"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 17 de maio de 2016

UMA OUTRA ARGENTINA

Terá acabado finalmente para a Argentina o tempo dos desvarios populistas e o feitiço suicida que o “socialismo do século 21” de Chávez e Maduro exerceu sobre o governo dos Kirchners? Depois de passar uma semana nesse país, alegra-me dizer que sim.

Nos poucos meses desde que assumiu o poder, Mauricio Macri realizou reformas corajosas e radicais para desmontar a máquina intervencionista e demagógica que estava arruinando uma das nações mais ricas do mundo, isolando-a e empurrando-a para o abismo.

Não é necessário recorrer a sondagens e a estatísticas para demonstrá-lo. A mudança está no ar que as pessoas respiram, em sua maneira de falar sobre o momento atual, no alívio e no otimismo com que ouço se expressar a maioria dos conhecidos e desconhecidos sobre a atualidade política. É verdade que a oposição peronista – embora talvez seja melhor dizer kirchnerista, pois o peronismo, constituído por um leque de tendências, não é unívoco em sua oposição, mas diversificado e matizado – não deu ao novo governo um período de graça e começou a atacá-lo sem piedade e a sabotar toda a luta pela transparência na economia – o cancelamento dos subsídios que a asfixiavam – e a opor-se às reformas. Mas os benefícios já são visíveis e inequívocos.

Desde seu acordo com os administradores dos chamados “fundos abutres”, a Argentina recuperou o crédito internacional e o desaparecimento desses grilhões devolveu à sua moeda uma estabilidade de que não desfrutava havia tempo. A visita do presidente Obama, que significou um aval importante para a nova Argentina, abriu um desfile de visitantes de grande destaque, das áreas política e econômica, com o fim de explorar a possibilidade de investir numa terra pródiga em recursos que as políticas nacionalistas de Cristina Kirchner estavam levando a uma ruinosa autarquia.

Quanto à política internacional, o governo de Macri deu uma guinada total em comparação à do regime anterior, manifestando sua vocação democrática, criticando a violação da legalidade e dos direitos humanos na Venezuela. Em relação a isso, particularmente, ele pediu que o regime de Maduro abra um diálogo com a oposição a fim de assegurar que uma transição pacífica ponha fim à lenta desintegração de um país que o estatismo e o coletivismo levaram à fome e ao caos.

Tom. Que diferença ligar a televisão e, em vez dos lugares comuns e dos slogans terceiro-mundistas que faziam as vezes de ideias nos discursos de Cristina Kirchner, ouvir o presidente Macri numa coletiva à imprensa explicar com clareza, simplicidade e franqueza que sanear uma economia paralisada pelo construtivismo demagógico tem um alto preço, impossível de evitar. Além disso, sem esse saneamento que consiste em abandonar a quimera e voltar para a realidade, a Argentina nunca sairia do poço em que a atirou uma ideologia fracassada em todos os países em que foi aplicada.

O presidente explicou também, de maneira absolutamente persuasiva, o motivo pelo qual a mal definida ‘lei anti-demissões’ que a oposição no Senado acaba de ver aprovada só servirá para dificultar a criação de novos empregos por desestimular as empresas a estenderem seus serviços e contratar mais funcionários. Em todas as intervenções públicas e nas conversas privadas do novo chefe de governo argentino que ouvi esta semana, ele me pareceu desprovido da arrogância que costuma acompanhar o poder, da retórica sem substância de tantos políticos, empenhado em lançar pontes e em convencer seus compatriotas de que os sacrifícios imprescindíveis que o fim do nefasto populismo exige são o único caminho pelo qual a Argentina pode recuperar a prosperidade e a modernidade de que já desfrutou no passado.

E há razões para acreditar nele. A Argentina é um país muito rico em recursos naturais e humanos. O sistema educacional exemplar que teve no passado, embora deteriorado em razão das más políticas de governos anteriores, ainda produz cidadãos mais bem formados em relação à média latino-americana – talvez nenhum outro país da região tenha exportado mais técnicos de alto nível para o resto do mundo.

Dinamização. Indubitavelmente, com as reformas em curso, os investimentos estrangeiros, retraídos durante todos esses anos, voltarão em grande número a uma terra tão generosa, criando os tão necessários empregos e elevando os níveis de vida e as oportunidades para os argentinos.

Há um aspecto que gostaria de destacar entre as mudanças que a Argentina vive neste momento. Com a liberdade de expressão, que sofreu tantas avarias durante os governos dos Kirchners, a corrupção – que no âmbito desse Estado, definido por Octavio Paz como “ogro filantrópico”, proliferou de maneira cancerosa – sai à luz, assim como, nestes dias precisamente, as notícias estarrecedoras a respeito das cifras vertiginosas que os testas de ferro dos antigos mandatários acumularam, monopolizando as obras públicas de regiões inteiras e saqueando seus orçamentos de maneira vergonhosa, transformando em multimilionários os donos do poder que se gabavam de ser revolucionários anti-imperialistas e inimigos jurados do capitalismo.

Duvido muito que haja um único capitalista no mundo que tenha acumulado uma fortuna tão prodigiosa quanto Lázaro Baez, testa de ferro, ao que tudo indica, de Néstor Kirchner e agora na prisão, antigo caixa de um banco de Santa Cruz que, não muitos anos depois, tinha cerca de quatrocentas propriedades rurais e urbanas, cerca de uma centena de automóveis em seu país e comprava apartamentos e casas em Miami por mais de cem milhões de dólares.

O sucesso da Argentina nas pacíficas reformas democráticas e liberais que está empreendendo é de uma importância que transcende suas fronteiras. A América Latina pode aprender muito com esse país que quase chegou ao fundo do abismo por culpa da ideologia coletivista e estatista que por pouco não o arruinou – e, no entanto, se levantou das cinzas com os votos dos seus cidadãos e teve a coragem de abandonar o caminho equivocado para seguir o dos países que graças à liberdade – a única verdadeira, a que abrange a política, a economia, a cultura, o âmbito social, cultural e pessoal – alcançaram os melhores níveis de vida do nosso tempo, reduzindo ainda mais a violência nas relações humanas. É também o caminho dos que criaram a maior igualdade de oportunidades para que seus cidadãos pudessem concretizar suas aspirações e seus sonhos.

Embora, às vezes de maneira confusa, acredite que esse é agora um ideal que foi lançando raízes nos países latino-americanos, onde os antigos modelos que disputavam entre si o favor das pessoas – as ditaduras militares e as revoluções armadas socialistas – perderam prestígio, atualidade e só valem para minorias insignificantes. Por isso, com as exceções de Cuba e Venezuela, em toda a região há ainda democracias, ainda que algumas sejam muito imperfeitas e ameaçadas pela corrupção. A Argentina pode ser o exemplo a ser seguido para renová-las, purificá-las e pô-las em dia, de modo a se integrarem ao mundo e aproveitarem das grandes possibilidades que ele oferece aos países que promovem a cultura da liberdade. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA



17 de maio de 2016
Mario Vaergas Llosa, Estadão

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