As agências de inteligência e as decisões
“A eficácia de um Serviço de Inteligência depende muito mais daqueles que recebem suas informações, prestando atenção a elas, especialmente quanto contradizem suas opiniões”
(Markus Wolf, chefe do Serviço de Inteligência Exterior da ex-RDA de 1951 a 1985)
O texto abaixo foi extraído do livro “Contra todos os Inimigos”, editora Francis, 2004, de autoria de Richard A. Clarke, ex-Coordenador Nacional para Segurança, Proteção de Infra-Estrutura e Antiterrorismo dos governos George Bush, Bill Clinton e George W. Bush. Richard Clarke foi o próprio gerente da crise, tendo dirigido os acontecimentos que se seguiram ao 11 de setembro de dentro do Situation Room, na Casa Branca. No livro ele narra seus esforços para chamar a atenção do presidente Bush para Osama Bin Laden e o perigo da Al Qaeda, assunto sobre o qual é especialista, e comenta, passo a passo, seu crescente desapontamento diante das desastrosas decisões do presidente, assessorado por pessoas que desprezavam a Inteligência em favor do “achismo”.
Os que trabalham em Inteligência deveriam ler esse livro, fundamentalmente os que estão em funções de chefia.
Também é instigante saber como Richard Clarke, de sua posição privilegiada, descreve a CIA, o FBI e demais agências de Inteligência dos EUA, bem como a forma com que os receptores dos relatórios dessas agências encaram e utilizam – ou não utilizam – a Inteligência sobre terrorismo recebida. No livro, no entanto, há mais. Muito mais.
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Na noite do próprio dia 11 de setembro, em uma reunião de emergência no Salão Oval da Casa Branca, o Secretário Rumsfeld observou que a lei internacional permitia o uso de força somente para impedir futuros ataques e não em represália, “Não”, gritou o presidente. “Não me importa o que diz a lei internacional. Nós vamos botar para quebrar!”.
O presidente Bush já soubera que alguns dos terroristas eram militantes que a CIA sabia serem da Al Qaeda e que estavam nos EUA. Agora ele queria saber quando a CIA havia contado ao FBI e o que o FBI havia feito a respeito. As respostas foram imprecisas, mas ficou claro que a CIA tinha levado meses para contar ao FBI que os terroristas estavam no país. Quando o FBI soube, não conseguiu encontrá-los.
Eu esperava voltar para outra rodada de reuniões, examinando como poderiam ser os próximos ataques, quais eram nossas vulnerabilidades, o que poderíamos fazer com relação a isso em curto prazo. Em vez disso entrei em uma série de discussões sobre o Iraque. A princípio não acreditei que estávamos falando sobre outra coisa que não apanhar a Al Qaeda. Então percebi, com uma dor aguda quase física, que Rumsefeld e Wolfowitz iam tentar tirar proveito dessa tragédia nacional para promover seus planos em relação ao Iraque. Desde o início da administração, sem dúvida bem antes, eles vinham pressionando por uma guerra contra o Iraque. Meus amigos do Pentágono sempre me diziam que havia rumores de que invadiríamos o Iraque em algum momento em 2003.
Na manhã do dia 12 de setembro a CIA era explícita quanto a Al Qaeda ser culpada pelos ataques, mas Paul Wolfowitz, adjunto de Rumsfeld, não estava convencido. Era uma operação sofisticada e complicada demais, disse ele, para um grupo terrorista ter executado sozinho, sem o patrocínio de um país – o Iraque deveria ter dado ajuda a eles.
Tive um flash-back de Wolfowitz dizendo exatamente a mesma coisa em abril do ano anterior, quando a administração finalmente havia realizado sua primeira reunião em nível de secretariado sobre terrorismo. Na ocasião, quando insisti sobre uma ação contra a Al Qaeda, Wolfowitz retomou o assunto do ataque de 1993 ao World Trade Center, dizendo que a Al Qaeda não poderia ter feito aquilo sozinha e devia ter tido a ajuda do Iraque. O foco sobre a Al Qaeda estava errado, ele dissera em abril. “Nós precisamos é ir atrás do terrorismo patrocinado pelos iraquianos”. Ele havia rejeitado minha afirmação e a da CIA de que não havia terrorismo patrocinado pelo Iraque contra os EUA desde 1993.
Na tarde desse mesmo dia 12 de setembro, o secretário Rumsfeld estava falando sobre ampliar os objetivos de nossa reação e “apanhar o Iraque”. O secretário Powell recuou, insistindo num foco sobre a Al Qaeda. Aliviado por ter algum apoio, agradeci a Collin Powell e a seu adjunto, Rich Armitage. “Achei que não estava captando alguma coisa por aqui”, falei com raiva. “Tendo sido atacados pela Al Qaeda, bombardear o Iraque em represália seria a mesma coisa que invadirmos o México depois que os japoneses nos atacaram em Pearl Harbor”.
Powell balançou a cabeça: “A história não acabou”.
Sem dúvida, não mesmo. Nesse mesmo dia Rumsfeld disse que o Afeganistão não tinha alvos decentes para serem bombardeados e que deveríamos pensar em bombardear o Iraque que, disse ele, tinha alvos melhores. A princípio achei que Rumsfeld estivesse brincando. Mas ele estava sério e o presidente não rejeitou de imediato a idéia de atacar o Iraque.
À noite desse dia 12 de setembro, me deparei com o presidente, andando sozinho perto da Situation Room. Ele apanhou alguns de nós e fechou a porta da sala de conferências. “Vejam”, ele nos disse, “eu sei que vocês têm muita coisa para fazer e tudo o mais ... mas quero que vocês, o quanto antes, reexaminem tudo. Tudo mesmo. Chequem se Saddam fez isso. Se ele tem qualquer ligação com o atentado”.
Mais uma vez fiquei abismado, incrédulo: “Mas, senhor presidente, a Al Qaeda é quem fez isso”.
“Eu sei, eu sei, mas vejam se Saddam está envolvido. Dêem uma averiguada. Eu quero saber minúcias...”.
“Certamente daremos uma averiguada...de novo”. Eu estava tentando ser mais respeitoso, mais receptivo. “Mas, o senhor sabe, checamos várias vezes se a Al Qaeda tinha financiamento de algum país e não encontramos qualquer ligação real com o Iraque. O Irã tem um pequeno papel nisso, assim como o Paquistão, a Arábia Saudita, o Iêmen”.
“Examine o Iraque! Saddam!”, disse o presidente com irritação e foi embora.
No dia seguinte, em uma reunião oficial sobre o relacionamento entre o Iraque e a Al Qaeda, todas as agências e departamentos concordaram que não havia cooperação alguma entre os dois. Um memorando nesse sentido foi enviado ao presidente, mas nunca houve qualquer indicação de que tenha chegado até ele.
Era um período de nervosismo. Havia relatos claramente falsificados, de equipes de comando mirando a Casa Branca, e de bombas nucleares em Wall Street, mas muitas pessoas que agora liam documentos secretos nunca haviam visto essas coisas antes e não podiam distinguir o joio do trigo.
Nesses dias as discussões divagaram. O consenso, porém, era de que a luta contra a Al Qaeda e o Talebã seria o primeiro estágio de uma guerra mais ampla ao terrorismo. Ficou claro também que haveria um segundo estágio.
Pouco percebido pela maioria dos americanos, inclusive pelo seu governo, um novo movimento internacional começou a crescer durante as últimas décadas. Não busca o terror apenas por sua causa. O objetivo desse movimento internacional é a criação de uma rede de governos, impondo sobre seus cidadãos a interpretação da minoria do Islã. Alguns no movimento demandam que o escopo de sua campanha seja a dominação global. OCalifado que buscam criar seria uma teocracia severa e repressiva literalmente do Século XIV. Eles perseguem sua criação com horrível violência e medo.
Estava claro que a maior parte do financiamento à Al Qaeda vinha da caridade islâmica e de organizações não-governamentais. Os terroristas movimentavam o seu dinheiro clandestinamente. Foi assim que descobrimos a existência do sistema hawala, um antigo sistema clandestino que oferece transferências de dinheiro sem movimentação de dinheiro – e, teoricamente, nenhuma pista sobre a papelada.
A CIA sabia pouco sobre o sistema, mas estava aprendendo. O FBI sabia ainda menos e preferiu continuar sem saber. Quando pedi ao FBI que identificasse algumas hawalas nos EUA, eles me perguntaram: “O que é um wala?” E quando informados afirmaram que não existia nenhum. No entanto, fazendo uma busca na Internet foram encontrados diversos em Nova York. Apesar dos nossos repetidos pedidos, o FBI nunca soube responder questões básicas sobre o número, localização e atividades dos grandes hawalasnos EUA, quanto mais entrar em ação.
Uma coisa era certa: grande parte do dinheiro vinha da Arábia Saudita. Muitas instituições de caridade sauditas utilizadas pela Al Qaeda eram entidades quase-governamentais que o regime usava para espalhar sua versão do Islã pelo mundo. Nós decidimos que era necessária uma conversa séria com os sauditas e com algumas instituições financeiras da região.
Algumas agências do governo pareciam não gostar dessa nova estratégia que recomendamos. Alguns no Departamento de Estado não gostavam da idéia de ameaças com sanções, apesar da autoridade estar implícita na ordem executiva presidencial. Alguns no FBI não gostavam da idéia de as conversações com os sauditas sobre financiamento para o terrorismo estarem sendo discutidas fora de sua esfera de competência e sem a sua coordenação. Logo depois que informamos o FBI sobre a iniciativa, um vazamento chegou ao New York Times, quase forçando o cancelamento da viagem.
Outros membros da Inteligência também não gostaram dessa estratégia e, com ciúmes, guardaram “seus”contatos com o governo saudita. O jogo de Poder é um veneno comum em Washington. Houve ainda uma última tentativa de sabotagem por alguns da Diretoria de Operações da CIA: negar nossa permissão de uso para informação autorizada.
Até hoje não consigo entender porque os EUA não conseguiram encontrar um grupo competente de afegãos, americanos, ou outros, que encontrasse e matasse Bin Laden no Afeganistão. Alguns alegam que as autorizações para uso de força letal eram muito confusas e que o “pessoal de campo” não estava seguro dos limites da ação. Cada vez que uma objeção era levantada, uma nova autorização era redigida pelas agências envolvidas e aprovada pelo presidente. O presidente não queria abrir a Caixa de Pandora como fizeram os israelenses depois do massacre de Munique. Não queria criar uma política de assassinatos ou uma lista extensa de alvos, mas a intenção do presidente era clara: matar Bin Laden. Acredito que aqueles, na CIA, que argumentam que as autorizações eram confusas estavam na verdade tentando encobrir o fato de que foram pateticamente incompetentes em cumprir a missão.
Nos últimos cinco anos – ainda no governo Clinton – eu acreditei que a Al Qaeda estava nos EUA. Não tive muita sorte em convencer o FBI a ficar de orelhas em pé. Oficialmente, o FBI afirmou que tinha apenas alguns simpatizantes sob vigilância. Não havia células em atividade e nenhuma ameaça concreta. Muitos dos braços do FBI tinham outro foco. Os interesses em terrorismo internacional se concentravam na investigação do ataque às Torres de Khobar, na Arábia Saudita. A Divisão de Segurança Nacional, que controlava o grupo de antiterrorismo, tinha como focos principais a espionagem da Rússia e da China, o caso do americano Robert Hansen, que era espião dos russos, e o caso de Wen Ho Lee com uma possível espionagem nos nossos laboratórios nucleares.
Nos 56 escritórios regionais (exceto o de NY) a ênfase era no combate ao tráfico de drogas, crime organizado e outras questões que geravam prisões e processos judiciais. Os responsáveis por esses escritórios não tinham tempo para vigilância e infiltração em possíveis grupos radicais islâmicos. Para tirar a dúvida, viajei pelo país visitando escritórios do FBI. O que encontrei foi perturbador.
Em todos, os agentes responsáveis afirmavam que não havia atividades da Al Qaeda na região, mas quase não fizeram investigações. Em vez disso, acompanhavam qualquer organização terrorista que estivesse se fazendo notar. Em alguns casos era o IRA, em outros os Sikhs indianos e, em outros, milícias domésticas.
“Existe atividade da Al Qaeda na cidade?”, eu perguntava.
Quase sempre ouvia: “O que é Al Qaeda? É o tal de BinLadan? Ele não apareceu por aqui”.
Outra pergunta: “O que falam sobre a jihad nas mesquitas depois dos cultos? O que conversam? Para que arrecadam dinheiro?”
“O que é isso? Não podemos ir a uma mesquita ou até mesmo a uma igreja sem um motivo. Também não podemos infiltrar um agente”, era a reposta de costume. E acrescentavam: “Procuramos os promotores e não existe interesse em infrações menores por apoio ao terrorismo. E muito menos de um Procurador de Justiça, que tem o poder de conceder autorizações para uma investigação confidencial”. Ou seja, se não tivessem uma pista inicial não podiam entrar em uma mesquita ou acompanhar reuniões de estudantes. Não podiam bloquear páginas de organizações na Internet a não ser que suspeitassem de algum crime em andamento. Em algumas cidades, os agentes nem sequer tinham acesso à Internet.
Escutas telefônicas ficavam abandonadas meses a fio, pela falta de tradutores de árabe, persa ou afegão. Todas as traduções eram feitas na mesma cidade da escuta. Quando o FBI coletava alguma informação importante e a reportava a Washington, nenhum documento escrito era emitido. O único jeito de saber o que o FBI sabia era por telefone ou em reuniões. Quando o FBI era consultado sobre violações criminais por ajuda ao terrorismo, como criação de sites para arrecadar dinheiro ou outras formas de financiamento, não respondia.
Quando o FBI declarou que não havia sites americanos recrutando pessoas para a jihad ou para treinamento no Afeganistão, ou ainda arrecadando dinheiro para grupos em ação, pedi a Steve Emerson que checasse. Emerson era o autor do livro “Jihad Americano”, que havia me informado mais sobre grupos radicais islâmicos nos EUA do que o FBI. Em poucos dias, Emerson me enviou uma longa lista de sites hospedados em servidores dos EUA.
Para encorajar a cooperação CIA-FBI, depois de 40 anos de hostilidades, as duas organizações trocaram seus chefes no combate ao terrorismo. Dale Watson tinha ido para o FBI depois de chefiar por dois anos o Centro Antiterrorismo da CIA. Ele entendia do riscado.
Quando Dale Watson sentou-se comigo para fazer a revisão do plano Alerta do Milênio, disse: “Temos que demolir o FBI e reconstruí-lo sob a ótica antiterrorista. Estamos correndo atrás de assaltantes de bancos enquanto tem gente planejando matar americanos nos EUA”.
Tudo isso ainda no governo de Bill Clinton.
A guerra que os EUA travaram no Afeganistão não foi a operação rápida, livre e irrestrita que poderia ter sido esperada. Não enviamos de imediato forças americanas para capturar a liderança da Al Qaeda e do Talebã. O governo Bush decidiu continuar a pedir ao Telebã que entregasse Bin Laden e seus seguidores, e depois, quando atacamos, tratamos a guerra como uma mudança de regime, em vez de uma tarefa de busca e destruição de terroristas.
Mais de um mês depois de os EUA terem iniciado a operação militar, o líder do Talebã, mulá Omar, que ainda estava vivo e gozando de boa saúde, ordenou que as suas forças saíssem de Kabul e fossem para as montanhas. Nenhum soldado americano foi em perseguição a eles.
Diante das crescentes críticas de que o Pentágono estaria falhando na tarefa de capturar Bin Laden e a liderança da Al Qaeda, o secretário Rumsfeld declarou pouco antes do Natal que, no futuro, as forças americanas realizariam o trabalho, em vez de continuar a contar com os afegãos.
Em março de 2002, as forças terrestres dos EUA chegaram em uma única Unidade e, quase cinco meses depois, iniciaram o combate; começando a vasculhar as regiões montanhosas para capturar as forças da Al Qaeda. Embora a Operação Anaconda tenha enfrentado uma séria resistência, ela também não conseguiu capturar os líderes da Al Qaeda.
Dois anos depois de os EUA terem iniciado operações militares contra o Afeganistão, as forças americanas, os dirigentes da CIA e os afegãos pró-EUA, ainda não tinham encontrado o líder do Talebã, mulá Omar.
A CIA não tinha agido antes porque os gerentes de carreira de sua Diretoria de Operações eram avessos ao risco. Os riscos que eles procuravam evitar eram para eles, para a reputação da CIA e, acima de tudo, para a Ordem de Defesa (DO). Colocar o pessoal da CIA no Afeganistão poderia ter possibilitado que eles se tornassem prisioneiros da Al Qaeda, o que resultaria em uma embaraçosa publicidade. Ajudar a Aliança do Norte poderia ter feito os dirigentes da Ordem de Defesa ser arrastados diante de comissões de fiscalização do Congresso e terem de responder se o dinheiro tinha sido usado para o tráfico de heroína ou para o abuso dos prisioneiros do Talebã. A CIA já fora alvo de críticas quando equipes anteriores da Casa Branca a haviam envolvido na guerra civil do Líbano, na troca de armas por reféns no Irã, no apoio aos militares da América Latina que combatiam o comunismo e atropelavam os direitos humanos. A secretária Madeleine Allbrigth, refletindo sobre a história da CIA, disse-me que era fácil compreender o motivo pelo qual a agência era avessa ao risco: a CIA tem um comportamento passivo-agressivo, disse ela, como se sofresse da “síndrome da criança maltratada”.
Devido à falta de atenção e de recursos, o Afeganistão ainda é um santuário potencial para os terroristas.
O segundo país que necessita de uma significativa ajuda dos EUA para não cair nas mãos de grupos como a Al Qaeda é o Paquistão, que estava hesitante e dividido antes dos atentados de 11 de setembro. A Diretoria de Interserviços de Inteligência das Forças Armadas tinha fornecido armas, homens e informações ao Talebã. O pessoal da Divisão de Integração dos Sistemas de Informações (ISID) havia treinado terroristas da Caxemira nos campos da Al Qaeda e trabalhado com terroristas relacionados com a Al Qaeda para pressionar a Índia. A polícia e os serviços de segurança paquistaneses, por outro lado, tinham aprisionado membros da Al Qaeda que estavam a caminho do Afeganistão, somente quando recebiam informações específicas das autoridades americanas.
Até hoje Osama Bin Laden é uma figura popular no Paquistão. As mesquitas e escolas madrassas afiliadas no Paquistão ensinam o ódio aos EUA e a tudo que não é islâmico. Grandes áreas do Paquistão ao longo da fronteira com o Afeganistão ainda não são controladas pelo governo central e oferecem um santuário ao Talebã e à Al Qaeda. Tudo isso é verdade a respeito de um país que também possui armas nucleares.
Mais perturbador ainda são os relatos de que alguns cientistas que trabalharam no programa nuclear do Paquistão também são simpatizantes da Al Qaeda e discutiram o seu conhecimento com a Al Qaeda, a Líbia, o Irã, a Coréia do Norte e outros. Nada, e certamente não o Iraque pode ser mais importante do que impedir a Al Qaeda de pôr as mãos em uma arma nuclear.
Poucos assuntos exigem mais atenção e recursos do que o Paquistão. O Paquistão poderia se tornar aquilo com que Bin Laden sonha: uma nação islâmica que possui armas nucleares, é controlada por radicais e conta com o apoio popular ao fundamentalismo e ao terrorismo. Embora os EUA tenham aumentado em 2001 a ajuda ao Paquistão, ela é inadequada para fazer a diferença necessária, para inverter a tendência no Paquistão e devolver a estabilidade ao país. Em uma visita que fez aos EUA em 2003, o presidente, general Musharraf, se queixou que os EUA estavam lhe oferecendo recursos para a ajuda militar que ele não precisava e não estavam fornecendo o auxílio para o desenvolvimento econômico que ele desesperadamente necessitava.
A Arábia Saudita é a terceira nação prioritária. Durante vários anos, antes dos atentados de 11 de setembro, os EUA forneceram aos sauditas informações sobre membros da Al Qaeda no Reino. Essas informações pareciam desaparecer em uma caixa preta. O mesmo era verdade com relação aos pedidos dos EUA para que os sauditas investigassem o levantamento de fundos e a lavagem de dinheiro da Al Qaeda no Reino, ou o uso de instituições de caridade sauditas e de organizações não-governamentais por agentes da Al Qaeda. Uma maior cooperação teve lugar após os atentados de 11 de setembro, mas tentativas sauditas sérias e discerníveis de erradicar a Al Qaeda no Reino só pareceram começar depois que a Al Qaeda praticou ataques com caminhões-bomba em Ryad, em 2003. Qual o motivo da inércia, da relutância, da recusa?
Para que os americanos entendam a atitude do governo saudita nos últimos anos, talvez seja mais fácil explicá-la por analogia. Qual poderia ter sido a atitude de Washington se algum país afirmasse que a seita religiosa Opus Dei da Igreja Católica Apostólica Romana estaria envolvida com o terrorismo no mundo inteiro, que ela tinha que ser destruída e seus líderes assassinados ou aprisionados?
O governo saudita forneceu conscientemente recursos e apoio à Al Qaeda? Trata-se de um governo grande e rico que não é conhecido pela transparência ou auditorias rigorosas. Não creio que qualquer ministro ou membro importante da família real tenha apoiado os ataques aos EUA; na verdade, existem indícios que eles tentaram, sem êxito, controlar Bin Laden. Mas também é preciso ser dito que os ministros e os membros da família real apoiaram conscientemente a disseminação global do Islãwahhabista, dos jihad e de atividades antiisraelitas. Eles não tomaram conhecimento dos ensinamentos antiamericanos dentro e ao redor das mesquitas e escolas onde era pregada a intolerância. Eles substituíram nas escolas sauditas um currículo técnico ao estilo ocidental por um ensino wahhabista voltado para a religião. Uma vez que a família real e seu governo não eram os alvos óbvios, alguns sem dúvida fizeram vista grossa para muitas coisas que tornavam mais fácil a vida da Al Qaeda.
Depois dos ataques com caminhões-bomba em Ryad, em 2003, parece que os serviços de segurança sauditas receberam ordens para erradicar a Al Qaeda do Reino. Os especialistas norte-americanos de combate ao terrorismo não ficaram surpresos ao constatar que os serviços de segurança sauditas se envolveram em trocas de tiros e perseguições de rua. Eles descobriram grandes esconderijos de armas que não se destinavam ao jihadem outros lugares ou a ataques a instalações americanas no Reino, mas quase certamente à guerra de guerrilhas na Arábia Saudita, guerra essa que visava substituir a Casa de Saud.
A queda da Casa de Saud não representaria um choque para muitos antigos funcionários americanos que acompanharam o Oriente Médio durante anos. Há bastante tempo, muitos sabem, sem serem capazes de provar, que a Casa de Saud, sua força militar e seus serviços de segurança estejam infestados de cupins.
O futuro e a estabilidade da Arábia Saudita é de fundamental importância para os EUA; a nossa política não pode se limitar a reduzir nossa dependência daquele país. O governo americano deveria se envolver em vários níveis para desenvolver fontes de informação a respeito do que realmente está acontecendo dentro do Reino e criar os meios para influenciar o futuro da Nação. Em vez disso, o presidente Bush optou por fazer um discurso em Washington a respeito da importância da democracia para os países árabes. As palavras proferidas, por terem vindo de um presidente amplamente odiado no mundo árabe por ter invadido o Iraque e tentado impor naquele país uma democracia ao estilo americano, pouco fizeram para estimular uma reação positiva. Na verdade, como os EUA aparentemente acreditam ser capazes de impor a sua ideologia mediante a violência da guerra, muitas pessoas no mundo árabe se perguntam como os EUA podem criticar os fundamentalistas que também buscam impor sua ideologia por meio da violência.
O Irã, o quarto dos países prioritários, é tão importante quanto os outros na guerra contra o terrorismo. Os comentários do governo Bush de que o Iraque era uma Nação que apoiava o terrorismo, inclusive a Al Qaeda, e que estava desenvolvendo armas de destruição em massa, adequavam-se perfeitamente ao Irã. Foi Teerã que financiou e dirigiu o Hezbollah (organização muçulmana radical no Líbano) desde o início. Foi oHezbollah que matou centenas de americanos no Líbano (o quartel dos fuzileiros) e na Arábia Saudita (as Torres de Khobar). O Hezbollah, com apoio iraniano, também matou centenas de israelenses. A ramificação egípcia da Al Qaeda, O Jihad Egípcio Islâmico, operava abertamente em Teerã. Não é coincidência de que muitos membros da direção da Al Qaeda, ou Conselho de Shura, tenham atravessado a fronteira com o Irã depois que as forças americanas finalmente invadiram o Afeganistão.
Enquanto os inspetores da ONU (e posteriormente as tropas americanas) não conseguiram encontrar armas de destruição em massa no Iraque, a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU encontrou indícios de que o Irã estaria secretamente mais envolvido com o terrorismo do que o Iraque.
Existem forças democráticas fortes e ativas no Irã. Sem destruir a credibilidade dessas forças democráticas tornando-as agentes da CIA, os EUA, trabalhando em conjunto com outras nações, deveria ser capaz de fortalecer essas forças no Irã a ponto de elas poderem tomar o controle do equipamento de segurança dos defensores da ideologia. Não será uma tarefa fácil e exigirá a dedicação persistente das altas esferas americanas, dedicação essa semelhante à que está sendo oferecida ao Iraque.
Se não voltarmos a atenção para onde ela deveria ter estado depois dos atentados de 11 de setembro, enfrentaremos a possibilidade de ter diante de nós o seguinte cenário, por volta de 2007: um governo semelhante ao Talebã no Paquistão, armado com armas nucleares, apoiando o Afeganistão, uma Nação satélite vizinha semelhante, que promove uma ideologia como a da Al Qaeda e dissemina o terror no mundo; no Golfo, um Irã armado com armas nucleares, promovendo a sua versão de uma ideologia ao estilo do Hezbollah; e a Arábia Saudita, após a queda da Casa de Saud, criando também a sua versão de uma república teocrática do Século XIV. Nessas circunstâncias, mesmo que tivéssemos criado uma democracia “jeffersoniana” no Iraque, os EUA e o mundo ainda estariam muito menos seguros. Além disso, no início de 2004, parece que o Iraque está mais moldado pelas idéias do líder Shi’a Aiatolá do que pelas de Jefferson.
A nossa liderança caiu na armadilha, consumando os receios de numerosas pessoas, tanto dentro do país quando no mundo. Em vez de tentar cultivar um consenso global unificado para destruir as bases ideológicas do terrorismo, nós efetivamente efetuamos um grande ataque através de uma aventura militar amplamente unilateral e totalmente irrelevante contra uma Nação muçulmana. Exatamente como muitos países acharam que iríamos fazer, os EUA deliberadamente desconsideraram conselhos dos amigos árabes e dos aliados da OTAN e buscaram a segurança através do uso da força militar. Mas isso nos deixou menos seguros.
O consenso contra o terrorismo foi abalado por excessos como a prisão de cidadãos americanos nos EUA, e o fato de eles terem sido considerados “inimigos” que não teriam direito a advogados e a um processo justo. O Secretário de Justiça em vez de nos aproximar, conseguiu convencer grande parte do país de que as modificações necessárias na Lei Patriota eram na verdade o início do fascismo. Em vez de abordar de um modo sério e sistemático as verdadeiras vulnerabilidades na segurança do país, o governo sucumbiu a pressões políticas para organizar agências no meio da “guerracontra o terrorismo” e criou uma burocracia impossível de ser manejada. O governo financiou a aquisição com fins políticos de um armamento de alta tecnologia para pequenas cidades, enquanto policiais e bombeiros foram dispensados nas grandes cidades.
Os atentados de 11 de setembro apagaram as lembranças do processo singular através do qual George Bush tinha sido eleito meses antes. Agora, enquanto posava com um braço ao redor de um bombeiro de Nova York prometendo capturar os responsáveis pela destruição do World Trade Center, ele era o presidente de cada americano. O seu nome nas pesquisas de opinião ascendeu às alturas. Ele teve uma oportunidade única de unir o país, de aproximar os EUA de seus aliados ao redor do mundo para combater o terrorismo e o ódio, para eliminar a Al Qaeda, para acabar com as nossas vulnerabilidades, para fortalecer nações importantes ameaçadas pelo radicalismo. Ele não fez nada disso. Ele invadiu o Iraque.
Após os atentados de 11 de setembro não havia mais desculpas para que deixássemos de eliminar a ameaça representada pela Al Qaeda e seus clones, Em vez de tratar essa ameaça com a necessária atenção que ela exigia, saímos pela tangente, fomos atrás do Iraque, seguimos um caminho que nos enfraqueceu e fortaleceu a geração seguinte da Al Qaeda, porque enquanto tentávamos destruir a essência da organização Al Qaeda, ela sofria uma metástase. Foi como a Hidra de Lerna, fazendo nascer novas cabeças. Houve muito mais ataques terroristas importantes depois dos atentados de 11 de setembro do que nos trinta meses anteriores. Eu me pergunto se Bin Laden e seus substitutos não terão efetivamente feito planos para que os atentados de 11 de setembro fossem como o esmagar de uma vagem cheia de sementes que se espalhariam pelo mundo, permitindo que eles saíssem de cena para que as organizações regionais que criaram levassem para o nível seguinte a luta que duraria uma geração.
O presidente Bush nos pediu logo depois dos atentados de 11 de setembro a identidade ou quadros com a descrição dos “principais dirigentes da Al Qaeda”, como se lidar com eles fosse semelhante a um exercício da Harvard Business School em uma tomada hostil de poder. Ele anunciou suas intenções de avaliar o progresso na guerra contra o terrorismo examinando as fotos dos que fossem mortos ou feitos prisioneiros. Sou incomodado pela perturbadora imagem do presidente Bush sentado ao lado de uma aconchegante lareira na Casa Branca desenhando uma dúzia de X vermelhos no rosto do antigo Conselho Diretor da Al Qaeda, e logo a seguir talvez na face de Osama Bin Laden, enquanto os novos clones da Al Qaeda atuam nas ruas estreitas e escuras e nos prédios sombrios de Bagdá, Cairo, Jacarta, Karachi, Detroit e Newark, usando as cenas do Iraque para alimentar ainda mais o ódio aos EUA, recrutando milhares de pessoas cujos nomes nunca saberemos, cujos rostos nunca estarão nos pequenos quadros do presidente Bush.
A Nação precisava de uma liderança ponderada capaz de lidar com os problemas básicos refletidos pelos atentados de 11 de setembro: uma ideologia islâmica em ascensão, verdadeiras vulnerabilidades de segurança na civilização global altamente integrada. Em vez disso, os EUA obtiveram reações irrefletidas, respostas ineptas e uma rejeição da análise a favor da sabedoria recebida. Isso nos deixou menos seguros e pagaremos o preço durante muito tempo.
A ameaça imposta por terroristas que distorcem o Islã não é algo que possamos derrotar apenas com prisões e detenções. Nós precisamos trabalhar com nossos amigos muçulmanos para criar uma alternativa ativa para a perversão terrorista popular do Islã. Não é algo que possamos fazer no prazo de um ano ou de uma década. Não podemos sossegar, achando que estamos sendo bem sucedidos porque temos lidado com “a maioria dos líderes conhecidos da Al Qaeda”, ou porque nenhum ataque grande ocorreu nos últimos tempos. A Al Qaeda continua recrutando, auxiliada por nossa invasão e ocupação do Iraque. Enquanto o tempo corre, novos seguidores da Al Qaeda vão ganhando força em muitos países.
O tempo está passando e, no entanto, perduram as vulnerabilidades em nosso território.
Uma semana antes do 11 de setembro, escrevi eu que a presidência tinha que decidir se a Al Qaeda e sua rede eram apenas um incômodo para a grande superpotência ou se ela representava uma ameaça existencial; no caso da segunda alternativa, então teríamos que agir com a devida coerência. Apesar do 11 de setembro e de alguns ataques da rede da Al Qaeda ao redor do mundo desde então, a maioria dos norte-americanos e daqueles que estão no governo norte-americano ainda acham que a grande superpotência não pode ser derrotada por uma gangue de fanáticos religiosos que querem teocracia global, um Califado do Século XIV.
Nunca subestimem o inimigo. Nosso atual inimigo está numa empreitada de longo prazo. Eles são espertos e pacientes. Derrotá-los demandará criatividade e imaginação, assim como energia. Essa será a luta dos amigos da liberdade e das liberdades civis em todo o mundo.
O texto abaixo foi extraído do livro “Contra todos os Inimigos”, editora Francis, 2004, de autoria de Richard A. Clarke, ex-Coordenador Nacional para Segurança, Proteção de Infra-Estrutura e Antiterrorismo dos governos George Bush, Bill Clinton e George W. Bush. Richard Clarke foi o próprio gerente da crise, tendo dirigido os acontecimentos que se seguiram ao 11 de setembro de dentro do Situation Room, na Casa Branca. No livro ele narra seus esforços para chamar a atenção do presidente Bush para Osama Bin Laden e o perigo da Al Qaeda, assunto sobre o qual é especialista, e comenta, passo a passo, seu crescente desapontamento diante das desastrosas decisões do presidente, assessorado por pessoas que desprezavam a Inteligência em favor do “achismo”.
Os que trabalham em Inteligência deveriam ler esse livro, fundamentalmente os que estão em funções de chefia.
Também é instigante saber como Richard Clarke, de sua posição privilegiada, descreve a CIA, o FBI e demais agências de Inteligência dos EUA, bem como a forma com que os receptores dos relatórios dessas agências encaram e utilizam – ou não utilizam – a Inteligência sobre terrorismo recebida. No livro, no entanto, há mais. Muito mais.
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Na noite do próprio dia 11 de setembro, em uma reunião de emergência no Salão Oval da Casa Branca, o Secretário Rumsfeld observou que a lei internacional permitia o uso de força somente para impedir futuros ataques e não em represália, “Não”, gritou o presidente. “Não me importa o que diz a lei internacional. Nós vamos botar para quebrar!”.
O presidente Bush já soubera que alguns dos terroristas eram militantes que a CIA sabia serem da Al Qaeda e que estavam nos EUA. Agora ele queria saber quando a CIA havia contado ao FBI e o que o FBI havia feito a respeito. As respostas foram imprecisas, mas ficou claro que a CIA tinha levado meses para contar ao FBI que os terroristas estavam no país. Quando o FBI soube, não conseguiu encontrá-los.
Eu esperava voltar para outra rodada de reuniões, examinando como poderiam ser os próximos ataques, quais eram nossas vulnerabilidades, o que poderíamos fazer com relação a isso em curto prazo. Em vez disso entrei em uma série de discussões sobre o Iraque. A princípio não acreditei que estávamos falando sobre outra coisa que não apanhar a Al Qaeda. Então percebi, com uma dor aguda quase física, que Rumsefeld e Wolfowitz iam tentar tirar proveito dessa tragédia nacional para promover seus planos em relação ao Iraque. Desde o início da administração, sem dúvida bem antes, eles vinham pressionando por uma guerra contra o Iraque. Meus amigos do Pentágono sempre me diziam que havia rumores de que invadiríamos o Iraque em algum momento em 2003.
Na manhã do dia 12 de setembro a CIA era explícita quanto a Al Qaeda ser culpada pelos ataques, mas Paul Wolfowitz, adjunto de Rumsfeld, não estava convencido. Era uma operação sofisticada e complicada demais, disse ele, para um grupo terrorista ter executado sozinho, sem o patrocínio de um país – o Iraque deveria ter dado ajuda a eles.
Tive um flash-back de Wolfowitz dizendo exatamente a mesma coisa em abril do ano anterior, quando a administração finalmente havia realizado sua primeira reunião em nível de secretariado sobre terrorismo. Na ocasião, quando insisti sobre uma ação contra a Al Qaeda, Wolfowitz retomou o assunto do ataque de 1993 ao World Trade Center, dizendo que a Al Qaeda não poderia ter feito aquilo sozinha e devia ter tido a ajuda do Iraque. O foco sobre a Al Qaeda estava errado, ele dissera em abril. “Nós precisamos é ir atrás do terrorismo patrocinado pelos iraquianos”. Ele havia rejeitado minha afirmação e a da CIA de que não havia terrorismo patrocinado pelo Iraque contra os EUA desde 1993.
Na tarde desse mesmo dia 12 de setembro, o secretário Rumsfeld estava falando sobre ampliar os objetivos de nossa reação e “apanhar o Iraque”. O secretário Powell recuou, insistindo num foco sobre a Al Qaeda. Aliviado por ter algum apoio, agradeci a Collin Powell e a seu adjunto, Rich Armitage. “Achei que não estava captando alguma coisa por aqui”, falei com raiva. “Tendo sido atacados pela Al Qaeda, bombardear o Iraque em represália seria a mesma coisa que invadirmos o México depois que os japoneses nos atacaram em Pearl Harbor”.
Powell balançou a cabeça: “A história não acabou”.
Sem dúvida, não mesmo. Nesse mesmo dia Rumsfeld disse que o Afeganistão não tinha alvos decentes para serem bombardeados e que deveríamos pensar em bombardear o Iraque que, disse ele, tinha alvos melhores. A princípio achei que Rumsfeld estivesse brincando. Mas ele estava sério e o presidente não rejeitou de imediato a idéia de atacar o Iraque.
À noite desse dia 12 de setembro, me deparei com o presidente, andando sozinho perto da Situation Room. Ele apanhou alguns de nós e fechou a porta da sala de conferências. “Vejam”, ele nos disse, “eu sei que vocês têm muita coisa para fazer e tudo o mais ... mas quero que vocês, o quanto antes, reexaminem tudo. Tudo mesmo. Chequem se Saddam fez isso. Se ele tem qualquer ligação com o atentado”.
Mais uma vez fiquei abismado, incrédulo: “Mas, senhor presidente, a Al Qaeda é quem fez isso”.
“Eu sei, eu sei, mas vejam se Saddam está envolvido. Dêem uma averiguada. Eu quero saber minúcias...”.
“Certamente daremos uma averiguada...de novo”. Eu estava tentando ser mais respeitoso, mais receptivo. “Mas, o senhor sabe, checamos várias vezes se a Al Qaeda tinha financiamento de algum país e não encontramos qualquer ligação real com o Iraque. O Irã tem um pequeno papel nisso, assim como o Paquistão, a Arábia Saudita, o Iêmen”.
“Examine o Iraque! Saddam!”, disse o presidente com irritação e foi embora.
No dia seguinte, em uma reunião oficial sobre o relacionamento entre o Iraque e a Al Qaeda, todas as agências e departamentos concordaram que não havia cooperação alguma entre os dois. Um memorando nesse sentido foi enviado ao presidente, mas nunca houve qualquer indicação de que tenha chegado até ele.
Era um período de nervosismo. Havia relatos claramente falsificados, de equipes de comando mirando a Casa Branca, e de bombas nucleares em Wall Street, mas muitas pessoas que agora liam documentos secretos nunca haviam visto essas coisas antes e não podiam distinguir o joio do trigo.
Nesses dias as discussões divagaram. O consenso, porém, era de que a luta contra a Al Qaeda e o Talebã seria o primeiro estágio de uma guerra mais ampla ao terrorismo. Ficou claro também que haveria um segundo estágio.
Pouco percebido pela maioria dos americanos, inclusive pelo seu governo, um novo movimento internacional começou a crescer durante as últimas décadas. Não busca o terror apenas por sua causa. O objetivo desse movimento internacional é a criação de uma rede de governos, impondo sobre seus cidadãos a interpretação da minoria do Islã. Alguns no movimento demandam que o escopo de sua campanha seja a dominação global. OCalifado que buscam criar seria uma teocracia severa e repressiva literalmente do Século XIV. Eles perseguem sua criação com horrível violência e medo.
Estava claro que a maior parte do financiamento à Al Qaeda vinha da caridade islâmica e de organizações não-governamentais. Os terroristas movimentavam o seu dinheiro clandestinamente. Foi assim que descobrimos a existência do sistema hawala, um antigo sistema clandestino que oferece transferências de dinheiro sem movimentação de dinheiro – e, teoricamente, nenhuma pista sobre a papelada.
A CIA sabia pouco sobre o sistema, mas estava aprendendo. O FBI sabia ainda menos e preferiu continuar sem saber. Quando pedi ao FBI que identificasse algumas hawalas nos EUA, eles me perguntaram: “O que é um wala?” E quando informados afirmaram que não existia nenhum. No entanto, fazendo uma busca na Internet foram encontrados diversos em Nova York. Apesar dos nossos repetidos pedidos, o FBI nunca soube responder questões básicas sobre o número, localização e atividades dos grandes hawalasnos EUA, quanto mais entrar em ação.
Uma coisa era certa: grande parte do dinheiro vinha da Arábia Saudita. Muitas instituições de caridade sauditas utilizadas pela Al Qaeda eram entidades quase-governamentais que o regime usava para espalhar sua versão do Islã pelo mundo. Nós decidimos que era necessária uma conversa séria com os sauditas e com algumas instituições financeiras da região.
Algumas agências do governo pareciam não gostar dessa nova estratégia que recomendamos. Alguns no Departamento de Estado não gostavam da idéia de ameaças com sanções, apesar da autoridade estar implícita na ordem executiva presidencial. Alguns no FBI não gostavam da idéia de as conversações com os sauditas sobre financiamento para o terrorismo estarem sendo discutidas fora de sua esfera de competência e sem a sua coordenação. Logo depois que informamos o FBI sobre a iniciativa, um vazamento chegou ao New York Times, quase forçando o cancelamento da viagem.
Outros membros da Inteligência também não gostaram dessa estratégia e, com ciúmes, guardaram “seus”contatos com o governo saudita. O jogo de Poder é um veneno comum em Washington. Houve ainda uma última tentativa de sabotagem por alguns da Diretoria de Operações da CIA: negar nossa permissão de uso para informação autorizada.
Até hoje não consigo entender porque os EUA não conseguiram encontrar um grupo competente de afegãos, americanos, ou outros, que encontrasse e matasse Bin Laden no Afeganistão. Alguns alegam que as autorizações para uso de força letal eram muito confusas e que o “pessoal de campo” não estava seguro dos limites da ação. Cada vez que uma objeção era levantada, uma nova autorização era redigida pelas agências envolvidas e aprovada pelo presidente. O presidente não queria abrir a Caixa de Pandora como fizeram os israelenses depois do massacre de Munique. Não queria criar uma política de assassinatos ou uma lista extensa de alvos, mas a intenção do presidente era clara: matar Bin Laden. Acredito que aqueles, na CIA, que argumentam que as autorizações eram confusas estavam na verdade tentando encobrir o fato de que foram pateticamente incompetentes em cumprir a missão.
Nos últimos cinco anos – ainda no governo Clinton – eu acreditei que a Al Qaeda estava nos EUA. Não tive muita sorte em convencer o FBI a ficar de orelhas em pé. Oficialmente, o FBI afirmou que tinha apenas alguns simpatizantes sob vigilância. Não havia células em atividade e nenhuma ameaça concreta. Muitos dos braços do FBI tinham outro foco. Os interesses em terrorismo internacional se concentravam na investigação do ataque às Torres de Khobar, na Arábia Saudita. A Divisão de Segurança Nacional, que controlava o grupo de antiterrorismo, tinha como focos principais a espionagem da Rússia e da China, o caso do americano Robert Hansen, que era espião dos russos, e o caso de Wen Ho Lee com uma possível espionagem nos nossos laboratórios nucleares.
Nos 56 escritórios regionais (exceto o de NY) a ênfase era no combate ao tráfico de drogas, crime organizado e outras questões que geravam prisões e processos judiciais. Os responsáveis por esses escritórios não tinham tempo para vigilância e infiltração em possíveis grupos radicais islâmicos. Para tirar a dúvida, viajei pelo país visitando escritórios do FBI. O que encontrei foi perturbador.
Em todos, os agentes responsáveis afirmavam que não havia atividades da Al Qaeda na região, mas quase não fizeram investigações. Em vez disso, acompanhavam qualquer organização terrorista que estivesse se fazendo notar. Em alguns casos era o IRA, em outros os Sikhs indianos e, em outros, milícias domésticas.
“Existe atividade da Al Qaeda na cidade?”, eu perguntava.
Quase sempre ouvia: “O que é Al Qaeda? É o tal de BinLadan? Ele não apareceu por aqui”.
Outra pergunta: “O que falam sobre a jihad nas mesquitas depois dos cultos? O que conversam? Para que arrecadam dinheiro?”
“O que é isso? Não podemos ir a uma mesquita ou até mesmo a uma igreja sem um motivo. Também não podemos infiltrar um agente”, era a reposta de costume. E acrescentavam: “Procuramos os promotores e não existe interesse em infrações menores por apoio ao terrorismo. E muito menos de um Procurador de Justiça, que tem o poder de conceder autorizações para uma investigação confidencial”. Ou seja, se não tivessem uma pista inicial não podiam entrar em uma mesquita ou acompanhar reuniões de estudantes. Não podiam bloquear páginas de organizações na Internet a não ser que suspeitassem de algum crime em andamento. Em algumas cidades, os agentes nem sequer tinham acesso à Internet.
Escutas telefônicas ficavam abandonadas meses a fio, pela falta de tradutores de árabe, persa ou afegão. Todas as traduções eram feitas na mesma cidade da escuta. Quando o FBI coletava alguma informação importante e a reportava a Washington, nenhum documento escrito era emitido. O único jeito de saber o que o FBI sabia era por telefone ou em reuniões. Quando o FBI era consultado sobre violações criminais por ajuda ao terrorismo, como criação de sites para arrecadar dinheiro ou outras formas de financiamento, não respondia.
Quando o FBI declarou que não havia sites americanos recrutando pessoas para a jihad ou para treinamento no Afeganistão, ou ainda arrecadando dinheiro para grupos em ação, pedi a Steve Emerson que checasse. Emerson era o autor do livro “Jihad Americano”, que havia me informado mais sobre grupos radicais islâmicos nos EUA do que o FBI. Em poucos dias, Emerson me enviou uma longa lista de sites hospedados em servidores dos EUA.
Para encorajar a cooperação CIA-FBI, depois de 40 anos de hostilidades, as duas organizações trocaram seus chefes no combate ao terrorismo. Dale Watson tinha ido para o FBI depois de chefiar por dois anos o Centro Antiterrorismo da CIA. Ele entendia do riscado.
Quando Dale Watson sentou-se comigo para fazer a revisão do plano Alerta do Milênio, disse: “Temos que demolir o FBI e reconstruí-lo sob a ótica antiterrorista. Estamos correndo atrás de assaltantes de bancos enquanto tem gente planejando matar americanos nos EUA”.
Tudo isso ainda no governo de Bill Clinton.
A guerra que os EUA travaram no Afeganistão não foi a operação rápida, livre e irrestrita que poderia ter sido esperada. Não enviamos de imediato forças americanas para capturar a liderança da Al Qaeda e do Talebã. O governo Bush decidiu continuar a pedir ao Telebã que entregasse Bin Laden e seus seguidores, e depois, quando atacamos, tratamos a guerra como uma mudança de regime, em vez de uma tarefa de busca e destruição de terroristas.
Mais de um mês depois de os EUA terem iniciado a operação militar, o líder do Talebã, mulá Omar, que ainda estava vivo e gozando de boa saúde, ordenou que as suas forças saíssem de Kabul e fossem para as montanhas. Nenhum soldado americano foi em perseguição a eles.
Diante das crescentes críticas de que o Pentágono estaria falhando na tarefa de capturar Bin Laden e a liderança da Al Qaeda, o secretário Rumsfeld declarou pouco antes do Natal que, no futuro, as forças americanas realizariam o trabalho, em vez de continuar a contar com os afegãos.
Em março de 2002, as forças terrestres dos EUA chegaram em uma única Unidade e, quase cinco meses depois, iniciaram o combate; começando a vasculhar as regiões montanhosas para capturar as forças da Al Qaeda. Embora a Operação Anaconda tenha enfrentado uma séria resistência, ela também não conseguiu capturar os líderes da Al Qaeda.
Dois anos depois de os EUA terem iniciado operações militares contra o Afeganistão, as forças americanas, os dirigentes da CIA e os afegãos pró-EUA, ainda não tinham encontrado o líder do Talebã, mulá Omar.
A CIA não tinha agido antes porque os gerentes de carreira de sua Diretoria de Operações eram avessos ao risco. Os riscos que eles procuravam evitar eram para eles, para a reputação da CIA e, acima de tudo, para a Ordem de Defesa (DO). Colocar o pessoal da CIA no Afeganistão poderia ter possibilitado que eles se tornassem prisioneiros da Al Qaeda, o que resultaria em uma embaraçosa publicidade. Ajudar a Aliança do Norte poderia ter feito os dirigentes da Ordem de Defesa ser arrastados diante de comissões de fiscalização do Congresso e terem de responder se o dinheiro tinha sido usado para o tráfico de heroína ou para o abuso dos prisioneiros do Talebã. A CIA já fora alvo de críticas quando equipes anteriores da Casa Branca a haviam envolvido na guerra civil do Líbano, na troca de armas por reféns no Irã, no apoio aos militares da América Latina que combatiam o comunismo e atropelavam os direitos humanos. A secretária Madeleine Allbrigth, refletindo sobre a história da CIA, disse-me que era fácil compreender o motivo pelo qual a agência era avessa ao risco: a CIA tem um comportamento passivo-agressivo, disse ela, como se sofresse da “síndrome da criança maltratada”.
Devido à falta de atenção e de recursos, o Afeganistão ainda é um santuário potencial para os terroristas.
O segundo país que necessita de uma significativa ajuda dos EUA para não cair nas mãos de grupos como a Al Qaeda é o Paquistão, que estava hesitante e dividido antes dos atentados de 11 de setembro. A Diretoria de Interserviços de Inteligência das Forças Armadas tinha fornecido armas, homens e informações ao Talebã. O pessoal da Divisão de Integração dos Sistemas de Informações (ISID) havia treinado terroristas da Caxemira nos campos da Al Qaeda e trabalhado com terroristas relacionados com a Al Qaeda para pressionar a Índia. A polícia e os serviços de segurança paquistaneses, por outro lado, tinham aprisionado membros da Al Qaeda que estavam a caminho do Afeganistão, somente quando recebiam informações específicas das autoridades americanas.
Até hoje Osama Bin Laden é uma figura popular no Paquistão. As mesquitas e escolas madrassas afiliadas no Paquistão ensinam o ódio aos EUA e a tudo que não é islâmico. Grandes áreas do Paquistão ao longo da fronteira com o Afeganistão ainda não são controladas pelo governo central e oferecem um santuário ao Talebã e à Al Qaeda. Tudo isso é verdade a respeito de um país que também possui armas nucleares.
Mais perturbador ainda são os relatos de que alguns cientistas que trabalharam no programa nuclear do Paquistão também são simpatizantes da Al Qaeda e discutiram o seu conhecimento com a Al Qaeda, a Líbia, o Irã, a Coréia do Norte e outros. Nada, e certamente não o Iraque pode ser mais importante do que impedir a Al Qaeda de pôr as mãos em uma arma nuclear.
Poucos assuntos exigem mais atenção e recursos do que o Paquistão. O Paquistão poderia se tornar aquilo com que Bin Laden sonha: uma nação islâmica que possui armas nucleares, é controlada por radicais e conta com o apoio popular ao fundamentalismo e ao terrorismo. Embora os EUA tenham aumentado em 2001 a ajuda ao Paquistão, ela é inadequada para fazer a diferença necessária, para inverter a tendência no Paquistão e devolver a estabilidade ao país. Em uma visita que fez aos EUA em 2003, o presidente, general Musharraf, se queixou que os EUA estavam lhe oferecendo recursos para a ajuda militar que ele não precisava e não estavam fornecendo o auxílio para o desenvolvimento econômico que ele desesperadamente necessitava.
A Arábia Saudita é a terceira nação prioritária. Durante vários anos, antes dos atentados de 11 de setembro, os EUA forneceram aos sauditas informações sobre membros da Al Qaeda no Reino. Essas informações pareciam desaparecer em uma caixa preta. O mesmo era verdade com relação aos pedidos dos EUA para que os sauditas investigassem o levantamento de fundos e a lavagem de dinheiro da Al Qaeda no Reino, ou o uso de instituições de caridade sauditas e de organizações não-governamentais por agentes da Al Qaeda. Uma maior cooperação teve lugar após os atentados de 11 de setembro, mas tentativas sauditas sérias e discerníveis de erradicar a Al Qaeda no Reino só pareceram começar depois que a Al Qaeda praticou ataques com caminhões-bomba em Ryad, em 2003. Qual o motivo da inércia, da relutância, da recusa?
Para que os americanos entendam a atitude do governo saudita nos últimos anos, talvez seja mais fácil explicá-la por analogia. Qual poderia ter sido a atitude de Washington se algum país afirmasse que a seita religiosa Opus Dei da Igreja Católica Apostólica Romana estaria envolvida com o terrorismo no mundo inteiro, que ela tinha que ser destruída e seus líderes assassinados ou aprisionados?
O governo saudita forneceu conscientemente recursos e apoio à Al Qaeda? Trata-se de um governo grande e rico que não é conhecido pela transparência ou auditorias rigorosas. Não creio que qualquer ministro ou membro importante da família real tenha apoiado os ataques aos EUA; na verdade, existem indícios que eles tentaram, sem êxito, controlar Bin Laden. Mas também é preciso ser dito que os ministros e os membros da família real apoiaram conscientemente a disseminação global do Islãwahhabista, dos jihad e de atividades antiisraelitas. Eles não tomaram conhecimento dos ensinamentos antiamericanos dentro e ao redor das mesquitas e escolas onde era pregada a intolerância. Eles substituíram nas escolas sauditas um currículo técnico ao estilo ocidental por um ensino wahhabista voltado para a religião. Uma vez que a família real e seu governo não eram os alvos óbvios, alguns sem dúvida fizeram vista grossa para muitas coisas que tornavam mais fácil a vida da Al Qaeda.
Depois dos ataques com caminhões-bomba em Ryad, em 2003, parece que os serviços de segurança sauditas receberam ordens para erradicar a Al Qaeda do Reino. Os especialistas norte-americanos de combate ao terrorismo não ficaram surpresos ao constatar que os serviços de segurança sauditas se envolveram em trocas de tiros e perseguições de rua. Eles descobriram grandes esconderijos de armas que não se destinavam ao jihadem outros lugares ou a ataques a instalações americanas no Reino, mas quase certamente à guerra de guerrilhas na Arábia Saudita, guerra essa que visava substituir a Casa de Saud.
A queda da Casa de Saud não representaria um choque para muitos antigos funcionários americanos que acompanharam o Oriente Médio durante anos. Há bastante tempo, muitos sabem, sem serem capazes de provar, que a Casa de Saud, sua força militar e seus serviços de segurança estejam infestados de cupins.
O futuro e a estabilidade da Arábia Saudita é de fundamental importância para os EUA; a nossa política não pode se limitar a reduzir nossa dependência daquele país. O governo americano deveria se envolver em vários níveis para desenvolver fontes de informação a respeito do que realmente está acontecendo dentro do Reino e criar os meios para influenciar o futuro da Nação. Em vez disso, o presidente Bush optou por fazer um discurso em Washington a respeito da importância da democracia para os países árabes. As palavras proferidas, por terem vindo de um presidente amplamente odiado no mundo árabe por ter invadido o Iraque e tentado impor naquele país uma democracia ao estilo americano, pouco fizeram para estimular uma reação positiva. Na verdade, como os EUA aparentemente acreditam ser capazes de impor a sua ideologia mediante a violência da guerra, muitas pessoas no mundo árabe se perguntam como os EUA podem criticar os fundamentalistas que também buscam impor sua ideologia por meio da violência.
O Irã, o quarto dos países prioritários, é tão importante quanto os outros na guerra contra o terrorismo. Os comentários do governo Bush de que o Iraque era uma Nação que apoiava o terrorismo, inclusive a Al Qaeda, e que estava desenvolvendo armas de destruição em massa, adequavam-se perfeitamente ao Irã. Foi Teerã que financiou e dirigiu o Hezbollah (organização muçulmana radical no Líbano) desde o início. Foi oHezbollah que matou centenas de americanos no Líbano (o quartel dos fuzileiros) e na Arábia Saudita (as Torres de Khobar). O Hezbollah, com apoio iraniano, também matou centenas de israelenses. A ramificação egípcia da Al Qaeda, O Jihad Egípcio Islâmico, operava abertamente em Teerã. Não é coincidência de que muitos membros da direção da Al Qaeda, ou Conselho de Shura, tenham atravessado a fronteira com o Irã depois que as forças americanas finalmente invadiram o Afeganistão.
Enquanto os inspetores da ONU (e posteriormente as tropas americanas) não conseguiram encontrar armas de destruição em massa no Iraque, a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU encontrou indícios de que o Irã estaria secretamente mais envolvido com o terrorismo do que o Iraque.
Existem forças democráticas fortes e ativas no Irã. Sem destruir a credibilidade dessas forças democráticas tornando-as agentes da CIA, os EUA, trabalhando em conjunto com outras nações, deveria ser capaz de fortalecer essas forças no Irã a ponto de elas poderem tomar o controle do equipamento de segurança dos defensores da ideologia. Não será uma tarefa fácil e exigirá a dedicação persistente das altas esferas americanas, dedicação essa semelhante à que está sendo oferecida ao Iraque.
Se não voltarmos a atenção para onde ela deveria ter estado depois dos atentados de 11 de setembro, enfrentaremos a possibilidade de ter diante de nós o seguinte cenário, por volta de 2007: um governo semelhante ao Talebã no Paquistão, armado com armas nucleares, apoiando o Afeganistão, uma Nação satélite vizinha semelhante, que promove uma ideologia como a da Al Qaeda e dissemina o terror no mundo; no Golfo, um Irã armado com armas nucleares, promovendo a sua versão de uma ideologia ao estilo do Hezbollah; e a Arábia Saudita, após a queda da Casa de Saud, criando também a sua versão de uma república teocrática do Século XIV. Nessas circunstâncias, mesmo que tivéssemos criado uma democracia “jeffersoniana” no Iraque, os EUA e o mundo ainda estariam muito menos seguros. Além disso, no início de 2004, parece que o Iraque está mais moldado pelas idéias do líder Shi’a Aiatolá do que pelas de Jefferson.
A nossa liderança caiu na armadilha, consumando os receios de numerosas pessoas, tanto dentro do país quando no mundo. Em vez de tentar cultivar um consenso global unificado para destruir as bases ideológicas do terrorismo, nós efetivamente efetuamos um grande ataque através de uma aventura militar amplamente unilateral e totalmente irrelevante contra uma Nação muçulmana. Exatamente como muitos países acharam que iríamos fazer, os EUA deliberadamente desconsideraram conselhos dos amigos árabes e dos aliados da OTAN e buscaram a segurança através do uso da força militar. Mas isso nos deixou menos seguros.
O consenso contra o terrorismo foi abalado por excessos como a prisão de cidadãos americanos nos EUA, e o fato de eles terem sido considerados “inimigos” que não teriam direito a advogados e a um processo justo. O Secretário de Justiça em vez de nos aproximar, conseguiu convencer grande parte do país de que as modificações necessárias na Lei Patriota eram na verdade o início do fascismo. Em vez de abordar de um modo sério e sistemático as verdadeiras vulnerabilidades na segurança do país, o governo sucumbiu a pressões políticas para organizar agências no meio da “guerracontra o terrorismo” e criou uma burocracia impossível de ser manejada. O governo financiou a aquisição com fins políticos de um armamento de alta tecnologia para pequenas cidades, enquanto policiais e bombeiros foram dispensados nas grandes cidades.
Os atentados de 11 de setembro apagaram as lembranças do processo singular através do qual George Bush tinha sido eleito meses antes. Agora, enquanto posava com um braço ao redor de um bombeiro de Nova York prometendo capturar os responsáveis pela destruição do World Trade Center, ele era o presidente de cada americano. O seu nome nas pesquisas de opinião ascendeu às alturas. Ele teve uma oportunidade única de unir o país, de aproximar os EUA de seus aliados ao redor do mundo para combater o terrorismo e o ódio, para eliminar a Al Qaeda, para acabar com as nossas vulnerabilidades, para fortalecer nações importantes ameaçadas pelo radicalismo. Ele não fez nada disso. Ele invadiu o Iraque.
Após os atentados de 11 de setembro não havia mais desculpas para que deixássemos de eliminar a ameaça representada pela Al Qaeda e seus clones, Em vez de tratar essa ameaça com a necessária atenção que ela exigia, saímos pela tangente, fomos atrás do Iraque, seguimos um caminho que nos enfraqueceu e fortaleceu a geração seguinte da Al Qaeda, porque enquanto tentávamos destruir a essência da organização Al Qaeda, ela sofria uma metástase. Foi como a Hidra de Lerna, fazendo nascer novas cabeças. Houve muito mais ataques terroristas importantes depois dos atentados de 11 de setembro do que nos trinta meses anteriores. Eu me pergunto se Bin Laden e seus substitutos não terão efetivamente feito planos para que os atentados de 11 de setembro fossem como o esmagar de uma vagem cheia de sementes que se espalhariam pelo mundo, permitindo que eles saíssem de cena para que as organizações regionais que criaram levassem para o nível seguinte a luta que duraria uma geração.
O presidente Bush nos pediu logo depois dos atentados de 11 de setembro a identidade ou quadros com a descrição dos “principais dirigentes da Al Qaeda”, como se lidar com eles fosse semelhante a um exercício da Harvard Business School em uma tomada hostil de poder. Ele anunciou suas intenções de avaliar o progresso na guerra contra o terrorismo examinando as fotos dos que fossem mortos ou feitos prisioneiros. Sou incomodado pela perturbadora imagem do presidente Bush sentado ao lado de uma aconchegante lareira na Casa Branca desenhando uma dúzia de X vermelhos no rosto do antigo Conselho Diretor da Al Qaeda, e logo a seguir talvez na face de Osama Bin Laden, enquanto os novos clones da Al Qaeda atuam nas ruas estreitas e escuras e nos prédios sombrios de Bagdá, Cairo, Jacarta, Karachi, Detroit e Newark, usando as cenas do Iraque para alimentar ainda mais o ódio aos EUA, recrutando milhares de pessoas cujos nomes nunca saberemos, cujos rostos nunca estarão nos pequenos quadros do presidente Bush.
A Nação precisava de uma liderança ponderada capaz de lidar com os problemas básicos refletidos pelos atentados de 11 de setembro: uma ideologia islâmica em ascensão, verdadeiras vulnerabilidades de segurança na civilização global altamente integrada. Em vez disso, os EUA obtiveram reações irrefletidas, respostas ineptas e uma rejeição da análise a favor da sabedoria recebida. Isso nos deixou menos seguros e pagaremos o preço durante muito tempo.
A ameaça imposta por terroristas que distorcem o Islã não é algo que possamos derrotar apenas com prisões e detenções. Nós precisamos trabalhar com nossos amigos muçulmanos para criar uma alternativa ativa para a perversão terrorista popular do Islã. Não é algo que possamos fazer no prazo de um ano ou de uma década. Não podemos sossegar, achando que estamos sendo bem sucedidos porque temos lidado com “a maioria dos líderes conhecidos da Al Qaeda”, ou porque nenhum ataque grande ocorreu nos últimos tempos. A Al Qaeda continua recrutando, auxiliada por nossa invasão e ocupação do Iraque. Enquanto o tempo corre, novos seguidores da Al Qaeda vão ganhando força em muitos países.
O tempo está passando e, no entanto, perduram as vulnerabilidades em nosso território.
Uma semana antes do 11 de setembro, escrevi eu que a presidência tinha que decidir se a Al Qaeda e sua rede eram apenas um incômodo para a grande superpotência ou se ela representava uma ameaça existencial; no caso da segunda alternativa, então teríamos que agir com a devida coerência. Apesar do 11 de setembro e de alguns ataques da rede da Al Qaeda ao redor do mundo desde então, a maioria dos norte-americanos e daqueles que estão no governo norte-americano ainda acham que a grande superpotência não pode ser derrotada por uma gangue de fanáticos religiosos que querem teocracia global, um Califado do Século XIV.
Nunca subestimem o inimigo. Nosso atual inimigo está numa empreitada de longo prazo. Eles são espertos e pacientes. Derrotá-los demandará criatividade e imaginação, assim como energia. Essa será a luta dos amigos da liberdade e das liberdades civis em todo o mundo.
Carlos I.S. Azambuja é Historiador.
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