O autorretrato foi para os mestres da pintura que viveram antes do advento da fotografia a maneira de revelar não só o mundo que viam e como o viam em cores e formas, mas o lugar íntimo de onde viam, a densidade de seu olhar.
Obras-primas nasceram do pincel de um Rembrandt ou de um Van Gogh, que legaram ao futuro seus rostos em várias idades, impregnados de suas angústias.
O autorretrato foi sempre um momento maior na carreira de um artista. Buscavam a imortalidade na grande arte e a grande arte no autorretrato. Tinham a dimensão da História.
Hoje, o autorretrato é o exercício preferido de qualquer anônimo que estenda o braço com o celular na mão e lá vem mais um selfie. Um exercício lúdico e narcísico, cujo destino é ser deletado ou, com sorte, fazer um imprevisível caminho na Rede. Uma ou algumas caras, talvez caretas, sem contexto, sem profundidade, imagens deixadas ao efeito de luzes e sombras eventuais.
O selfie não quer fixar nada, senão uma informação fugaz sobre o momento vivido e compartilhá-la com o maior número de pessoas. Não sei se é um brinquedo inofensivo ou metáfora do tempo presente, em que a instantaneidade, a quantidade e o descompromisso com a qualidade são a regra.
Vivemos um tempo sem memória, que tudo registra para logo tudo esquecer. Um eterno presente que capta a instantaneidade do fato e se alimenta da velocidade da informação. Sem passado, que não se cristaliza, diluído em uma renovação permanente de notícias, nem futuro que, sem tempo para amadurecer, é uma ausência.O momento seguinte não tem tempo nem razão para amadurecer.
Marc Zuckerberg, perguntado sobre o objetivo do Facebook, respondeu: “Conectar-se”. Para quê? “Para conectar-se”.
O cotidiano vivido cada vez por mais pessoas e por mais tempo entre as telas do celular e do computador vai moldando uma percepção do mundo que é tão alheia ao mundo pré-virtual quanto um autorretrato de artista a um selfie. O snapchat, que envia uma foto que dura segundos e se auto deleta, é a última flor dessa língua cada vez menos compreensível para a geração do portarretrato.
A intensa vida virtual atualiza palavras como presencial, um adjetivo que hoje qualifica a natureza excepcional de um encontro entre gente de carne e osso. Manifestações de rua são presenciais. As outras são simplesmente o dia a dia de quem vive no mundo virtual, onde a opinião é produto do dilúvio de informações, muitas de origem aleatória ou autoria incerta. A quantidade dessas informações, em que a qualidade não é um critério, quando mal digerida é tóxica. Essa é a face oculta de uma admirável democratização do direito de expressão.
Para o bem ou para o mal, a sociedade está mudando mais pela tecnologia do que pela política, desfigurada em partidos carcomidos pela corrupção. Transformados em ajuntamentos de interesses pessoais, sem valores, sem compromisso com o interesse público e sem visão de futuro, recolhem a aversão como sentimento comum à população. A política desliza, então, para outras formas de expressão e, entre elas, está certamente o fervilhar de debates na comunicação virtual, com os prós e contras desse mundo e de sua incorpórea população.
O Brasil vive um momento de selfies. Um eterno presente em que os fatos e as fotos se sucedem sem contexto e sem enredo. Tudo se esgota no escândalo do dia, no toma lá dá cá, nos implantes de cabelo, na roubalheira da véspera, na amante do doleiro cantarolando Roberto Carlos na CPI, no ex-presidente que se expõe malhando, suando e dizendo banalidades sobre vida saudável.
Autoridades viram piadas corrosivas na rede, onde a derrisão é a regra. O falso revolucionário que antes cerrava o punho, hoje atravessa a tela com os pulsos algemados. Amanhã é o CEO engravatado da grande empresa que explica, com ar compenetrado, como dar propina. Delata-se. Deleta-se.
O Brasil entrou na era do desnudamento. Nas redes, tudo se sabe, se compartilha, se comenta. Pouco se interpreta. Menos ainda se entende. E amanhecemos em um presente sem futuro.
A cultura virtual está se tornando a Cultura. Há uma armadilha, que precisa ser desarmada, em sua relação com o tempo. Ela impõe uma vida acelerada que não pensa o amanhã.
Falar em dimensão histórica soará estranho a ouvidos jovens. Este texto é longo para quem se exprime em twitter e WhatsApp. Mas é preciso que eles saiam do eterno presente, conheçam o passado e assumam o compromisso com o futuro. Façam projetos ditados por valores. O país precisa deles para superar a esclerose. O futuro será o que eles fizerem.
24 de maio de 2015
Rosiska Darcy de Oliveira
O autorretrato foi sempre um momento maior na carreira de um artista. Buscavam a imortalidade na grande arte e a grande arte no autorretrato. Tinham a dimensão da História.
Hoje, o autorretrato é o exercício preferido de qualquer anônimo que estenda o braço com o celular na mão e lá vem mais um selfie. Um exercício lúdico e narcísico, cujo destino é ser deletado ou, com sorte, fazer um imprevisível caminho na Rede. Uma ou algumas caras, talvez caretas, sem contexto, sem profundidade, imagens deixadas ao efeito de luzes e sombras eventuais.
O selfie não quer fixar nada, senão uma informação fugaz sobre o momento vivido e compartilhá-la com o maior número de pessoas. Não sei se é um brinquedo inofensivo ou metáfora do tempo presente, em que a instantaneidade, a quantidade e o descompromisso com a qualidade são a regra.
Vivemos um tempo sem memória, que tudo registra para logo tudo esquecer. Um eterno presente que capta a instantaneidade do fato e se alimenta da velocidade da informação. Sem passado, que não se cristaliza, diluído em uma renovação permanente de notícias, nem futuro que, sem tempo para amadurecer, é uma ausência.O momento seguinte não tem tempo nem razão para amadurecer.
Marc Zuckerberg, perguntado sobre o objetivo do Facebook, respondeu: “Conectar-se”. Para quê? “Para conectar-se”.
O cotidiano vivido cada vez por mais pessoas e por mais tempo entre as telas do celular e do computador vai moldando uma percepção do mundo que é tão alheia ao mundo pré-virtual quanto um autorretrato de artista a um selfie. O snapchat, que envia uma foto que dura segundos e se auto deleta, é a última flor dessa língua cada vez menos compreensível para a geração do portarretrato.
A intensa vida virtual atualiza palavras como presencial, um adjetivo que hoje qualifica a natureza excepcional de um encontro entre gente de carne e osso. Manifestações de rua são presenciais. As outras são simplesmente o dia a dia de quem vive no mundo virtual, onde a opinião é produto do dilúvio de informações, muitas de origem aleatória ou autoria incerta. A quantidade dessas informações, em que a qualidade não é um critério, quando mal digerida é tóxica. Essa é a face oculta de uma admirável democratização do direito de expressão.
Para o bem ou para o mal, a sociedade está mudando mais pela tecnologia do que pela política, desfigurada em partidos carcomidos pela corrupção. Transformados em ajuntamentos de interesses pessoais, sem valores, sem compromisso com o interesse público e sem visão de futuro, recolhem a aversão como sentimento comum à população. A política desliza, então, para outras formas de expressão e, entre elas, está certamente o fervilhar de debates na comunicação virtual, com os prós e contras desse mundo e de sua incorpórea população.
O Brasil vive um momento de selfies. Um eterno presente em que os fatos e as fotos se sucedem sem contexto e sem enredo. Tudo se esgota no escândalo do dia, no toma lá dá cá, nos implantes de cabelo, na roubalheira da véspera, na amante do doleiro cantarolando Roberto Carlos na CPI, no ex-presidente que se expõe malhando, suando e dizendo banalidades sobre vida saudável.
Autoridades viram piadas corrosivas na rede, onde a derrisão é a regra. O falso revolucionário que antes cerrava o punho, hoje atravessa a tela com os pulsos algemados. Amanhã é o CEO engravatado da grande empresa que explica, com ar compenetrado, como dar propina. Delata-se. Deleta-se.
O Brasil entrou na era do desnudamento. Nas redes, tudo se sabe, se compartilha, se comenta. Pouco se interpreta. Menos ainda se entende. E amanhecemos em um presente sem futuro.
A cultura virtual está se tornando a Cultura. Há uma armadilha, que precisa ser desarmada, em sua relação com o tempo. Ela impõe uma vida acelerada que não pensa o amanhã.
Falar em dimensão histórica soará estranho a ouvidos jovens. Este texto é longo para quem se exprime em twitter e WhatsApp. Mas é preciso que eles saiam do eterno presente, conheçam o passado e assumam o compromisso com o futuro. Façam projetos ditados por valores. O país precisa deles para superar a esclerose. O futuro será o que eles fizerem.
24 de maio de 2015
Rosiska Darcy de Oliveira
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