"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A AVE O OVO


 A filosofia, enfim, só aparece quando cumpridas determinadas condições culturais, tanto na sociedade em geral quanto na mente do filósofo individual.

Volta e meia reaparece, em jornais e blogs, a idéia de “ensinar filosofia às crianças”. Não é coincidência que isso aconteça justamente num país sem filósofos em número suficiente para preencher uma página da lista telefônica e com crianças em quantidade bastante para lotar várias nações da Europa.  A proposta baseia-se na radical incompreensão do que seja filosofia e na ânsia desmedida de tirar proveito da mais dócil, indefesa e numerosa massa de manobra que um demagogo poderia desejar. 
O argumento-padrão é que meninos e meninas raciocinam sobre “problemas filosóficos” desde a mais tenra infância, perguntando, por exemplo, se o mundo é real ou apenas um sonho, se as coisas cessam de existir quando fechamos os olhos, se existe apenas um universo ou vários, o que nos acontece depois que morremos ou onde elas próprias estavam antes de haver nascido.
Eu mesmo, rotulando-me ironicamente “filósofo mirim”, registrei algumas peripécias cognitivas em que me envolvi aos cinco ou seis anos de idade (http://www.olavodecarvalho.org/blog/), mostrando que dali se originaram certas questões das quais vim a tratar mais tarde nos meus livros e cursos.
Evidentemente não fui o primeiro a relatar acontecimentos desse tipo. Ocorrem-me, no momento, a Histoire de Mes Pensées de Alain, o Éssai d’Autobiographie Spirituelle de Nicolai Berdiaeff e a Anamnesis de Eric Voegelin. Nem menciono, por óbvias demais, as Confissões de Sto. Agostinho e de Rousseau.
Mas em todos esses exemplos, seja encontrados na vida real ou na literatura, uma obviedade deveria ter logo saltado à vista do observador sensato. Se essas perguntas ocorrem às crianças espontaneamente e sem qualquer estímulo cultural patente, elas são simplesmente naturais e universais. Expressam a curiosidade humana na sua forma mais direta e primitiva, tal como aparece em todas as épocas, lugares e culturas. Sem essa curiosidade, certamente, a filosofia não existiria. No entanto, se ela bastasse, já não digo para constituir uma filosofia, mas para deslanchar o processo da especulação filosófica como atividade culta, esta seria também natural e universal em vez de ter surgido historicamente numa data bem tardia, num local bem determinado e numa moldura demográfica das mais modestas.  Muito menos teria essa atividade levado um milênio para se expandir para o Oriente Médio, e dois para o restante do planeta.
Deve, portanto, existir uma diferença profunda e insanável entre a filosofia e as interrogações espontâneas que ocorrem a adultos e crianças em toda parte, simulando “questões filosóficas”. Essa diferença é a seguinte: a filosofia, quando surge na Grécia e tal como se desenvolve até hoje, não consiste em simplesmente pensar sobre essas questões, mas em refletir metodicamente sobre o conjunto das respostas existentes, surgidas da especulação espontânea, das tradições e mitos religiosos, das obras literárias ou de qualquer outra fonte publicamente conhecida. Foi por isso que Julián Marías disse que a fórmula esquemática de toda e qualquer afirmação filosófica não é simplesmente “A é C”, mas “A não é B e sim C”, e Benedetto Croce ensinou que para compreender uma filosofia é preciso saber a quê ela se opõe.
Para que o filósofo reflita sobre as respostas correntes, é preciso que elas existam e que ele as conheça. Três requisitos são necessários para que essas condições se cumpram: (1) é preciso que as crenças básicas da comunidade tenham evoluído até poder expressar-se em fórmulas verbais estáveis, conhecidas por toda a população adulta; (b) é preciso que essas fórmulas tenham se tornado problemáticas, entrando em choque umas com as outras ou com a realidade da experiência, para que possa surgir a simples idéia de fazer delas o objeto de uma reflexão organizada; (3) é preciso que o filósofo as tenha estudado bem, isto é, domine em máxima medida possível a cultura do seu tempo e da sua sociedade, de modo a poder introduzir na discussão um upgrade diferencial e decisivo: a análise filosófica.
Aristóteles, é claro, diria que a diferença específica entre a filosofia e as especulações espontâneas de crianças e adultos não está na matéria ou assunto de que tratam, mas na forma da análise filosófica, que se distingue daquelas mais ou menos no mesmo sentido em que a ciência da zoologia se distingue de uma visita ao jardim zoológico. Aliás foi o próprio Aristóteles quem criou o primeiro jardim zoológico, e com certeza não confundia a curiosidade dos  visitantes com as investigações zoológicas que ele e seus estudantes empreendiam com base no mesmo material ali observado.
A filosofia, enfim, só aparece quando cumpridas determinadas condições culturais, tanto na sociedade em geral quanto na mente do filósofo individual. A primeira tem de estar madura para aceitar uma discussão sobre suas crenças mais queridas, a segunda tem de haver adquirido conhecimentos suficientes para que sua voz reflita a das correntes culturais existentes e não somente suas impressões pessoais isoladas.
Por isso foi que Hegel afirmou: “A ave de Minerva só levanta vôo ao entardecer.”
Pessoas com uma cultura filosófica e histórica deficiente ou nula podem-se deixar confundir pela semelhança material entre a pergunta de uma criança e a questão filosófica formulada por um pensador maduro, mas a diferença entre elas é grande ao ponto de que a primeira diz algo por si mesma, podendo reaparecer idêntica em milhares de cérebros infantis (ou mesmo adultos), ao passo que a segunda nada significa fora da “ordem das razões”, o lugar preciso que ocupa no esquema total do pensamento daquele filósofo em particular.
Nesse sentido, todo estudante de filosofia tem a obrigação de saber que não existem propriamente “questões filosóficas”, mas questões que, sob certas circunstâncias muito complexas, emergem do terreno geral da curiosidade humana e, graças a um tratamento muito especial que recebem, se tornam questões filosóficas.
Por isso mesmo eu disse não ser coincidência que a idéia besta da “filosofia para crianças”, malgrado toda a óbvia dificuldade prática de realizá-la (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/granel.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/rhabito.htm), ressurja de novo e de novo, como uma obsessão incurável, num país que tem pouquíssimos filósofos, mesmo ruins, e onde os bons se contam nos dedos das mãos. A proposta invariavelmente vem de pessoas cujas realizações no campo da filosofia são inexistentes, cujos conhecimentos filosóficos não chegam ao nível dos de um estudante secundarista na França ou nos EUA e cuja cultura geral não permite sequer participar utilmente de discussões jornalísticas, quanto mais filosóficas. Jogam um ovo para o ar e acreditam que é o vôo da ave de Minerva.
17 de fevereiro de 2015 
OLAVO DE CARVALHO
Publicado no Diário do Comércio.

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