Numa passagem de 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx mostra como é frequente os atores de uma determinada época buscarem inspiração nos acontecimentos de outra. Se o período histórico evocado pelos homens contemporâneos pode ser revelador da natureza das tarefas que eles pretendem realizar, mesmo que o resultado final possa ser diferente do esperado, vale a pena deter-se na consideração do seu significado. O Brasil do ano eleitoral que se encerra tem algo da atmosfera imaginária na qual, há mais de meio século, a democracia norte-americana criou o arcabouço de leis, instituições e ações do New Deal.
Conjunto de programas iniciados na primeira Presidência de Franklin D. Roosevelt para fazer frente à crise de 1929, o New Deal permitiu um salto na qualidade de vida dos pobres e propiciou maior igualdade entre os cidadãos americanos. Ter instaurado tal ambiente é um legado dos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele pode moldar o “marco regulatório”, para usar uma expressão do mundo jurídico, no qual ocorrerão as próximas disputas eleitorais. Isto é, partidos e candidatos divergirão quanto aos meios, mas os fins estão fixados de antemão.
Nesse caso, as eleições brasileiras de 2002 e 2006 poderão ser vistas, no futuro, como o início de um longo ciclo político, semelhante ao que aconteceu com as vitórias de Roosevelt em 1932 e 1936. Na primeira eleição (1932, 2002), formou-se uma nova maioria. Na segunda (1936, 2006), em uma votação de continuidade, a coalizão majoritária se manteve, mas com uma troca de posição importante no apoio ao presidente. Em ambos os casos (Roosevelt, Lula), a troca de apoio decorreu da política levada a cabo no primeiro mandato: a classe média se afastou do presidente, mas eleitores pobres tomaram o seu lugar.
Durante a vigência do ciclo, é possível até haver troca de partidos no poder. Foi o que ocorreu em 1952 e 1956, com a vitória republicana. Mas ela não implicou abandono dos grandes objetivos nacionais: a diminuição da pobreza e o incremento da igualdade. De acordo com o cientista político John Berg, as eleições de realinhamento “têm o potencial de definir um novo tipo de política, um novo conjunto de clivagens, que pode durar décadas”.
Não seria por acaso, portanto, que comparações entre o período atual e o de Roosevelt tenham se multiplicado recentemente. Em julho, citando o economista americano Paul Krugman, o jornalista Fernando de Barros e Silva escreveu na Folha de S.Paulo: “Os Estados Unidos do pós-guerra eram, sobretudo, uma sociedade de classe média. O grande boom dos salários que começou com a Segunda Guerra levou dezenas de milhões de americanos – entre os quais meus pais – de bairros miseráveis nas regiões urbanas ou da pobreza rural à casa própria e a uma vida de conforto sem precedentes.”
Krugman relata a “sensação admirável” de viver em uma comunidade na qual a maioria das pessoas leva “uma vida material reconhecidamente decente e similar”. Conclui o jornalista: “Essa middle-class society que encarnava o sonho americano não foi obra de uma ‘evolução gradual’, mas, diz Krugman, ‘muito pelo contrário, foi criada, no curto espaço de alguns anos, pelas políticas do governo Roosevelt’.”
Outra menção aparece no fecho de um balanço da Presidência de Lula feito por dois economistas ligados ao governo, Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza. “A superação de dogmas recentes encontra paralelos em momentos nos quais os Estados das economias capitalistas centrais optaram pela ruptura de seus modelos de atuação”, dizem os autores. “Assim foi, por exemplo, com a G.I. Bill (1944) e com o Employment Act (1946).”[1] A segunda medida, em particular, teve um caráter duradouro. “Desde a Segunda Guerra Mundial, o governo federal havia reconhecido suas responsabilidades pela manutenção da economia em pleno emprego”, lembrou Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia.
Um terceiro exemplo vem da ciência política. Wendy Hunter e Thimothy J. Power comparam o Programa Bolsa Família ao Social Security Act, com o qual, em 1935, Roosevelt instituiu o sistema de previdência pública. Hunter e Power vaticinavam, já em 2007, que o Bolsa Família poderia se tornar, como a previdência pública nos Estados Unidos, um “terceiro trilho” na política brasileira: aquilo que não se pode mexer, sob o risco de morte política.
A julgar pelas propostas dos candidatos à Presidência durante a campanha deste ano, Hunter e Power estavam certos: a oposição disse que queria dobrar o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família, e ninguém falou em diminuir o benefício. Apesar das diferenças que os separam, os postulantes estavam envolvidos no clima rooseveltiano de criar no Brasil, em um “curto espaço de alguns anos” uma sociedade com base na classe média.
Tanto que Dilma Rousseff, do PT, propôs “erradicar a miséria” no espaço de um mandato. José Serra, do PSDB, falou em “partir para a erradicação da pobreza”. Marina Silva, do PV, elogiou o fato de 25 milhões terem deixado a linha da pobreza no período recente e disse que não mexeria na política que permitiu isso. Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL, fez do combate à desigualdade o centro do seu discurso.
Mas em que medida há condições materiais para aplicar aqui oNew Deal de Roosevelt? Até que ponto é verdadeiro o consenso em torno dessas metas? E qual resistência se deve esperar às políticas necessárias para transformar o projeto em realidade? Comecemos pelas condições materiais.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2003 e 2008 a pobreza extrema (rendimento médio domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo) foi reduzida de 15% para 10% da população. No mesmo período, a pobreza absoluta (rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário mínimo) caiu em proporção semelhante, reduzindo-se o total de brasileiros nessa faixa de renda para 23%. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, os brasileiros abaixo da linha de pobreza eram metade da população. No governo Lula, caíram para cerca de um terço da população.
Em linhas gerais, os dados apontam que uma parte do sonho rooseveltiano – o de construir uma sociedade em que (quase) todos estão fora da pobreza – está ao alcance dos dois próximos mandatos presidenciais. Não se trata apenas de uma expansão da classe média, pois o proletariado também aumenta. À medida que o subproletariado é incorporado ao mercado de trabalho formal e ao padrão de consumo “normal”, a base da pirâmide social passa a ser formada pelo proletariado, uma vez que não há outra classe abaixo dele. É possível que um proletariado mais antigo – uma espécie de aristocracia operária – se mantenha como uma fração de classe à parte, porém as diferenças relativas teriam diminuído.
Embora a redução da pobreza tenha significado também uma diminuição da desigualdade, esta parece responder com mais vagar às iniciativas governamentais. Num comunicado do início do ano, o Ipea observou que “o movimento recente de redução da pobreza tem sido mais forte que o da desigualdade”. Segundo Ilan Goldfajn, economista-chefe do Itaú Unibanco, “somos o décimo pior país em distribuição de renda” no mundo. Para o especialista em finanças públicas Amir Khair, hoje “apenas 1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda próxima da dos 50% mais pobres”. Por isso, segundo o economista Marcelo Neri, quando olhado desde o ângulo da desigualdade, a fotografia da sociedade brasileira é “ainda grotesca”.
Alguns argumentam até que, por trás da vagarosa queda do índice de Gini, que mede o desnível entre os que recebem salário, haveria na realidade uma piora na repartição da riqueza entre o capital e o trabalho. Nessa lógica, uma maior equidade entre os que vivem do próprio trabalho teria sido compensada por um aumento da parcela apropriada pelos capitalistas sob a forma de lucros e dividendos.
Sinais disso seriam os largos gastos do Tesouro com o pagamento de juros e os polpudos lucros das grandes empresas ao longo do governo Lula. No entanto, de acordo com o Ipea, a participação do trabalho na renda nacional, que estava estagnada há quinze anos, também começou a aumentar. Em 2004, ela era de 31% do Produto Interno Bruto, e passou para 33% em 2007. Mais ainda: de acordo com as estimativas do economista João Sicsú, no ano passado ela deve ter voltado ao patamar de onde começou a cair em 1995: 35%.
Mas, se a renda dos assalariados – e particularmente dos mais pobres – cresce num ritmo suficientemente acelerado para eliminar a pobreza em poucos anos, como se explica que a desigualdade caia devagar? Acontece que os ricos estão ficando mais ricos. A economista Leda Paulani tem assinalado que 80% da dívida pública estão em mãos de algo como 20 mil pessoas, as quais, sozinhas, recebem um valor dez vezes maior do que os 11 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família. O sociólogo Francisco de Oliveira, por sua vez, chamou a atenção para os sinais de riqueza ostensiva revelados pela inclusão de mais de uma dezena de brasileiros na lista da revista Forbes dos mais ricos do mundo. De fato, basta abrir um jornal ou revista para deparar com notícias relativas à expansão do comércio de alto luxo em São Paulo.
Como há indícios de que possa ter ocorrido certo achatamento nos ganhos da classe média, a persistência da desigualdade deve, realmente, decorrer do que é apropriado pelos muito ricos.
A queda lenta da desigualdade, em sociedades que partem de um patamar elevado e nas quais os mais ricos continuam a acumular riqueza, aponta para a dificuldade de atingir, no curto prazo, uma situação em que os seus membros tenham uma vida material “reconhecidamente similar”.
Mesmo mantido o ritmo atual de melhora das condições de vida dos menos aquinhoados, o Ipea calcula que em 2016 chegaremos a um indicador de desigualdade um pouco inferior àquele que dispúnhamos em 1960, quando foi aplicada a primeira pesquisa sobre diferenças de renda.
Ou seja, se for bem-sucedido o esforço no sentido de elevar o padrão de existência dos mais pobres nos próximos anos, o que está no horizonte é voltar ao ponto interrompido pelo golpe de 1964. Após duas décadas de um regime militar concentrador, e de outras duas décadas de estagnação, as políticas de redução da pobreza nos levarão de volta ao limiar de onde começamos a regredir. Não é coincidência que o salário mínimo tenha voltado, em 2009, ao patamar de meados dos anos 60.
A agenda de diminuição da pobreza e da desigualdade do governo Lula avançou por meio de uma estranha combinação de orientações antitéticas: de um lado, manteve linhas de conduta do receituário neoliberal e, de outro, adotou mecanismos de uma plataforma desenvolvimentista. Essa combinação sui generis de mudança e ordem explicaria por que o apoio político ao presidente, grosso modo, migrou da classe média para o subproletariado.
A combinação se deu ao longo de três fases. Na primeira, entre 2003 e 2005, predominou a ortodoxia: contenção de despesas públicas, elevação dos juros e reforma previdenciária que apontava para a redução de benefícios no serviço público. Era o pacote clássico de “maldades” neoliberais, voltadas para estabilizar a economia por meio da contração dos investimentos públicos e das atividades econômicas em geral.
Para além de mera opção técnica, o que estava em jogo era uma escolha política: evitar a radicalização por meio do atendimento das condições impostas pela classe dominante. Como afirmou o ex-senador Saturnino Braga: “Na transição, quando findavam os últimos meses de Fernando Henrique Cardoso, a inflação e a taxa cambial dispararam. Aquilo foi um aviso do capital.”
Ocorre que, quase ao mesmo tempo, houve um conjunto de iniciativas na direção contrária às soluções neoliberais. O lançamento do Bolsa Família, em outubro de 2003, foi seguido pela expansão do crédito popular, com o convênio assinado entre sindicatos e bancos no final do mesmo ano, e pela valorização do salário mínimo, iniciada em 2004. As três medidas deram a partida para a recuperação da economia por meio do fortalecimento de um mercado interno de consumo de massa.
A segunda etapa da política econômica começa com a passagem de Guido Mantega para o Ministério da Fazenda, em 2006, e se estende até a irrupção da crise financeira internacional, em 2008. A partir da chegada de Mantega ao centro das decisões econômicas, o lado popular do projeto de Lula, que ficara em desvantagem na primeira fase, ganha mais peso. Isso se reflete em uma elevação substancial do salário mínimo em 2006, com um aumento real de nada menos que 14%. A progressão do salário mínimo continuou ao longo do segundo mandato, com uma valorização estimada em 31%.
Entres os estudiosos do tema, observa-se uma convergência em torno da percepção de que no valor do salário mínimo encontra-se a chave para reduzir a iniquidade no Brasil. “O salário mínimo estabelece o piso da remuneração do mercado formal de trabalho, influencia as remunerações do mercado informal e decide o benefício mínimo pago pela Previdência Social”, assinala Sicsú. Quase 68% dos trabalhadores ganham apenas até dois salários mínimos, e uma parcela expressiva dos aposentados recebe um. Por isso, o sociólogo Simon Schwartzman afirma que “o salário mínimo foi o grande fator para a redução da pobreza”.
Segundo o economista Amir Khair, 75% do consumo que estimula o crescimento vem das famílias. Assim, o aumento do poder aquisitivo das famílias de baixa renda – que se beneficiaram também da diminuição do preço de artigos populares, por meio de desonerações fiscais – impulsionou a atividade econômica como um todo. As empresas elevaram o investimento para aproveitar as oportunidades abertas pela expansão do mercado, com isso gerando emprego, o qual por sua vez realimentou o consumo, em um círculo virtuoso há muito esperado no Brasil.
Um segundo elemento caracterizou o triênio 2006–2008: o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, em janeiro de 2007. Partindo de um patamar muito baixo, a União quase duplicou o montante orçamentário destinado ao investimento. Houve, igualmente, uma multiplicação do investimento realizado pelas estatais – sendo que a Petrobras, sozinha, tem mais capacidade de investimento do que a União.
Para além daquilo que a União e as estatais podem investir diretamente, cumpre atentar para o efeito indutor que exercem sobre o investimento privado, sobretudo na área relativa aos grandes projetos de infraestrutura. Até o advento da crise financeira internacional, a meta do PAC – sustentar um crescimento de 5% – foi atingida. Não fosse pela paralisia das atividades econômicas decorrentes da crise, é possível que chegasse a 7%.
A terceira fase da política econômica do governo Lula ainda está em curso, o que dificulta a avaliação. Ela corresponde ao período que se abre com a crise internacional e deverá ir até o final do mandato. Cabe somente indicar o aprofundamento da trajetória delineada na segunda etapa. Os bancos estatais foram fortalecidos para garantir o crédito, operando até certo ponto na contramão do Banco Central, que demorou em reduzir a taxa de juros. O consumo popular foi ampliado mediante aumentos do salário mínimo e das transferências de renda, mesmo depois de iniciada a crise. O setor produtivo foi estimulado por meio de desonerações fiscais e ações indutoras, como o programa de habitação Minha Casa, Minha Vida.
Em linhas gerais, a desorganização das finanças mundiais deixou ao setor público o encargo de impedir que se abrisse um ciclo de depressão econômica. Apesar de não ter evitado a estagnação em 2009, a rápida (e forte) recuperação em curso mostra que o Brasil foi bem-sucedido no uso dos instrumentos disponíveis.
A condução das medidas anticíclicas durante a crise, na qual o presidente se destacou pela ousadia de conclamar a população a manter a confiança e comprar, arriscando-se a quebrar junto com os endividados, caso algo desse errado, consolidou uma popularidade inédita desde a redemocratização. Subitamente, o crescimento que se julgava extinto, voltou. Pode-se dizer que a crise fortaleceu o campo popular na terceira fase do governo Lula, o que tornou tal fato decisivo para a alavancagem da candidatura de Dilma Rousseff.
No programa apresentado por Dilma Rousseff na campanha eleitoral, o objetivo central é eliminar a miséria extrema na década que começa em 2011. Prometeu fazer isso com a valorização do salário mínimo, a ampliação gradual das transferências de renda e o reforço do papel do Estado na economia. Também disse que manterá o Banco Central com autonomia para conduzir a política monetária, deixar o câmbio flutuante e exercer alguma rigidez fiscal.
Não se deve depreender da moderação desse arranjo que ele esteja isento de embates importantes, cujos desfechos definirão os contornos mais precisos do caminho a ser trilhado nos próximos anos. A menos que sobrevenha nova ascensão do movimento social, em refluxo desde a década de 90, uma parte dos conflitos ocorrerá num plano relativamenteoculto – eles se darão por meio de negociações intraestatais, sem que o público amplo possa percebê-los de imediato.
Ao analisar com minúcia os processos de decisão, cujos reflexos na superfície são por vezes tênues, aparecem os nós e as tensões definidores. Um bom exemplo passado está na seguinte descrição de Nelson Barbosa:
Devido à crise internacional e seus reflexos no Brasil, a receita do governo caiu, e se o governo cortasse a despesa na mesma proporção em que a receita caiu, ele empurraria a economia para baixo, como se agia normalmente no passado. Diferentemente de outras crises, agora nós temos escolha, podemos reduzir o superávit primário para preservar o crescimento e o bem-estar da população. A decisão de reduzir a meta de superávit primário em 2009 passou tranquila na imprensa; para quem participa da política econômica do governo Lula isso é um marco.
Trata-se de uma delicada rede de pressões e contrapressões no interior do Estado.
A redução da pobreza e da desigualdade depende da manutenção do crescimento em um patamar ao redor de 5%, como previa o PAC. Para atingir esse patamar, que não foi alcançado sequer no segundo mandato de Lula, haverá uma série de escolhas a serem feitas. Carlos Lessa, o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, argumenta que há duas visões conflitantes a respeito de como produzir essa expansão da economia. Em uma delas, seria necessário elevar substancialmente a taxa de investimento público. Deduz-se que os recursos devam sair, nesse caso, da diminuição do serviço da dívida, à qual o Banco Central resiste.
Numa outra visão, isso não precisa acontecer, implicando, no entanto, em um processo de desindustrialização do país. Essa segunda proposta pressuporia que a exportação de soja, carne e minério de ferro, por exemplo, daria conta do recado, sem depender de o Brasil produzir mercadorias de alto valor agregado. Por trás desses pontos de vista conflitantes se encontram interesses sociais e econômicos diferentes, cujo confronto definirá a dinâmica futura.
O peso das exportações no modelo “inventado” pelo governo Lula é reconhecido pelos seus defensores. O senador Aloizio Mercadante mostra que triplicou o valor exportado entre 2002 e 2008: de 60 bilhões de dólares para quase 200 bilhões de dólares. Porém, destaca que o destino das mercadorias mudou. Em 2002, os Estados Unidos recebiam 24,3% das exportações brasileiras, patamar reduzido a 14,6% em 2008. Sem estardalhaço, o governo Lula esvaziou a proposta da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, que atrelaria o Brasil aos Estados Unidos, e investiu na formação de um bloco sul-americano forte, ao mesmo tempo em que fortalecia os vínculos com potências emergentes como a China.
O sucesso da estratégia externa desempenhou, assim, um papel destacado na economia política do realinhamento. O ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, no entanto, tem chamado a atenção para o fato de o Brasil ser vítima de “uma leve, mas real doença holandesa”, pela qual os mecanismos de mercado tendem a levar um país com extensos recursos naturais a ter um câmbio cronicamente sobreapreciado[2].
A consequência não é difícil de imaginar: torna-se mais barato importar artefatos industrializados do que fabricá-los internamente. Para combater a doença holandesa, afirma Bresser-Pereira, é indispensável administrar o câmbio, em vez de deixá-lo oscilar ao sabor do mercado. Em cálculo recente, ele indica que o real deveria flutuar ao redor de 2,40 por dólar, o que implicaria uma desvalorização em torno de 25%.
Uma coalizão de interesses liderada pelo capital financeiro tem obstado a desvalorização. Como as importações baratas ajudam a controlar os preços internos, garantindo o poder de compra dos consumidores, em especial os de baixíssima renda, há uma pressão no sentido de mantê-las nesse patamar. Elas permitem, na outra ponta, à classe média tradicional, cuja poupança também é beneficiada por juros elevados, o acesso a produtos importados (além de o real em alta facilitar viagens internacionais). Em terceiro lugar, o câmbio valorizado favorece os detentores internacionais de capital, que lucram no Brasil com a aplicação de dinheiro especulativo remunerado a altas taxas de juros em moeda forte.
Na posição oposta se encontram os empresários industriais, o proletariado fabril e os exportadores. Os industriais observam com preocupação crescente a queda das atividades fabris desde o começo dos anos 90. Também não é por acaso que a Central Única dos Trabalhadores defende “aplicar política cambial voltada para a defesa da economia nacional”. Os exportadores querem ganhar mais com o que vendem. Esse tripé deu ao governo sustentação para impor um imposto de 2% sobre o capital especulativo em 2009, na vigência da crise internacional. A medida, embora tímida, impediu que a valorização da moeda aumentasse ainda mais, além de sinalizar a existência de setores sociais ponderáveis preocupados com a doença holandesa.
Em que pese ser uma das maiores taxas de juros do mundo, e parecer distante o momento em que a coalizão “produtivista” consiga forçar a sua diminuição, o balanço do último período mostra algum abalo na liberdade do capital financeiro. A ampliação do crédito no segundo mandato (quando passou de 25% para 40% do PIB) foi obtida apesar da oposição dos bancos privados. Ela expressa o aumento da capacidade do Estado – apoiado pelos três setores mencionados e pelo fortalecimento dos bancos públicos durante a crise – em obrigar o sistema financeiro a emprestar ao público, em lugar de apenas comprar títulos do governo. Nesse sentido, revelou-se crucial o reforço do BNDES no papel de financiador, a juros mais baixos, das empresas industriais.
Sabe-se que os juros altos inibem os investimentos produtivos, pois o capital é remunerado sem precisar “fazer nada”. Eles também transferem recursos públicos – que poderiam ser usados para aumentar a criação de infraestrutura – para a mão dos rentistas, que os esterilizam ou usam em um consumo de luxo, com aumento da desigualdade. Por isso, os empresários da área produtiva (para quem a taxa de juros é central) e os trabalhadores em geral (para os quais o aumento do emprego é decisivo) estão momentaneamente juntos na batalha contra a “usura”.
O PAC funciona como uma espécie de carta-programa dessa coalizão antirrentista. Ele avançou devagar, porém continuamente, no segundo mandato de Lula, tendo aproveitado a crise financeira internacional para dar alguns passos adiante. A “mãe do PAC” prometeu manter a trilha. Mas a defesa dos juros altos será proporcional ao enorme poder acumulado pelo setor financeiro sob o signo da globalização.
As bandeiras históricas da classe operária, como a redução da jornada de trabalho – agora para quarenta horas – e a proposta de uma reforma tributária progressiva, materializada num imposto sobre grandes fortunas, repõem em cena, por outro lado, a plataforma petista original, de fundamento classista. Em função do caráter pluriclassista da candidatura Dilma, os coordenadores da coalizão evitaram esses pontos agudos.
Mas três itens cruciais para os trabalhadores parecem fazer parte da plataforma possível. Primeiro, o prosseguimento da política de valorização do salário mínimo que, nos últimos anos, implicou maior renda para assalariados de baixa remuneração e aposentados que recebem o piso. Em segundo lugar, a manutenção do crédito, que quase dobrou no governo Lula. Em terceiro, a maior capacidade de o Estado induzir o investimento privado, por meio de empréstimos, subsídios e da participação em projetos de infraestrutura.
Tais medidas levam à diminuição do desemprego. O aumento das taxas de emprego anuncia o ressurgimento das condições para uma ascensão da luta dos trabalhadores. Uma taxa de desemprego de 6%, à qual o Brasil pode chegar ao final deste ano, aponta para um quadro semelhante àquele que vigorou antes da grande onda de demissões no segundo mandato de Fernando Henrique – e, portanto, mais próxima das condições vividas na grande década dos movimentos sociais (1978–88), que levaram o próprio Partido dos Trabalhadores a surgir, crescer e se consolidar.
Joseph Stiglitz mostra como, na concepção do setor financeiro, quando a taxa de desemprego fica abaixo de certo patamar, acende-se o alerta inflacionário, que impulsiona uma política monetária contracionista. Deve-se esperar, portanto, tensões nesse campo, em que a força da aliança produtivista será testada em embates com o setor financeiro.
É característico da atual situação um sistema de alianças móveis, em que a mudança das condições materiais pode operar rápidas alterações de posição. A mobilidade gerada com a redução da pobreza é um exemplo disso. Com carteira assinada e acesso ao crédito, brasileiros de baixa renda começaram a comprar geladeiras, aparelhos de televisão, computadores, carros e, depois, até casas financiadas em longo prazo. Os capitalistas desses ramos puderam, por seu turno, aumentar a produção e auferir lucros maiores com ela, solidificando os laços de interesse entre os trabalhadores e o capital produtivo. Só que isso deverá gerar uma pressão no sentido de aumentos salariais e outras reivindicações trabalhistas.
Sob o governo Lula, surgiram 10,5 milhões de vagas com carteira assinada. Trata-se de um novo proletariado, que entra no mercado em condições precárias, mas apto a integrar-se ao mundo sindical, que já percebeu a relevância estratégica desse contingente. “Apesar dos 10 milhões de novos empregos gerados, o mercado de trabalho brasileiro se caracteriza por elevadas taxas de rotatividade, desemprego e de informalidade, precariedade dos postos de trabalho, crescimento indiscriminado da terceirização e fragilidade do sistema de relações de trabalho”, diz a plataforma da cut para as eleições 2010. Não se deve descartar, em consequência, a possibilidade de haver uma unificação dos estratos novos e velhos do proletariado no próximo período, dando face inédita à luta sindical.
Seja qual for o destino dos atritos que virão a marcar o ciclo político, o objetivo de reduzir a pobreza por meio da transferência de renda para os segmentos muito pauperizados deverá ser a marca dos próximos anos. Não teremos, contudo, direitos universais à saúde, à educação e à segurança sem aumentar o investimento público. No Brasil, ainda não há saneamento básico e moradia de qualidade mínima para enormes setores da população. Além dos programas de transferência de renda, os relativos à saúde, educação e segurança pública são fundamentais para a redução da pobreza e da desigualdade. O que implica em vultosos desembolsos, bem como um Estado equipado para exercer funções de envergadura. Daí, igualmente, a necessidade de continuar a valorização do funcionalismo público, com a reestruturação de carreiras de Estado e o aumento da folha de pagamento dos servidores.
Embora o Bolsa Família caminhe para se tornar um direito reconhecido na Constituição, sob a forma de uma Renda Básica de Cidadania, a ser proposta no bojo da Consolidação das Leis Sociais que o próximo governo deverá enviar ao Congresso Nacional, não há consenso ao redor do tamanho e abrangência que o Estado deve ter no Brasil. Assim como não existe acordo a respeito da reforma tributária que deveria garantir os recursos para ele. Enquanto as organizações de trabalhadores sugerem tornar o imposto mais progressivo, as entidades empresariais, unificadas quanto a essa questão, buscam diminuir a carga tributária em absoluto. Nesse item, capitalistas e assalariados se encontram em campos opostos. A pressão da burguesia pela contenção dos gastos do Estado deverá crescer.
Assim, a abrangência dos serviços públicos de saúde e educação é um tema que separa a coalizão majoritária em diferentes segmentos. Para os trabalhadores, deve-se atender ao mandamento constitucional de universalizar a saúde e educação públicas. Para os empresários, a privatização em curso, representada pelos planos de saúde e escolas privadas, merece ser preservada e ampliada. Contrapõem-se aqui visões distintas a respeito do papel do lucro no atendimento de necessidades fundamentais como medicina e educação. Divergência que se estende para o campo da previdência. Isso explica por que medidas como a revogação da cpmf, em dezembro de 2007, contaram com o ativo apoio do setor empresarial e oposição dos representantes dos trabalhadores.
Esses conflitos espelham divisões sociais mais amplas. O sociólogo Jessé Souza tem chamado a atenção para o caráter profundamente conservador da sociedade brasileira, que encara como “natural” a extrema desigualdade. Talvez até, poderíamos acrescentar, se resista à tentativa de alterar um quadro longamente estabelecido.
A expressão de tal resistência pode surgir de maneira disfarçada por certos comportamentos do cotidiano. Anos atrás, o compositor Chico Buarque, com a sua fina sensibilidade para a realidade nacional dizia: “Assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda malvestido.”
São fundas as fraturas que separam as vastas legiões de brasileiros pobres da classe média tradicional, cuja superioridade relativa diminui à medida que o movimento de ascensão social se intensifica. A velocidade do percurso em direção a uma possível sociedade “decente e similar” dependerá até certo ponto da correlação de forças entre esse proletariado emergente e a classe média tradicional.
Essa classe média dá certa base de massa à frente rentista, que tem como programa a autonomia do Banco Central, a liberdade de movimento dos capitais, o corte dos gastos públicos e, em uma conjuntura favorável, uma reforma trabalhista que retire direitos dos trabalhadores. Ao velho e novo proletariado interessa a plataforma oposta, com a adequação da política monetária às metas de crescimento, a desvalorização do real para evitar a doença holandesa, o aumento do gasto público na direção de um Estado de bem-estar, com a transformação dos programas sociais em direitos que se somem aos da legislação trabalhista.
No plano partidário, PMDB e PT parecem destinados a representar posições divergentes na próxima etapa. Apesar das fragilidades dos partidos brasileiros, em que o excesso de pragmatismo dificulta levar ao terreno da política os interesses de classe, o sistema permite alguma refração das clivagens sociais. Desse modo, o tamanho das bancadas legislativas do PMDB e do PT – tanto na Câmara quanto no Senado – deverá determinar o andamento de propostas decisivas, como a Consolidação das Leis Sociais, no Congresso.
Os ventos internacionais, cuja temperatura e intensidade costumam influenciar na balança interna, mostram-se confusos, o que não é necessariamente ruim para o sonho rooseveltiano brasileiro. A grave crise financeira de 2008 produziu efeitos contraditórios. Enquanto nos Estados Unidos resultou em uma guinada progressista, com a vitória de Barack Obama interrompendo a escalada conservadora dos dois mandatos de Bush ii, na Europa provocou uma reação à direita, com intensificação da xenofobia e adoção de políticas econômicas contracionistas.
Nos países emergentes, a crise clarificou a percepção de que é preciso procurar uma via autônoma de desenvolvimento que não dependa da problemática recuperação dos centros capitalistas tradicionais. O Brasil em particular, embalado pelo desejo de transformar-se em uma sociedade de classe média, tem, no destaque internacional que alcançou, um impulso nessa direção.
O caminho será cheio de choques, cujo resultado exato não se pode prever. Contudo, se a minha hipótese estiver correta, durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil. Em que grau e velocidade, a luta de classes dirá.
10 de janeiro de 2016
andré singer, jornalista, cientista político, professor
[1] A g.i. Bill, assinada por Roosevelt em junho de 1944, deu o direito a veteranos de cursar a universidade no retorno da Segunda Guerra Mundial. Promulgado pelo presidente Harry Truman em fevereiro de 1946, o Employment Actatribuía ao governo federal a incumbência de promover oportunidades de emprego.
[2] O modelo da “doença holandesa” foi desenvolvido a partir de uma análise dos efeitos dos ganhos com a exportação de gás naquele país, nos anos 70
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