aplicação da lei está sujeita aos passageiros esquemas de poder, e não o contrário. O abolicionismo penal é a parte mais baixa do mesmo arranjo: os juízes abolicionistas e garantistas são, quase todos, integrantes de verdadeiras seitas progressistas que pregam abertamente o laxismo penal como medida de “humanidade”, com o objetivo mais ou menos oculto de usar o criminoso como bate-paus revolucionários, cães de fila alistados involuntariamente para cumprir um papel parecido com o das “guardas bolivarianas” da Venezuela. É isso que se pensa em corriolas como o “Juízes pela Democracia” ou em grupos e sites jurídicos capitaneados por criminalistas que respondem por alcunhas – onde se defende abertamente a “desmilitarização da polícia” com um discurso cheio de floreios e “humanidades”, mas com o objetivo claro de submeter a força policial ao cabresto sindical – e, aí sim, criar as tão sonhadas “brigadas bolivarianas”.
Isso tudo acontece lenta e inexoravelmente, como o curso d’água que esculpe as pedras no leito de um rio. Daqui a 20 ou 30 anos, não será absurdo imaginar que a legítima defesa terá deixado de existir, ou até que será proibido reagir a um assalto ou tentativa de assassinato – com algum tempero, claro, e apenas se o agressor pertencer a uma camada “menos privilegiada” da sociedade. Os privilegiados e poderosos se resolvem nos tribunais superiores.
É esperar para ver.
(*) – Autos n. 0093457-86.2017.8.21.7000
25 de junho de 2017
senso incomum
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.
O Brasil segue, altaneiro, desafiando as mais bizarras ficções distópicas. E é uma tragédia, no fundo, que tenhamos nos acostumado a isso, quando deveríamos protagonizar uma violenta onda de desobediência civil. Já se trata essas coisas como um traço cultural, como parte da paisagem, como o Cristo Redentor: algo que está lá há muito tempo e é um caractere de identificação do país. A Torre de Pisa é um símbolo da Itália; a Torre Eiffel, da França; a Estátua da Liberdade dos Estados Unidos (embora enfeite algumas lojas e shopping centers em nosso território), e temos o nosso Cristo Redentor. Postas essas imagens lado a lado, se identifica rapidamente ao que se referem. É bem verdade que todos esses lugares também atravessam períodos estranhos, até perturbadores, mas, como gostamos de lembrar que “saudade” só existe em português e “Deus é brasileiro”, aqui o proverbial buraco é bem mais embaixo.
“Pós-verdade” é um termo que surgiu por volta da eleição de Donald Trump e que descreve um fenômeno perverso na comunicação – não apenas na imprensa, mas sobretudo nela – e que pode ser resumido da seguinte forma: os hard facts não mais importam, o que importa é a narrativa. Assim é que a imprensa, ao invés de narrar os fatos depois de apurá-los, outorgou a si mesma uma prerrogativa diferente de sua função e razão de ser: não mais descrever a realidade, mas tentar dobrá-la, moldá-la e fazê-la encaixar em uma moldura pré-definida por uma agenda ideológica, que pode representar um momentâneo interesse político-partidário e eleitoral (como se notou nos EUA, recentemente) ou um compromisso de maior duração, de permanência. Mudar, aos poucos, o significado de palavras e de conceitos, mais ou menos como acontece em “1984”, de Goerge Orwell – relembrado pela imprensa americana pelos motivos errados, mas, ironicamente, de maneira apropriada.
Assim é que a imprensa e a comunicação por meio de redes sociais foram progressivamente distorcendo o conteúdo fático que veiculam para tentar forçar a realidade a corresponder a seus desejos e interesses. Os exemplos abundam: desde a desastrosa cobertura da eleição americana (que dava a eleição de vencida por Hillary Clinton, ignorando propositalmente todas as evidências em contrário), um exemplo de distorção deliberada temperado com um pouco de incompetência; passando pela pura e simples criação de fatos inexistentes, as até divertidas “fanfics” progressistas, que narram episódios imaginários de luta de classes na fila do supermercado e agressões praticadas contra esquerdistas por “coxinhas” e “eleitores do Bolsonaro” (nunca acompanhados de fotos ou vídeos, curiosamente). O que há em comum em ambos os exemplos é exatamente a “criação de uma narrativa”, não a descrição de fatos. A finalidade é “criar o clima” cultural, seja para influenciar eleitores ou para justificar o comportamento violento da própria esquerda – o que foi visto com alarmante frequência sempre que “black blocs” tomaram as ruas, quando se relativizou até mesmo o assassinato do cinegrafista Santiago Andrade. O mecanismo da “pós-verdade” é um artifício revolucionário. É mais do que a assessoria de imprensa informal de uma causa; é a submissão de uma atividade a uma finalidade estranha a ela. No fundo, é nisso que se constitui a revolução moderna: o sequestro da linguagem, das instituições, dos agrupamentos de pessoas – das igrejas e paróquias, grêmios estudantis e escolas, universidades, centros acadêmicos, dos clubes e associações para torna-los centro de irradiação ideológica.
O Poder Judiciário é um desses importantes centros nervosos, uma instituição vital para o funcionamento da sociedade e que está lentamente se convertendo em outra coisa que não um mediador de conflitos, fiscal dos outros poderes e aplicador das leis – o que deveria ser, por definição. O julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE foi um importante marco simbólico dessa metamorfose. Por trás da retórica empolada, o que aconteceu foi uma acomodação, ou, para ser mais coloquial, um acochambramento. Ao invés da lei ser aplicada como deveria, o TSE, capitaneado por Gilmar Mendes, agiu em atenção a circunstâncias políticas e para acomodar forças que travam uma intensa luta intestina pelo poder e pela salvação. O resultado óbvio era a cassação da chapa, mas uma cortina de fumaça de tecnicalidades e truques retóricos impediu que isso se realizasse, como deveria ser. Curiosamente, Gilmar Mendes traduziu um panfleto do jurista alemão Konrad Hesse (“A Força Normativa da Constituição”) no qual se lê o seguinte:
“Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela realpolitik. Assim, o direito constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar as relações de poder dominantes”.
Todo o direito brasileiro parece se encaminhar, lentamente, para isso – justificar as relações de poder dominantes. Não apenas as político-partidárias, mutáveis e voláteis como normalmente são, e especialmente na apodrecida política brasileira, mas em tantas outras. Assim é que o Ministério Público do Mato Grosso processou policiais militares que atenderam a ocorrência de um assalto em Cuiabá, para exigir que os assaltantes fossem indenizados; ou que um policial militar mineiro foi preso em flagrante por matar um assaltante em legítima defesa, com a ocorrência descrita pela imprensa de maneira inacreditável: “sargento da PM é suspeito de reagir a tentativa de assalto”. Como é que alguém pode ser “suspeito” de se conduzir de maneira legal é um mistério. Inverteu-se barbaramente a realidade para sugerir que é “errado”, é “ilegal” e “criminoso” reagir a um assalto – e isso sem nem se levar em conta que se tratava de um policial militar fardado que saía de casa para o trabalho, o que era praticamente garantia de que seria executado, como acontece diariamente no Brasil e é conhecido ritual de iniciação de facções criminosas. Todo o recorrente discurso de “cadeia não resolve”, de que se deve optar por alternativas menos gravosas (tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar) e que a prisão é exceção, e não regra (e só pode acontecer depois do trânsito em julgado da condenação – ou sabe-se lá quando) cai por terra. No entanto, não se viu nenhum protesto dos Kakays da vida contra a prisão do sargento da PMMG.
As “relações de poder” que o abolicionismo penal protege deveriam, a essa altura, ser claras: há poucos dias um magistrado carioca, apreciando habeas corpus, liberou um traficante encontrado na posse de 4 quilos de maconha, 58 gramas de crack e dois fuzis (*). Depois de muitos truques retóricos e de tratar as palavras como massinha de modelar, se concluiu que não havia razão para manter o ofensor preso, e ele foi solto, para continuar a prática delitiva à vontade. Não se tem notícia de que isso tenha acontecido com o sargento da PMMG que matou para não ser executado.
E assim, de alto a baixo, o Poder Judiciário vai deixando de aplicar a lei e punir ofensores para “constatar e comentar os fatos criados pela realpolitik” – seja desmontando, aos poucos, a investigação de esquemas de corrupção, seja mantendo criminosos perigosos soltos para que continuem a delinquir. Nada disso acontece por acaso, mas é o objetivo tencionado por um conjunto de interesses que culmina na conquista e manutenção do poder político. O julgamento do TSE reflete isso diretamente: ali testou-se o limite da retórica para dizer, claramente, que a política é mais importante que a justiça (quando um ou mais representantes seus são os encarregados de dizê-la), e que a aplicação da lei está sujeita aos passageiros esquemas de poder, e não o contrário. O abolicionismo penal é a parte mais baixa do mesmo arranjo: os juízes abolicionistas e garantistas são, quase todos, integrantes de verdadeiras seitas progressistas que pregam abertamente o laxismo penal como medida de “humanidade”, com o objetivo mais ou menos oculto de usar o criminoso como bate-paus revolucionários, cães de fila alistados involuntariamente para cumprir um papel parecido com o das “guardas bolivarianas” da Venezuela. É isso que se pensa em corriolas como o “Juízes pela Democracia” ou em grupos e sites jurídicos capitaneados por criminalistas que respondem por alcunhas – onde se defende abertamente a “desmilitarização da polícia” com um discurso cheio de floreios e “humanidades”, mas com o objetivo claro de submeter a força policial ao cabresto sindical – e, aí sim, criar as tão sonhadas “brigadas bolivarianas”.
Isso tudo acontece lenta e inexoravelmente, como o curso d’água que esculpe as pedras no leito de um rio. Daqui a 20 ou 30 anos, não será absurdo imaginar que a legítima defesa terá deixado de existir, ou até que será proibido reagir a um assalto ou tentativa de assassinato – com algum tempero, claro, e apenas se o agressor pertencer a uma camada “menos privilegiada” da sociedade. Os privilegiados e poderosos se resolvem nos tribunais superiores.
É esperar para ver.
(*) – Autos n. 0093457-86.2017.8.21.7000
25 de junho de 2017
senso incomum
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.
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