"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 9 de agosto de 2014

POR DENTRO DO JIHAD ( 1 )



 
Entre 1994 e 2000, Omar Nasiri trabalhou como agente secreto para os principais serviços externos de Inteligência da Europa - incluindo a DGSE (Direction Genérale de la Securité Exterieure), da França, e o MI5 e MI6, da Grã-bretanha. Do submundo das células islâmicas da Bélgica até os campos de treinamento do Afeganistão e as mesquitas radicais de Londres, ele arriscou a vida para derrotar a emergente rede global que o Ocidente viria a conhecer como Al-Qaeda.

Agora, pela primeira vez, em um livro editado pela Editora Record - "Por dentro do Jihad" - (1), Nasiri compartilha a história de sua vida - precariamente equilibrada entre o mundo dos jihadistasislâmicos e dos espiões que os perseguem. Como árabe e muçulmano, ele pôde infiltrar-se nos rigidamente controlados campos de treinamento afegãos, onde encontrou homens que mais tarde se tornariam os terroristas mais procurados da Terra: Ibn al-Sheikh al-Libi, Abu Zubayda e Abukhabab al-Masri. Enviado de volta à Europa, Nasiri tornou-se um intermediário de mensagens trocas entre o recrutador-chefe da Al-Qaeda no Paquistão e o clérigo radical de Londres, Abu Qatada.

Em suma, "Por dentro do Jihad" oferece uma perspectiva inteiramente original da batalha que se desenvolve contra a Al-Qaeda. Omar Nasiri, nome fictício, nasceu no Marrocos e atualmente vive na Alemanha.

Eis um trecho de "Por Dentro do Jihad":

"Em algumas noites (no Afeganistão) nós praticávamos tajwid (2) em outras estudávamos o Corão e a hadith, o conjunto de tradições estabelecidas pelas palavras e ações do profeta Maomé (...).

Nós aprendíamos muito todas as noites nessas aulas mas, acima de tudo, aprendíamos sobre as leis do jihad. Existem mais de 150 versos no Corão sobre o jihad e centenas de referências na hadith. (...) Foi somente quando cheguei a Khaldan (3) que comecei a aprender o que o Corão tinha realmente a dizer sobre o jihad.

Naturalmente, há muitos tipos diferentes de jihad. Existe o jihad interior, que é algo que todos os verdadeiros muçulmanos praticam constantemente. Existe o jihad da língua, que tem todos os tipos de forma. Pode significar o proselitismo, como eu vira no Tabligh (4). Ou pode significar manifestar-se politicamente, através de sermões ou protestos ou, até mesmo, de propaganda como o Al Ansar (5). Existe o jihad realizado por meio de ações, tais como fazer a peregrinação hajj (6) até Meca. Ou mesmo dando dinheiro para apoiar o jihad supremo, a kutila fi sabilillah. A guerra santa.

Nós falávamos quase que exclusivamente sobre esta última forma de jihad. Nós aprendemos todas as regras de combate. A força deve ser evitada, a menos que seja absolutamente necessária e, mesmo assim, deve ser empregada somente em proporção ao poderio do inimigo.

Mas, uma vez que a força torna-se necessária, ninguém pode fugir do seu dever. Se uma mulher do outro lado do mundo é estuprada ou tirada de sua família, todos os muçulmanos devem unir-se para lutar até que a injustiça seja corrigida. É uma exigência de Deus.

Antes de lutar, um irmão deve preparar-se. Primeiro, e acima de tudo, ele deve se preparar espiritualmente. Com fé, um exército pode derrotar um oponente dez vezes maior.

Outros tipos de preparação também são vitais. Um mujahid (7) deve estar moralmente preparado; ele deve evitar todos os pecados e purificar-se diante de Deus. Ele também deve preparar seu corpo e fortalecê-lo o máximo possível. E todo irmão deve aprender tudo o que conseguir sobre ciência e tecnologia, para que sua superioridade sobre o inimigo seja total.

Uma vez em combate, um mujahid deve obedecer leis muito rígidas. São proibidos o massacre de inocentes, a matança indiscriminada, a morte de mulheres e crianças, a mutilação dos cadáveres dos inimigos e a destruição de escolas, igrejas, fontes de água ou, até mesmo, campos e rebanhos. Ninguém deve ser assassinado enquanto está rezando, independentemente de as orações serem muçulmanas, cristãs, judaicas ou quaisquer outras.

Um mujahid deve lutar somente por Deus, não por ganhos materiais, não por política. Ele luta com a razão a seu lado e luta para servir à criação de Deus. Quanto mais profunda for sua fé em Deus, maior será sua capacidade de honrar a obra de Deus.

Os verdadeiros fiéis são aqueles cujas vidas Deus obteve em troca da promessa do paraíso. Eles não devem fugir da batalha, ainda que estejam diante da morte certa. Um homem que dá as costas aos infiéis e corre, diz o Corão, sujeitou-se, de fato, à severa punição de Deus e seu refúgio final é o fogo; quão abomináveis são o retorno e a destinação que o aguardam?

Fiquei surpreso ao aprender como são tão específicas as leis do jihad, muito mais do que quaisquer convenções sobre direitos humanos sonhadas no Ocidente. Na verdade, nossos professores repetiam para nós incontáveis vezes que esses princípios são os que diferenciam muçulmanos de não-muçulmanos. Os infiéis são aqueles que matam indiscriminadamente, sem lei. Eles destroem cidades inteiras, até mesmo populações inteiras. Eles bombardeiam igrejas, mesquitas e escolas.

Nós aprendemos sobre os ingleses e os franceses, que conquistaram povos em todo o mundo e roubaram as terras para suas colônias. Nós aprendemos sobre Hitler e seus campos de concentração. Aprendemos como os americanos tinham massacrado coreanos e vietnamitas. Aprendemos sobre Hiroshima, Nagasaki e os bombardeios em massa no final da Segunda Guerra Mundial. E, é claro, aprendemos sobre os horrores que os israelenses perpetraram na Palestina, mas isso todos nós já sabíamos. Os infiéis massacravam, bombardeavam e destruíam tudo em seu caminho. Eles eram uns animais.

Naturalmente, aprender tudo isso me faz pensar de novo a respeito do que eu sabia sobre a guerra na Argélia. O GIA fizera muitas das coisas proibidas na lei islâmica. Eles haviam matado civis, disparando até mesmo contra escolas inteiras. Mas, com o tempo, aprendi algo sobre as leis do jihad: há espaço. Há espaço dentro dos limites da lei para todos os tipos de interpretação.

Há espaço, particularmente na hora de definir quem são os inimigos e quem são os inocentes. Parece simples, é claro - os inimigos são aqueles com as armas. Entretanto, de acordo com as leis do jihad, a definição de "inimigo" pode ser expandida para incluir toda a cadeia de suprimentos: quem quer que apóie o inimigo com dinheiro ou armas, ou mesmo com comida ou água; até mesmo aqueles que dão apoio moral - jornalistas, por exemplo, que escrevem em defesa da causa do inimigo. Ms até onde, me perguntei, a cadeia de suprimentos vai? Até aquele que vota em um regime inimigo? E quanto àqueles que não escolhem um lado? Até onde vai?

Mulheres geralmente são consideradas inocentes; mas elas também podem ser o inimigo. Se uma mulher reza a Deus para proteger o marido, então ela não é um inimigo. Mas se reza a Deus para matar um muçulmano, então ela é. Com as crianças é parecido. Um menino pode ser perdoado por suas orações; ele é jovem demais para ser responsável por isso. Mas se ele leva comida, ou até mesmo uma mensagem, para um combatente inimigo, então se torna um inimigo.

Acabei compreendendo como, na mente de um extremista, quase todo o mundo pode tornar-se um inimigo".

* * *
 Notas:

(1) - Jihad - conceito essencial da religião islâmica. Pode ser entendido como uma luta de busca e conquista da fé perfeita. Ao contrário do que muitos pensam, jihad não significa "guerra santa"

(2) - Tajwid - Corão cantado

(3) - Kaldhan - um dos campos de treinamento no Afeganistão

(4) - Tabligh - grupo fundamentalista

(5) - Al Ansar - jornal do grupo radical muçulmano GIA, da Argélia

(6) - Hajj - Denominação dada pelos muçulmanos à peregrinação à cidade santa de Meca

(7) - Mujahid - muçulmano envolvido no que ele considera ser uma jihad

09 de agosto de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador. 

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