Os recortes de jornal à minha frente já têm mais de 50 anos. Alguns, 54, porque são de 1962. Estão perfeitos, sem manchas, com a cor e a maciez originais do papel em que foram impressos – como se a seiva contida na pasta com que foi fabricado ainda estivesse viva. São recortes, mais de 200, do "Correio da Manhã", com a coluna "Da Arte de Falar Mal", de Carlos Heitor Cony. As colunas também estão vivas.
Cony escreveu "Da Arte de Falar Mal" no "Correio" de 1962 a 1965, às quartas, sextas e domingos, revezando com o grave e insípido Otavio de Faria, que saía às terças, quintas e sábados –os matutinos não circulavam às segundas. A diferença entre Cony e os outros cronistas, mesmo Rubem Braga, refulgia: era o único que escrevia para valer na primeira pessoa.
Pela coluna, sabíamos que, além de jornalista, era escritor, romancista, na linha de Alberto Moravia, Cesare Pavese e outros italianos da época. Que fora seminarista, era desquitado, tinha duas filhas, morava em Copacabana, torcia pelo Fluminense e não pecava contra a castidade –pecava a favor. Que não acreditava em nada, ou quase nada, e não se levava, nem a ninguém, muito a sério. Não havia assunto a que não aplicasse sua visão cética, sardônica, independente –sem prejuízo de escapadas líricas em que se revelava o homem só, triste e autossuficiente que ele talvez fosse.
Para certo garoto de 14 anos em 1962, a leitura dessas crônicas foi uma epifania.
Era possível ser daquele jeito –cético, sardônico, independente– e seguir em frente. O garoto era eu. Em 1964, o próprio Cony nos ensinaria que, às vezes, era preciso acreditar em alguma coisa, tomar partido e pagar por isso, para conservar a independência.
Cony está fazendo 90 anos. Sua seiva continua viva e ele ainda me faz a cabeça.
13 de março de 2016
Ruy Castro, Folha de São Paulo
Cony escreveu "Da Arte de Falar Mal" no "Correio" de 1962 a 1965, às quartas, sextas e domingos, revezando com o grave e insípido Otavio de Faria, que saía às terças, quintas e sábados –os matutinos não circulavam às segundas. A diferença entre Cony e os outros cronistas, mesmo Rubem Braga, refulgia: era o único que escrevia para valer na primeira pessoa.
Pela coluna, sabíamos que, além de jornalista, era escritor, romancista, na linha de Alberto Moravia, Cesare Pavese e outros italianos da época. Que fora seminarista, era desquitado, tinha duas filhas, morava em Copacabana, torcia pelo Fluminense e não pecava contra a castidade –pecava a favor. Que não acreditava em nada, ou quase nada, e não se levava, nem a ninguém, muito a sério. Não havia assunto a que não aplicasse sua visão cética, sardônica, independente –sem prejuízo de escapadas líricas em que se revelava o homem só, triste e autossuficiente que ele talvez fosse.
Para certo garoto de 14 anos em 1962, a leitura dessas crônicas foi uma epifania.
Era possível ser daquele jeito –cético, sardônico, independente– e seguir em frente. O garoto era eu. Em 1964, o próprio Cony nos ensinaria que, às vezes, era preciso acreditar em alguma coisa, tomar partido e pagar por isso, para conservar a independência.
Cony está fazendo 90 anos. Sua seiva continua viva e ele ainda me faz a cabeça.
13 de março de 2016
Ruy Castro, Folha de São Paulo
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