“Os homens sempre voltam”
(personagem Jumento, da peça Os saltimbancos, referindo-se à persistência da repressão)
Em algum momento de 2011, estava lendo uma coletânea de poemas do Millôr Fernandes. Bati os olhos no Canção número 1 para seres estranhos, de 1961. Foi uma pancada, como se alguém tivesse traduzido o que eu sentia naquele instante. Compartilho:
Vou a caminho/E mergulho e volto./É uma noite perene/Entre todas as noites./No ar, nem silêncio./E vamos, vamos, vamos,/Deixando para trás/As pegadas profundas/Destes passos únicos./Só o Ieti me entende/Tão abominável/Em seu gelo eterno./Abominável ele/Abomináveis nós./Eu te amo, Ieti./Te amo, pio bove.
Aflito como o Ieti, o texto foi o empurrão que faltava para começar a colocar no monitor um pouco de quem eu sou e de como estou no mundo. A primeira crônica puxou a segunda, e veio uma enfiada semanal de memórias, invencionices, pensatas mais ou menos pretensiosas, rabugices, gargalhadas, provocações.
Criei personagens fiéis a Manoel de Barros: 90% do que eu falo é invenção, só 10% é mentira. São quase três anos de encontros com pessoas que eu não vejo, mas que sustentam comigo um diálogo silencioso e elegante. Bônus da internet.
CONVITE
Em agosto de 2012, fui convidado pelo portal Carta Maior a publicar as crônicas semanais. Autorizei de imediato a reprodução dos textos, e, desde então, ganhei um espaço na seção Cultura. Sempre me deram total liberdade. Isso, no entanto, acabou semana passada. Fui sutilmente censurado, num gesto que não devo, não posso, não quero, não vou aceitar. Passo a relatar os fatos.
O portal se denomina “da esquerda brasileira e latinoamericana”. Na eleição terminada ontem, reduziu-se esquerda brasileira a PT. Em sua quase totalidade, os artigos construíram uma espécie de braço eleitoral do Partido dos Trabalhadores, reduzindo a pó o espaço que outros segmentos da esquerda deveriam ter se fosse levada a sério uma interlocução democrática com o campo progressista.
Foi neste clima que enviei, no dia 17 de outubro, o texto Você abusou: crônica de um voto. Nele, defendi, sem histeria ou fanatismo, o voto nulo. Um de meus propósitos era quebrar o monopólio da opinião petista no portal, numa perspectiva de esquerda.
Ofereci aos leitores a oportunidade de cotejarem suas opiniões com uma alternativa que não vinha pela direita. O que aconteceu em seguida foi puro Darth Vader, o Lado Escuro da Força.
No primeiro momento, a crônica foi publicada na seção Cultura (embora o texto fosse claramente político e merecesse estar na seção correspondente). Logo após, para meu espanto e horror, foi simplesmente retirada do portal. Isso mesmo: censurada! A leitora Sandra Bastos percebeu a sombra da guilhotina e registrou o estranhamento no dia 19 de outubro. Quando voltou ao ar, a crônica saiu da página de frente e foi exilada para as páginas internas, que têm visibilidade muito menor. Com isso, a repercussão ficou severamente prejudicada, bloqueando minha intenção de inflamar um debate mais do que necessário.
EXCESSO DE MATÉRIAS
Soube que editores do portal alegaram “excesso de matérias” para fazer o que fizeram. Conversa mole. As matérias da seção Cultura da semana passada, por exemplo, incluíam o cinema de Rosselini e as opiniões de Juca Ferreira sobre o cinema brasileiro. Como se vê, temas que poderiam ser perfeitamente postergados, já que estávamos na última semana da campanha eleitoral. Outro detalhe importante.
Minhas crônicas sempre permaneceram na página da frente do portal por uma semana. A primeira vez em que isso não aconteceu foi exatamente quando divergi da maré montante dilmista. Não nasci ontem, não acredito neste tipo de coincidência. Um dos articulistas do Carta Maior escreveu que votar nulo equivalia a um “crime”. Bingo. Lá estava eu rotulado de criminoso, indigno de ocupar um espaço onde estava a convite.
O pensamento autoritário não admite marolas. Quer garantias antecipadas de que não será ameaçado. No fim da década de 70, colaborei com o semanário Movimento, da chamada imprensa nanica. Submetido à censura prévia, muitas de suas matérias eram parcial ou totalmente vetadas. Mesmo não sendo jornalista, fui encarregado de entrevistar o general Pery Constant Bevilacqua. O militar era um legalista de velha cepa, que tinha defendido a posse de Jango depois da renúncia de Jânio e se oposto ao golpe de 64. Defendia, quando o entrevistei, a anistia (foi um dos fundadores do Comitê Brasileiro pela Anistia).
Redigi a matéria e, tal como em outras, assinei com o pseudônimo de Adolfo Marques. Tratava-se de uma homenagem camuflada a um dos meus grandes ídolos: Adolph Marx, vulgo Harpo Marx, o genial artista que lançava toneladas de humor anárquico e mudo nos filmes dos Irmãos Marx. Pois bem. Os censores de Brasília vetaram na íntegra o texto. Experimentei o gosto amargo da impotência nestas situações. Não havia a quem reclamar.
Claro que a atitude arbitrária do Carta Maior não é igual a dos esbirros da ditadura militar. Os editores foram um pouco mais sutis. Limitaram-se a esconder o que era incômodo. Foi uma espécie de veto branco, asséptico, para tentar livrar a cara dos que o cometeram. Incorreram em dois erros. O primeiro foi acreditar que eu relevaria a manobra. Ledo e ivo engano. Não compactuo com a violação de meus princípios.
O segundo foi subestimar a inteligência dos leitores. Mesmo com visibilidade menor, a crônica foi lida e comentada por um número razoável de internautas. Talvez para surpresa dos censores, que imaginam que ler é aderir, a grande maioria manteve suas convicções e me criticou educadamente. A todos eles, aliás, agradeço pela elegância e cumprimento pelo espírito democrático. Tivesse agido corretamente, o Carta Maior teria patrocinado um debate interessante, que sairia da bitola estreita e medíocre que presidiu as eleições recém encerradas.
Solicitei, delicadamente, esclarecimentos formais ao portal. Em resposta, tive o silêncio. Às vezes, ele é necessário. Em outras, no entanto, seu ruído é ensurdecedor. Entendi o recado. Entendi e não aceito. Em questões de liberdade, sou luxemburguista fanático (de Rosa, não de Vanderlei): “A liberdade para os partidários do governo, apenas para os membros do partido, por muitos que sejam, não é liberdade.
A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente”. E mais: “Sem livre enfrentamento de opiniões, a vida morre em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente”. Por tudo isso, não me restou alternativa. Esta foi a minha última crônica que o Carta Maior teve autorização para publicar. Continuarei a escrevê-las semanalmente, remetendo-as apenas para uma lista selecionada de endereços eletrônicos.
29 de outubro de 2014
Jacques Gruman
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