"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

À TRIPA-FORRA

 




É inegável que os inúmeros arquivos de imagens, sobretudo o gigantesco acervo das televisões, tornaram a memória humana totalmente obsoleta. A garotada não se interessa mais por recordações – só quer replays (Millôr Fernandes)
 
Lá vinha a carrocinha amarela. No gelo seco, como é que fumaça podia ser gelada?, ja-jás, ka-lus, ton-bons, chicabons. Em cima, ao alcance do olho e, principalmente, do bolso, caixas de pirulitos “com vitamina C” e kibambas. Às vezes, as moedinhas acumuladas a duras penas davam para matar o desejo.
A glória de rasgar a embalagem daqueles chocolatinhos era bissexta. Vida dura. A regra era a escassez, olho arregalado e aflito, sonho de, adulto, empurrar a fábrica ambulante que aguçava sentidos e se empanturrar com os frutos proibidos, cor de cacau. Um dia, quem sabe ?
 
E o dia chegou. Não mais com as carrocinhas, mas nas prateleiras dos supermercados. Ah, barras inteiras ao alcance da gula reprimida. Foi aí que experimentou um velho dilema existencial: acesso fácil e irrestrito pode conviver com a fantasia, o desejo, o mistério, a criação, a volúpia do desconhecido ? Pensava nisso quando li um artigo de David Shariatmadari, no jornal inglês The Guardian. David observa que jamais a humanidade esteve tão equipada para se registrar em imagens. Estima-se que serão tiradas, em 2014, cerca de 1 trilhão de fotos em todo o mundo. Mais ou menos 33 mil imagens por segundo.
 
Quando é que Louis Daguerre poderia imaginar esta avalanche há 175 anos, época em que apareceram as primeiras fotos (daguerreótipos, em homenagem a seu inventor) ? Houve a impressão, naqueles tempos pioneiros, de que a máquina recém desenvolvida seria um olho humano com superpoderes, capaz de armazenar memórias. Como diria o Cony, ledo e ivo engano. Hoje, há fortes evidências de que tirar fotografias ao invés de mergulhar fundo numa experiência pode prejudicar a formação de memórias.
 
Memórias são matéria plástica. Uma equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia mostrou que é possível implantar memórias falsas mesmo em gente com capacidade excepcional de lembrar. Quantas vezes não somos flagrados afirmando categoricamente que “vimos” alguma coisa que jamais aconteceu ? Dia desses, revi o filme Roma, cidade aberta, um clássico do neorrealismo italiano. No meio da história, garanti para mim mesmo, ancorado numa lembrança peremptória:
“O padre vai amaldiçoar os nazistas quando enfrentar o pelotão de fuzilamento”. Surpresa: não foi bem assim. Na prisão, o padre vê seu amigo comunista, com quem lutava na resistência contra o nazifascismo, torturado e morto. É nesse momento, e não quando vai ser fuzilado, que amaldiçoa os algozes. Até tu, Brutus, digo, memória?
 
ROTINAS E BANALIDADES
 
O dilúvio de imagens não para de gerar filhotes. A facilidade e o baixo custo para tirar fotos cria uma espécie de imperativo neurótico: registrar tudo e, se possível e com enorme frequência, compartilhar rotinas e banalidades. Que valor podem ter os selfies?
De que servem sorrisos Kolynos congelados e obrigatórios, quando a vida é maleável, cheia de irebires como diriam os lusitanos, nada a ver com essas pândegas ilusórias com dentinas imaculadas? Shariatmadari observa, com propriedade, que as gerações antigas tinham percebido com mais inteligência a falsa sensação de segurança trazida por imagens. Retratos pintados a óleo vinham, não raro, adornados por um crânio, a lembrar que a morte é inevitável. E a Magrinha não é sorridente.
 
O excesso cobra seu preço. Guardam-se pen drives, hard drives e nuvens abarrotados de fotos rigorosamente iguais, sem qualquer significado ou expressão. Clones de si mesmas. Como no moon walk, andamos para trás. Leio que, depois dos books de adolescentes, grávidas e bebês, chegou a vez de álbuns profissionais para recém-nascidos com até 25 dias (!).
Como todo modismo de classe média, que precisa ocupar o tempo para mascarar sua mediocridade, esse também tem a sua “lógica”. Muito bem desenhada por uma das clientes do serviço: “É um trabalho artístico, mostra a pureza da criança”.
Os pais das antigas, sem parafernália tecnológica, eram bem mais seletivos nestes registros. Viviam a experiência, sem se preocupar com “purezas” (de resto, como Freud já o demonstrou, inexistentes). Acreditar que fotos podem captar estados de espírito num recém-nascido é o mesmo que acreditar que comer o coração de um guerreiro transfere a bravura para o comilão.
 
Tenho uma prima que confessou: não consegue abrir a caixa de fotografias que sua mãe deixou. Teme despertar emoções que ela prefere manter sepultadas. São, seguramente, imagens em preto e branco, com qualidade muito inferior à que se consegue com câmeras modernas. No entanto, desconfio que não são descartáveis. Contam histórias. Coçam a imaginação.
Quantos instagrams podem dizer o mesmo ? Fotos não datadas de um avô, tiradas em Buenos Aires, escondem segredos que convidam à fantasia. Claro que há material excelente que não foi tirado em Rolleiflex, que vale para a história dos povos e para o afeto. Não sou ludita. O que incomoda é a enxurrada, gordura que não produz energia, apenas obesidade.
 
Com minha psicologia de boteco, intuo que muita gente clica sem parar na tentativa inconsciente e vã de congelar o tempo. Uma ilusão compreensível. Está aí o retrato de Dorian Gray para provar que esta é uma corrida que se perde no exato momento da largada.
 
(artigo enviado por Mário Assis)
 
15 de janeiro de 2014
Jacques Gruman

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