O legado social do PT na Presidência da República não resistiu ao primeiro sinal de crise econômica interna, avalia o sociólogo José de Souza Martins. “A classe média do PT caiu de patamar em horas”, afirma. Para um dos principais cientistas sociais do Brasil, o PT outrora popular e de traços messiânicos caiu na “armadilha” da “corrupção altruísta” – movida, em tese, pelo desejo de retirar dos ricos para “prestar um grande serviço à sociedade”.
Martins, de 77 anos, acompanhou de perto a formação do partido e a influência de protagonistas sociais – como Igreja, camponeses e intelectuais – na criação da sigla, no começo dos anos 1980. Ao separar os ingredientes da atual crise política – externos e internos ao PT –, ele identifica “partidos falidos” e pessoas “cheias e cansadas”. “Estamos vivendo uma crise que é do Estado e da sociedade.”
No recém-lançado “Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder” (editora Contexto), o 45º livro da carreira, o professor aposentado da USP e docente da Cátedra Simón Bolivar da Universidade de Cambridge (Inglaterra) descreve as mutações do PT após a chegada ao Planalto.
De passagem por Londres, Martins conversou com a BBC Brasil, num diálogo que incluiu questões sugeridas por leitores via Facebook.
O ex-presidente Lula pode voltar em 2018 com a mesma força que saiu de seus mandatos ou a turbulência atual é um descontentamento geral com os partidos de esquerda? (pergunta do leitor André Luis dos Santos)
Voltar ele pode, não é um candidato descartável. Ele é candidato. Mas ele perdeu conteúdo, o carisma dele está abalado, então pode voltar em condições muito desfavoráveis, o que deve complicar o quadro político brasileiro. Isso porque o cenário já é de uma presidente sem força, que afinal é herdeira dele. Um presidente lulista em 2018, seja Lula ou não, será muito mais frágil do que ele já foi, e do que a própria Dilma é. A possibilidade de Lula é muito dependente do fato que não há candidatos fortes à Presidência. Vai ser uma situação muito complicada. Os partidos não se fortaleceram nesse período, e não geraram lideranças.
Apesar de avanços sociais no período do PT no poder, algumas reformas não foram promovidas nem mesmo fomentadas pelo partido, o que agrava a situação na crise. Ainda há possibilidade de discussão dessas reformas pelo PT ou o partido mudou a ponto de não defender mais essas promessas? (pergunta do leitor Julio Tedesco)
O PT nunca levou a sério, por exemplo, a questão da reforma agrária. No livro mostro que os recuos principais do partido, já nos primeiros dias de governo, foram em relação à reforma agrária, que era a grande bandeira do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), dos grupos da Igreja Católica. O PT subestimou esse desafio, achou que a população do campo era dócil e apenas respondia a palavras de ordem. O PT não avançou propriamente em nenhuma questão social. A classe média do PT caiu de patamar em questão de horas quando a crise se agravou. Houve avanços no ensino superior, mas em geral a questão da educação foi muito mal colocada. E houve casos graves como entregar o Ministério da Ciência e Tecnologia a um deputado (Celso Pansera, PMDB-RJ) que não é do ramo, cuja profissão é ser dono de restaurante por quilo. As conquistas não foram tantas, elas expressaram um certo momento da história econômica internacional e não foram muito além disso. A queda era até previsível, e a recuperação será difícil, porque o governo terá que enfrentar o problema de um crescente número de desempregados – e isso, sim, conta socialmente.
No livro o sr. menciona o ex-presidente como um “personagem duplo e dividido”: Lula e Luiz Inácio.
Às vésperas da eleição de 2002, Lula passa a ter duas faces: a face popular, que o gerou, e a face do poder. Que é um produto da trama do poder, não depende dele. E vira a pessoa que tem que fazer a gestão do poder, ainda que em nome de um partido, mas de um partido fragilizado pela dependência de outras siglas majoritárias no Congresso. Às vésperas da eleição ele percebe isso, dá aquela entrevista (ao documentário “Entreatos”, de João Moreira Salles) em que questiona o que será dele depois do poder. É um anúncio da consciência da fragmentação da pessoa que irá presidir a República. Logo em seguida há vários sinais de que setores da população, sobretudo mais simples, imaginavam que Lula tinha poderes mágicos. E ele acaba assumindo isso, que foi escolhido por Deus, nos primeiros meses de governo. Ele governa o tempo todo dividido (entre messianismo popular e a prática do poder). Essa consciência da duplicidade se manifesta já no primeiro ano de governo. Em vez de agir como presidente, ele critica o governo como se não fosse ele. Essa dupla figura segue até o fim e vai, ao mesmo tempo, esvaziando o PT. O lulismo, que é o Lula maior do que o PT, fenômeno que o (cientista político) André Singer estudou e foi testemunha, é produto desse fenômeno de duplicação da pessoa que preside a República.
É possível prever se ainda haverá uma figura política que mova massas no Brasil? (pergunta do leitor Akassio Miranda)
Lula é único porque nenhum outro candidato teve competência para mobilizar a novidade antropológica da política brasileira que veio com a Constituição de 1988, o fim dos vetos à formação do eleitorado. Ele entende a língua popular. Uma coisa são os intelectuais do PT, que não entendem disso, os sindicalistas não sabem nada, e o Lula sabe. Ele consegue ter uma conversa com o eleitorado, especialmente cara a cara, quando vai ao interior, é um diálogo de incorporação dessa população ao processo político, diferente de outros candidatos, mesmo petistas, que não sabem falar com essa população. Historicamente seria possível haver uma figura populista de massas, demagógica, capaz de mobilizar a população. Porém o Lula esvaziou essa possibilidade. O Lula, sozinho, absorveu todo o potencial de populismo que havia na sociedade brasileira. Ele ainda é o depositário dessa possibilidade, porém sem a chance de reviver o que já foi.
Como avalia o crescimento de partidos e posições políticas mais radicais dos dois lados, à esquerda e à direita?(pergunta do leitor André Luis dos Santos)
A radicalização de esquerda aconteceu porque o PT fracassou na aglutinação da diversidade ideológica das esquerdas. As grandes figuras que estão em facções mais à esquerda passaram, de certo modo, pelo PT. O PT as rechaçou para fazer composições políticas à direita. E na direita mesmo, propriamente direita, nunca deixou de haver propensão direitista, esvaziada, porém, pela própria ditadura militar. Claro que houve radicais no interior da ditadura, tortura, violência, mas a ditadura militar foi uma ditadura de composição, tentativa de negociar uma grande transição política. E o maniqueísmo petista não é só petista. O Brasil é um país que tende, naturalmente, às dicotomias. Mas o maniqueísmo petista tem raiz forte no setor das pastorais sociais da Igreja Católica, muito influenciado pelo marxismo do (filósofo francês) Louis Althusser.
É essa ideia de que o Brasil se explica e pode ser explicado para o povo como resultado de uma polarização. Ouvi isso em Goiás, na Amazônia, onde essa Pastoral foi forte. Explicam ao pobre: você é pobre porque os ricos se apossaram de tudo que você tinha e do que você produz. Aí vem a conversa da elite e dos trabalhadores, que é a base do discurso petista, e a influência da Igreja aí foi muito forte. O Lula frequentemente apela para essa questão das elites versus povo. Fica muito complicado nessa polarização explicar a realidade dos processos sociais em qualquer sociedade.
Como separar ingredientes externos e internos ao PT na atual crise política?
Quem discutiu isso foi Victor Nunes Leal no livro importantíssimo “Coronelismo, Enxada e Voto”, clássico da ciência política brasileira. É que o Brasil se divide desde o fim da monarquia em tendência absolutista, de um lado, e descentralizadora do processo político, de outro. A tendência concentradora, absolutista e autoritária é a raiz das ditaduras que tivemos, inclusive a de Getúlio Vargas. De outro lado a democracia seria de um país politicamente descentralizado em favor do poder local dos municípios, que são frequentemente antissociais: latifúndio, autoritarismo, banditismo. Com a abertura política e a frustrada eleição de Tancredo Neves cresce o PMDB, que é o partido dos municípios, da negociata, dos acordos. É um poder fragmentador. A democracia no Brasil nunca é de indivíduos que livremente votam e decidem em nome da nação.
O sr. analisa no livro o que classifica como “corrupção cívica” ou “altruísta”, que teria movido o envolvimento do partido em desvios de recursos.
O que ficou claro a partir dos primeiros acontecimentos desse tipo, anteriores ao mensalão, foi algo que remete ao que ocorreu na França nas revoltas estudantis de 1968. Estudantes em nome da expropriação burguesa começaram a roubar livrarias. Era uma expressão de uma concepção muito boba sobre a função histórica da burguesia e como ela acumula. Não por acaso o envolvimento com corrupção no PT passa pelos intelectuais, pelos burocratas, e não pelas bases sindicais ou católicas. Visivelmente essa mentalidade chegou ao PT: porque todos os governos roubam e recebem propina de 10% nas negociatas, o PT não tem como não fazer, mas fará em nome de sua permanência no poder e para prestar um grande serviço à sociedade que outros não fizeram. Aí caíram na armadilha, isso é uma armadilha.
O livro aborda o papel da Igreja Católica na formação do PT e da figura política de Lula. Qual é a relevância dessa ala no partido hoje?
Essa ala se afastou do partido. As figuras mais significativas tiveram que se afastar, e os indícios apontam que foi por pressão da própria CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). As figuras ligadas à Igreja que propunham vínculo entre CNBB e governo foram caindo fora do PT a partir do mensalão. Você também vê isso no ABC paulista: a votação do PT para prefeituras cai drasticamente. Mesmo que o partido ainda eleja prefeitos por lá, os votos modificados pelo desencanto com a política são majoritários. Estamos vivendo um momento de crise da política, não é só do PT. Sempre se poderá dizer que o PT ajudou a aumentar a crise política. As pessoas estão cheias e cansadas, mas não sabem bem o que fazer. No extremo dizem que uma ditadura vai resolver, mas não vai, porque não resolveu antes e não vai resolver agora. Há uma insatisfação difusa. E os partidos não estão absorvendo esse novo sujeito indiferenciado e descontente. Estamos vivendo uma crise política que é do Estado e da sociedade. A sociedade não tem como se expressar e os partidos faliram.
16 de fevereiro de 2016
Deu na BBC Brasil
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