O ex-presidente Lula pode até dizer, como já disse, que seu PT e o Partido Comunista da China são os dois maiores partidos de esquerda hoje existentes no planeta. Em tom parecido, o atual presidente do PT também pôde encerrar o discurso no recente congresso partidário, em Salvador, citando Guevara, ícone de um caminho armado para o socialismo que logo se perdeu em algum momento do século passado, depois de ser a causa de sucessivas derrotas em países minimamente articulados, refratários à tática dos focos insurrecionais – entre eles, o Brasil da ditadura militar.
Nenhuma dessas alusões, ou qualquer outra desse tipo, tem o poder de anular a irrecuperável distância entre a experiência (encerrada) do comunismo histórico, com seus partidos “totais”, fundidos à máquina do Estado e propugnadores de uma ruptura integral com o capital, e a modesta experiência reformista de um partido como o PT e seus governos nos últimos 12 anos. Não há filiação possível, a não ser aquela produzida pela má retórica que diferentes esquerdas, a de antes e a de agora, muitas vezes insistiram, e insistem, em produzir, danificando paradoxalmente sua efetiva capacidade de incidir produtivamente no mundo real.
Em política conta muito a linguagem que os partidos utilizam, os termos e os modos de pensar que introduzem no uso comum. Para ficar estritamente nesse plano e estabelecer algum paralelo, partimos do ritual da “autocrítica” bolchevique, tantas vezes exercido hipocritamente na falta de mecanismos formalmente democráticos, como alguns “hereges” da própria esquerda a seu tempo apontaram.
Desse mal importantes dirigentes petistas também parecem não ter escapado, e os sinais estão em torno de nós. Em Salvador, a intervenção congressual de Lula não se preocupou em explicar, com um mínimo de argumentação racional, o desarranjo econômico que obrigou a uma guinada radical de orientação no segundo governo Dilma. Para o dirigente máximo do petismo, a única verificação possível de erros e acertos jamais virá do debate com os demais atores da vida institucional, mas de um movimento interno próprio do PT e de seus próprios seguidores supostamente cativos:
“Quem pode nos ensinar, quem sempre nos ensinou o caminho a seguir, são os trabalhadores e o povo mais pobre deste país”.
Na visão do ex-presidente, a imprensa oligopolizada, que demite jornalistas, não pode perturbar o círculo virtuoso entre partido e povo mais pobre. Muito menos podem fazê-lo os personagens da oposição, pintados, todos, em cores tenebrosas. Se pudessem, tais personagens reduziriam a maioridade penal, “mandando para a cadeia quem deveria estar na escola” – como se os governos petistas tivessem tido uma política de segurança corajosa, que pelo menos atenuasse a devastação causada pelos crimes contra a vida. Não só: os opositores do PT mandariam “pobres e negros” de volta ao lugar de origem, sem oportunidade de ascensão; sancionariam “o preconceito contra a população LGBT”; e, evidentemente, fariam o Brasil “voltar à idade média social” em que vegetava antes da redenção acontecida a partir de 2003. Sem falar que iriam querer até destruir a Petrobrás...
Esse mundo em branco e preto, avesso a distinções e a nuances, era também o mundo visto da perspectiva do stalinismo. A Revolução Russa, resposta ao desastre da Grande Guerra num país atrasado, muito cedo perdeu seu impulso transformador e sua energia criativa. Com Stalin viria a produzir uma singular espécie de fanatismo burocrático, que – salvo em ocasiões críticas, como por ocasião da frente antifascista na 2.ª Guerra – enxergava o mundo povoado de traidores e inimigos: os social-democratas foram por muito tempo “social-fascistas”, mais perigosos do que os fascistas. Na URSS, enquanto isso, nascia o “homem novo”, na marcha batida da coletivização forçada e da ditadura de partido único.
Certamente, aquele era um mundo radicalmente diverso do Brasil de agora. E, no entanto, apesar da distância incomensurável, há algo comum entre categorias do velho comunismo e setores da nossa esquerda. O homem novo do realismo socialista, por exemplo, empenhado como estava na construção do socialismo (de Estado), não podia ter defeitos graves. Decretava-se, na edulcorada versão oficial, que às vezes se irritaria com atrasos na realização do plano ou esqueceria uma tarefa. Pois existe algum traço desse personagem fantasioso na alma do presidente do PT quando declara – ainda por cima com terminologia militar – que o partido se vê submetido a campanha de “cerco e aniquilamento” não “por nossos erros”, mas por “nossas virtudes”. Para Rui Falcão, na pior hipótese o petista médio poderá enraivecer-se ou esquecer alguma missão, mas sempre será mais virtuoso do que qualquer adversário e, por isso, perseguido.
O velho comunismo, com seus feitos e malfeitos, foi também uma tentativa de conduzir a inevitável e potente irrupção das massas no século 20. Era portador de um desafio global, que, no entanto, já na virada dos anos 1930 se mostrava com capacidade de expansão política atrofiada, entre outras dificuldades, por operar com categorias acanhadas e jamais superar a mentalidade de “cidadela sitiada”.
O PT, nem é preciso dizer, atua em registro infinitamente mais modesto, o que, aliás, está longe de ser desvantagem. Seu grupo dirigente e os representantes mais expressivos de sua “sociedade civil” talvez ainda não tenham percebido a necessidade de assumir plenamente as responsabilidades decorrentes de viver e atuar em sociedade afortunadamente democrática e pluralista. O partido parece querer operar sob o paradigma da revolução, ainda que esta seja a rota segura para o gueto e a subalternidade. A democracia brasileira nada ganha com isso.
21 de junho de 2015
Luiz Sérgio Henriques
Nenhuma dessas alusões, ou qualquer outra desse tipo, tem o poder de anular a irrecuperável distância entre a experiência (encerrada) do comunismo histórico, com seus partidos “totais”, fundidos à máquina do Estado e propugnadores de uma ruptura integral com o capital, e a modesta experiência reformista de um partido como o PT e seus governos nos últimos 12 anos. Não há filiação possível, a não ser aquela produzida pela má retórica que diferentes esquerdas, a de antes e a de agora, muitas vezes insistiram, e insistem, em produzir, danificando paradoxalmente sua efetiva capacidade de incidir produtivamente no mundo real.
Em política conta muito a linguagem que os partidos utilizam, os termos e os modos de pensar que introduzem no uso comum. Para ficar estritamente nesse plano e estabelecer algum paralelo, partimos do ritual da “autocrítica” bolchevique, tantas vezes exercido hipocritamente na falta de mecanismos formalmente democráticos, como alguns “hereges” da própria esquerda a seu tempo apontaram.
Desse mal importantes dirigentes petistas também parecem não ter escapado, e os sinais estão em torno de nós. Em Salvador, a intervenção congressual de Lula não se preocupou em explicar, com um mínimo de argumentação racional, o desarranjo econômico que obrigou a uma guinada radical de orientação no segundo governo Dilma. Para o dirigente máximo do petismo, a única verificação possível de erros e acertos jamais virá do debate com os demais atores da vida institucional, mas de um movimento interno próprio do PT e de seus próprios seguidores supostamente cativos:
“Quem pode nos ensinar, quem sempre nos ensinou o caminho a seguir, são os trabalhadores e o povo mais pobre deste país”.
Na visão do ex-presidente, a imprensa oligopolizada, que demite jornalistas, não pode perturbar o círculo virtuoso entre partido e povo mais pobre. Muito menos podem fazê-lo os personagens da oposição, pintados, todos, em cores tenebrosas. Se pudessem, tais personagens reduziriam a maioridade penal, “mandando para a cadeia quem deveria estar na escola” – como se os governos petistas tivessem tido uma política de segurança corajosa, que pelo menos atenuasse a devastação causada pelos crimes contra a vida. Não só: os opositores do PT mandariam “pobres e negros” de volta ao lugar de origem, sem oportunidade de ascensão; sancionariam “o preconceito contra a população LGBT”; e, evidentemente, fariam o Brasil “voltar à idade média social” em que vegetava antes da redenção acontecida a partir de 2003. Sem falar que iriam querer até destruir a Petrobrás...
Esse mundo em branco e preto, avesso a distinções e a nuances, era também o mundo visto da perspectiva do stalinismo. A Revolução Russa, resposta ao desastre da Grande Guerra num país atrasado, muito cedo perdeu seu impulso transformador e sua energia criativa. Com Stalin viria a produzir uma singular espécie de fanatismo burocrático, que – salvo em ocasiões críticas, como por ocasião da frente antifascista na 2.ª Guerra – enxergava o mundo povoado de traidores e inimigos: os social-democratas foram por muito tempo “social-fascistas”, mais perigosos do que os fascistas. Na URSS, enquanto isso, nascia o “homem novo”, na marcha batida da coletivização forçada e da ditadura de partido único.
Certamente, aquele era um mundo radicalmente diverso do Brasil de agora. E, no entanto, apesar da distância incomensurável, há algo comum entre categorias do velho comunismo e setores da nossa esquerda. O homem novo do realismo socialista, por exemplo, empenhado como estava na construção do socialismo (de Estado), não podia ter defeitos graves. Decretava-se, na edulcorada versão oficial, que às vezes se irritaria com atrasos na realização do plano ou esqueceria uma tarefa. Pois existe algum traço desse personagem fantasioso na alma do presidente do PT quando declara – ainda por cima com terminologia militar – que o partido se vê submetido a campanha de “cerco e aniquilamento” não “por nossos erros”, mas por “nossas virtudes”. Para Rui Falcão, na pior hipótese o petista médio poderá enraivecer-se ou esquecer alguma missão, mas sempre será mais virtuoso do que qualquer adversário e, por isso, perseguido.
O velho comunismo, com seus feitos e malfeitos, foi também uma tentativa de conduzir a inevitável e potente irrupção das massas no século 20. Era portador de um desafio global, que, no entanto, já na virada dos anos 1930 se mostrava com capacidade de expansão política atrofiada, entre outras dificuldades, por operar com categorias acanhadas e jamais superar a mentalidade de “cidadela sitiada”.
O PT, nem é preciso dizer, atua em registro infinitamente mais modesto, o que, aliás, está longe de ser desvantagem. Seu grupo dirigente e os representantes mais expressivos de sua “sociedade civil” talvez ainda não tenham percebido a necessidade de assumir plenamente as responsabilidades decorrentes de viver e atuar em sociedade afortunadamente democrática e pluralista. O partido parece querer operar sob o paradigma da revolução, ainda que esta seja a rota segura para o gueto e a subalternidade. A democracia brasileira nada ganha com isso.
21 de junho de 2015
Luiz Sérgio Henriques
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