"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 29 de dezembro de 2013

O MENSAGEIRO DO ANO

 



Este ano o tema principal da tradicional mensagem de Natal da rainha, transmitida do Palácio de Buckingham às 3 da tarde do dia 25, foi a importância da reflexão.

Elizabeth II introduziu o assunto narrando o caso de um gentleman cuja visão do mundo se alargara depois de ele ter ficado imobilizado por um ano devido a uma cirurgia na coluna. “Com tantas distrações é fácil esquecer de fazer uma pausa”, disse a monarca. “Todos necessitamos acertar o equilíbrio entre ação e reflexão.”

Menos de duas horas depois outro canal de televisão da Inglaterra, o Channel 4, colocava no ar a aguardada versão pop da tradição: a Mensagem de Natal Alternativa. Introduzida há apenas duas décadas, ela imita o programa original iniciado pelo rei George V em 1932. Mas o mensageiro é sempre um plebeu-celebridade surpresa, que muda de ano a ano.

Para o Channel 4, Edward Snowden foi o mensageiro natalino ideal, apesar de arriscado — por politicamente tóxico. Como o calendário de interesses das duas partes coincidisse, Snowden concordou em se deixar filmar em seu asilo temporário moscovita pela amiga jornalista Laura Poitras.

Sua fala durou menos de dois minutos. No tom, ele foi quase tão sereno e monocórdico quanto a rainha. No conteúdo, chegou a se debruçar sobre temas ironicamente semelhantes, como o do equilíbrio.

“O debate [em curso] vai definir o grau de confiança que podemos depositar na tecnologia que nos cerca e no governo que a regula”, disse o pivô dos vazamentos que abalaram o mundo em 2013. “Juntos, podemos encontrar um melhor equilíbrio, acabar com a vigilância em massa e lembrar o governo de que, se ele realmente quer saber o que sentimos, deve nos perguntar — é sempre mais barato do que espionar.”

“Bebês” foram outra coincidência na oratória de ambos. Ao repassar os acontecimentos estelares do ano, Elizabeth II saudou o nascimento do príncipe George, seu bisneto e futuro rei, e discorreu sobre a chance de contemplar o futuro com esperança proporcionada pelo nascimento de toda criança. Já Snowden descreveu um futuro bem mais orwelliano para quem vier a se juntar à humanidade.

“Uma criança nascida no mundo de hoje irá crescer sem qualquer noção de privacidade. Ela nunca vai saber o que significa ter um momento privado, só dela, ou um pensamento não gravado, não analisado”, advertiu ele. “E isso é um problema, pois privacidade tem importância.” Importância máxima, na acepção do ex-analista da National Security Agency (NSA): “Privacidade é o que nos permite determinar quem somos e o que queremos ser.”

A julgar pelo pouco que mostrou de si até agora, Edward Snowden parece não ter despenteado um só fio de cabelo, apesar de ter tido a vida revolta de cabeça para baixo desde maio último. Nada em sua aparência, gestual, tom ou estilo mudou desde a novelesca fuga do posto da NSA no Havaí, do espetaculoso aparecimento em Hong Kong seguido do delirante acampamento forçado no aeroporto de Cheremetyevo até o atual asilo em terras russas.

Ao repórter Barton Gellman, do “Washington Post”, autor da primorosa entrevista de 14 horas publicada na íntegra esta semana pelo GLOBO, Snowden explicou que se alimenta basicamente de miojo e batatas fritas, não por estar refugiado em Moscou, mas por ser mesmo pessoa de necessidades mínimas.

Evitou falar de si. Mas a cor branco translúcido de sua pele atesta que também no Havaí pouco saía de ambientes fechados. Trabalho à parte, é possível que por índole e aptidão ele tenha passado boa parte de seus 30 anos vivendo a internet.

Nesse caso, seu assombro ao detectar o descontrole, profundidade e extensão do aparato dos serviços de vigilância dos Estados Unidos foi duplo: como analista da NSA ele era parte da engrenagem; como cidadão, era sua própria vítima.

Tomou a decisão que marcou o ano de 2013, “sem arrependimento nem apreensão quanto ao futuro”, disse ele ao refletir sobre a repercussão de suas escolhas. Entre elas, a queixa criminal por espionagem e roubo de propriedade do governo americano, emitida pelo Departamento de Justiça.

“Se eu desertei, desertei do governo para o povo. Nunca pretendi mudar a sociedade. Quis dar a ela a chance de determinar se ela quer mudar, dar voz ao público para dizer como quer ser governado. Sinto que o que tentei fazer foi validado”, concluiu.

O ano de 2013 forneceu ao mundo duas opções extraordinárias para quem gosta de escolher um homem ou mulher de maior destaque: Francisco, o refrescante novo líder espiritual de 1,2 bilhão de católicos, ou o estranho delator fugitivo da Justiça dos Estados Unidos. Como escreveu o colunista americano Eugene Robinson, como candidato Snowden não podia ser mais imperfeito. Só que a sua mensagem foi perfeita.

O Papa reorientou o foco da Igreja para a desigualdade e a injustiça social, começou a sacudir a burocracia conservadora entrincheirada no Vaticano e introduziu uma linguagem compreensível por todos, da qual não estão excluídos temas tabus. Com tudo isso em andamento, ele poderá ser o artífice de grandes mudanças sociais do futuro.

Edward Snowden, ao decidir revelar ao mundo a teia de programas invasivos com que convivemos, já concluiu seu trabalho. Quem quiser proteger as migalhas de privacidade de que ainda dispomos, mexa-se.

29 de dezembro de 2013
Dorrit Harazim é jornalista. O Globo

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