Em sua página no Facebook, a cantora Joyce Moreno relata a perplexidade de voltar, quarta-feira, de um show no Semente da Lapa no qual Chico Buarque deu canja-surpresa e ler nos sites e nas redes a notícia do ataque a facadas a um ciclista na Lagoa Rodrigo de Freitas. Dualidade que Joyce classifica de “esquizofrenia carioca”. Com toda razão, o homicídio covarde, monstruoso, do médico, ex-maratonista, Jaime Gold, de 56 anos, provoca a indignação costumeira diante das ondas de violência que vão e vêm na cidade do “povaréu sonâmbulo/ambulando/que nem muamba/nas ondas do mar”, cujo poente, na “espinha” das montanhas, “quase arromba a retina de quem vê” (Chico Buarque, “Carioca”, canção do CD “As cidades”). A espinha do Rio foi de novo partida, como manda a tradição inaugurada em fins do século XIX. Aqui, se os esforços, voluntários ou intuitivos, de unidade e coesão social frutificaram nas artes e na produção intelectual, o mesmo não se pode dizer da esfera dos poderes público e econômico.
O homicídio sob o poente da Lagoa ganhou ainda mais em repercussão por emblematizar o modus operandi do momento, que vem se alastrando na Zona Sul e em outros pontos da cidade: a arma branca, não usada como simples ameaça, mas com o objetivo de matar ao menor imprevisto, ou mesmo sem reação da vítima, ou pelas costas, como foi o caso. Nos anos 1970 e até inícios da década seguinte eram comuns os meninos maltrapilhos que assaltavam com caco de vidro, restos de ferragens e canivetes, muito mais empregados para intimidar que para golpear (retratados em outra canção de Chico, com Francis Hime, a obra-prima “Pivete”). Dependendo do porte da vítima, era possível derrubar o menino com um peteleco, ou entregar a carteira, ou até pagar uma coxinha de galinha com guaraná na esquina, e a coisa terminar em bate-papo sobre futebol. Isso quando o infrator em questão não se surpreendia ao assaltar o mesmo moleque abastado com quem jogava bola na praia, desistindo do plano, envergonhado.
Os delinquentes que agora estão a esfaquear concidadãos em pontos turísticos da Zona Sul (o assalto no Parque do Flamengo, semanas atrás, foi o estopim da notoriedade da nova onda) e outras regiões da cidade são de um outro tipo, ainda a estudar, mas que não é novo na essência: já se contam décadas desde que, não apenas no Rio, mas nas demais metrópoles brasileiras, fala-se da banalização, da desvalorização da vida, trocada por dez reais, por um celular pré-pago, por uma bicicleta e, amiúde, por nada, só pela gana de matar no esculacho.
A faca, milenar, que remete a tantas simbologias, que emerge dos estágios primevos da civilização, e — mais essencial ainda —, a lâmina, das espadas, dos justiceiros, do suicídio ritual, das guilhotinas das revoluções liberais, das rebeliões em presídios, dos jihads radicais, ou das execuções exemplares a sangue frio, adiciona um lúgubre componente retrô, afinado com o voluntarismo que caracteriza os exércitos difusos da contemporaneidade, que se criam e se recriam no mundo material com a velocidade com que blogs ou páginas de redes sociais ganham e perdem centralidade.
Essa vertente “laminar” da dilaceração da malha carioca se expressa em diferentes tipologias do crime, que terminam por criar um repertório de horrores que inclui execuções em pilhas de pneus incendiados, torturas em geral e outras modalidades dantescas, compartilhados por organizações criminosas, milícias, bandas podres e às vezes oficiais da polícia e franco-atiradores ou, conforme for, franco-esfaqueadores. As forças de segurança se esforçaram para libertar os morros e demais regiões de difícil acesso do tráfico pensando que a violência, fora desses enclaves, se diluiria. Mas, se hoje é anacrônico dizer que as UPPs não foram em muitos aspectos um sucesso (apesar dos retrocessos em certas comunidades), é também anacrônico dizer que elas foram o sucesso que se alardeou: a violência, ora refém do tráfico; ora escrava do crack; ora nascida de gerações sem escola e sem rumo; ora filha do desprezo que o Brasil cultiva pela educação; ora inata no indivíduo e incontida quando a polícia é inepta, mal treinada e brutalizada; ora fruto de profundas raízes socioeconômicas (e, para os obtusos, do mal absoluto de um nomeado indivíduo, ou do demo) — enfim, a violência eclode nas ondas do mar e nas rachaduras do asfalto no tal do país em que tudo dá mas pouco se colhe.
Por isso, a sensação de impotência a cada novo surto e a incapacidade de encontrar explicações novas, deixando no ar os lugares-comuns de sempre. Hoje são as facadas; ontem (e hoje), as balas perdidas; anteontem (e ainda hoje), os erros da polícia. Há momentos, reincidentes, em que ficamos semanas comentando, pasmos, um tipo de violência que, em sua eclosão, não envolve planejamento humano, mas a falta dele: é quando artefatos que se quer inanimados, como bueiros, começam a explodir, vertidos em minas de guerra involuntárias, automáticas. O corpo da cidade, torturado, vomita suas estruturas organicamente. Na fúria dos bueiros, inimputáveis, ou nas mãos impiedosas de um jovem esfaqueador, vibra a engrenagem de um crime maior, de origem, perpetrado por todo um corpo social. A cidade é aquilo que o homem faz dela. Crime maior é não observar, e aprender, com a História.
24 de maio de 2015
Arnaldo Bloch
O homicídio sob o poente da Lagoa ganhou ainda mais em repercussão por emblematizar o modus operandi do momento, que vem se alastrando na Zona Sul e em outros pontos da cidade: a arma branca, não usada como simples ameaça, mas com o objetivo de matar ao menor imprevisto, ou mesmo sem reação da vítima, ou pelas costas, como foi o caso. Nos anos 1970 e até inícios da década seguinte eram comuns os meninos maltrapilhos que assaltavam com caco de vidro, restos de ferragens e canivetes, muito mais empregados para intimidar que para golpear (retratados em outra canção de Chico, com Francis Hime, a obra-prima “Pivete”). Dependendo do porte da vítima, era possível derrubar o menino com um peteleco, ou entregar a carteira, ou até pagar uma coxinha de galinha com guaraná na esquina, e a coisa terminar em bate-papo sobre futebol. Isso quando o infrator em questão não se surpreendia ao assaltar o mesmo moleque abastado com quem jogava bola na praia, desistindo do plano, envergonhado.
Os delinquentes que agora estão a esfaquear concidadãos em pontos turísticos da Zona Sul (o assalto no Parque do Flamengo, semanas atrás, foi o estopim da notoriedade da nova onda) e outras regiões da cidade são de um outro tipo, ainda a estudar, mas que não é novo na essência: já se contam décadas desde que, não apenas no Rio, mas nas demais metrópoles brasileiras, fala-se da banalização, da desvalorização da vida, trocada por dez reais, por um celular pré-pago, por uma bicicleta e, amiúde, por nada, só pela gana de matar no esculacho.
A faca, milenar, que remete a tantas simbologias, que emerge dos estágios primevos da civilização, e — mais essencial ainda —, a lâmina, das espadas, dos justiceiros, do suicídio ritual, das guilhotinas das revoluções liberais, das rebeliões em presídios, dos jihads radicais, ou das execuções exemplares a sangue frio, adiciona um lúgubre componente retrô, afinado com o voluntarismo que caracteriza os exércitos difusos da contemporaneidade, que se criam e se recriam no mundo material com a velocidade com que blogs ou páginas de redes sociais ganham e perdem centralidade.
Essa vertente “laminar” da dilaceração da malha carioca se expressa em diferentes tipologias do crime, que terminam por criar um repertório de horrores que inclui execuções em pilhas de pneus incendiados, torturas em geral e outras modalidades dantescas, compartilhados por organizações criminosas, milícias, bandas podres e às vezes oficiais da polícia e franco-atiradores ou, conforme for, franco-esfaqueadores. As forças de segurança se esforçaram para libertar os morros e demais regiões de difícil acesso do tráfico pensando que a violência, fora desses enclaves, se diluiria. Mas, se hoje é anacrônico dizer que as UPPs não foram em muitos aspectos um sucesso (apesar dos retrocessos em certas comunidades), é também anacrônico dizer que elas foram o sucesso que se alardeou: a violência, ora refém do tráfico; ora escrava do crack; ora nascida de gerações sem escola e sem rumo; ora filha do desprezo que o Brasil cultiva pela educação; ora inata no indivíduo e incontida quando a polícia é inepta, mal treinada e brutalizada; ora fruto de profundas raízes socioeconômicas (e, para os obtusos, do mal absoluto de um nomeado indivíduo, ou do demo) — enfim, a violência eclode nas ondas do mar e nas rachaduras do asfalto no tal do país em que tudo dá mas pouco se colhe.
Por isso, a sensação de impotência a cada novo surto e a incapacidade de encontrar explicações novas, deixando no ar os lugares-comuns de sempre. Hoje são as facadas; ontem (e hoje), as balas perdidas; anteontem (e ainda hoje), os erros da polícia. Há momentos, reincidentes, em que ficamos semanas comentando, pasmos, um tipo de violência que, em sua eclosão, não envolve planejamento humano, mas a falta dele: é quando artefatos que se quer inanimados, como bueiros, começam a explodir, vertidos em minas de guerra involuntárias, automáticas. O corpo da cidade, torturado, vomita suas estruturas organicamente. Na fúria dos bueiros, inimputáveis, ou nas mãos impiedosas de um jovem esfaqueador, vibra a engrenagem de um crime maior, de origem, perpetrado por todo um corpo social. A cidade é aquilo que o homem faz dela. Crime maior é não observar, e aprender, com a História.
24 de maio de 2015
Arnaldo Bloch
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