O combate à corrupção no Brasil está entrando em uma fase delicada, em que a defesa de interesses escusos se mistura com a de garantias de direitos individuais e das empresas privadas, abrindo um debate que pode ser rico para o aperfeiçoamento de nossas instituições. Um mau sinal é que essas reações se avolumam à medida que a força da lei se aproxima da classe política.
A tentativa de legislar sobre o caixa 2 eleitoral para tipificá-lo como crime específico tinha, na verdade, a intenção, compartilhada pelos líderes dos maiores partidos no Congresso, de favorecer a interpretação de que o que aconteceu antes da nova lei não poderia ser classificado de crime, mas infração eleitoral sujeita a multas, e não a cadeia. Como candidamente afirmou um dos principais ministros de Temer, sem ser admoestado de maneira a não deixar dúvida de que o Palácio do Planalto nada tinha a ver com aquela conversa.
Denunciada a farsa, eis que dias atrás outro projeto, desta vez do senador Telmário Mota do PDT, pousa na mesa do Senado, com objetivos semelhantes. Como no projeto de lei abortado, a redação do projeto do Senado é similar a uma das medidas das 10 propostas do Ministério Público Federal contra a corrupção, com penas até mais pesadas em certos casos.
Segundo especialistas, porém, aprovando-se tal matéria agora, certamente seriam agraciados, pela retroação benéfica que a Constituição autoriza, aqueles investigados e processados pela Lava Jato.
Também no Supremo Tribunal Federal há incômodos diante de certas atitudes dos procuradores de Curitiba e do próprio juiz Sérgio Moro. Depois de ter aparecido de maneira insólita e despropositada como parte da delação premiada do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS — o que gerou a anulação de todo o processo por parte do procurador-geral da República — o ministro Dias Toffolli já fez diversas advertências sobre os abusos que podem ser cometidos em nome do combate à corrupção, e o ministro Gilmar Mendes aumentou o tom das críticas aos procuradores, sempre ressalvando que a Operação Lava-Jato em si tem que ser preservada, inclusive dos exageros dos procuradores.
O ministro Marco Aurélio Mello está à frente de duas ações que podem limitar a ação dos procuradores e dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao desbloquear os bens de empreiteiras defendendo a tese de que o TCU não tem jurisdição sobre empresas privadas, ele está em choque com a interpretação do tribunal e de muitos juristas, mas tem a seu favor outros tantos que consideram que o TCU está extrapolando suas funções.
Da mesma maneira, o STF vai retomar esta semana o debate sobre a prisão já na segunda instância, uma das 10 medidas contra a corrupção defendidas pelo MPF e que está em vigor, mas sem efeito obrigatório. Depende de cada juiz, hoje, acatar ou não a nova jurisprudência, e os próprios ministros do Supremo que são contra a medida já deram liminares a favor dos condenados, soltando-os.
O que se quer é que o assunto seja decidido em caráter vinculante pelo plenário do STF. O placar que foi de 7 a 4 a favor da mudança pode se alterar devido ao novo ambiente político, com mais ministros entendendo que é preciso dar um freio na ação dos procuradores, que estariam extrapolando sua autoridade.
Já foi uma derrota da nova presidente do STF, ministra Carmem Lucia, ter colocado na pauta o tema, que ela gostaria de ver postergado. O que indica que talvez já haja uma maioria, senão para voltar ao antigo entendimento de que a prisão só pode ser feita depois do trânsito em julgado, pelo menos para flexibilizar a decisão, criando-se uma instância intermediária antes da decretação da prisão, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Qualquer mudança, contudo, desestimulará muitas delações premiadas.
O episódio da prisão e soltura do ex-ministro Guido Mantega é exemplar dessa nova situação de pressões e contrapressões sobre os procuradores e o juiz Sérgio Moro. O recuo deixou a entender que não havia motivo para prendê-lo, e revelou também uma fragilidade diante das pressões políticas que vêm sofrendo.
Estamos diante de uma disputa de direitos e deveres que pode indicar novos caminhos, mas pode também representar um retrocesso se prevalecer a manutenção de um sistema judicial que favorece os privilegiados de sempre e protege corporações em vez de instituições.
26 de setembro de 2016
Merval Pereira, O Globo
A tentativa de legislar sobre o caixa 2 eleitoral para tipificá-lo como crime específico tinha, na verdade, a intenção, compartilhada pelos líderes dos maiores partidos no Congresso, de favorecer a interpretação de que o que aconteceu antes da nova lei não poderia ser classificado de crime, mas infração eleitoral sujeita a multas, e não a cadeia. Como candidamente afirmou um dos principais ministros de Temer, sem ser admoestado de maneira a não deixar dúvida de que o Palácio do Planalto nada tinha a ver com aquela conversa.
Denunciada a farsa, eis que dias atrás outro projeto, desta vez do senador Telmário Mota do PDT, pousa na mesa do Senado, com objetivos semelhantes. Como no projeto de lei abortado, a redação do projeto do Senado é similar a uma das medidas das 10 propostas do Ministério Público Federal contra a corrupção, com penas até mais pesadas em certos casos.
Segundo especialistas, porém, aprovando-se tal matéria agora, certamente seriam agraciados, pela retroação benéfica que a Constituição autoriza, aqueles investigados e processados pela Lava Jato.
Também no Supremo Tribunal Federal há incômodos diante de certas atitudes dos procuradores de Curitiba e do próprio juiz Sérgio Moro. Depois de ter aparecido de maneira insólita e despropositada como parte da delação premiada do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS — o que gerou a anulação de todo o processo por parte do procurador-geral da República — o ministro Dias Toffolli já fez diversas advertências sobre os abusos que podem ser cometidos em nome do combate à corrupção, e o ministro Gilmar Mendes aumentou o tom das críticas aos procuradores, sempre ressalvando que a Operação Lava-Jato em si tem que ser preservada, inclusive dos exageros dos procuradores.
O ministro Marco Aurélio Mello está à frente de duas ações que podem limitar a ação dos procuradores e dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao desbloquear os bens de empreiteiras defendendo a tese de que o TCU não tem jurisdição sobre empresas privadas, ele está em choque com a interpretação do tribunal e de muitos juristas, mas tem a seu favor outros tantos que consideram que o TCU está extrapolando suas funções.
Da mesma maneira, o STF vai retomar esta semana o debate sobre a prisão já na segunda instância, uma das 10 medidas contra a corrupção defendidas pelo MPF e que está em vigor, mas sem efeito obrigatório. Depende de cada juiz, hoje, acatar ou não a nova jurisprudência, e os próprios ministros do Supremo que são contra a medida já deram liminares a favor dos condenados, soltando-os.
O que se quer é que o assunto seja decidido em caráter vinculante pelo plenário do STF. O placar que foi de 7 a 4 a favor da mudança pode se alterar devido ao novo ambiente político, com mais ministros entendendo que é preciso dar um freio na ação dos procuradores, que estariam extrapolando sua autoridade.
Já foi uma derrota da nova presidente do STF, ministra Carmem Lucia, ter colocado na pauta o tema, que ela gostaria de ver postergado. O que indica que talvez já haja uma maioria, senão para voltar ao antigo entendimento de que a prisão só pode ser feita depois do trânsito em julgado, pelo menos para flexibilizar a decisão, criando-se uma instância intermediária antes da decretação da prisão, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Qualquer mudança, contudo, desestimulará muitas delações premiadas.
O episódio da prisão e soltura do ex-ministro Guido Mantega é exemplar dessa nova situação de pressões e contrapressões sobre os procuradores e o juiz Sérgio Moro. O recuo deixou a entender que não havia motivo para prendê-lo, e revelou também uma fragilidade diante das pressões políticas que vêm sofrendo.
Estamos diante de uma disputa de direitos e deveres que pode indicar novos caminhos, mas pode também representar um retrocesso se prevalecer a manutenção de um sistema judicial que favorece os privilegiados de sempre e protege corporações em vez de instituições.
26 de setembro de 2016
Merval Pereira, O Globo
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