"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A ANTROPÓLOGA E O ROLEZINHOI

Ou: Caelum, non animum mutant, qui trans mare currunt


“Caelum, non animum mutant, qui trans mare currunt.” É do poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.), que disse quase tudo o que interessa saber ainda hoje. Os que atravessam o oceano mudam de céu, mas não de espírito. Eu mesmo, vejam bem, saí de Dois Córregos, mas Dois Córregos não saiu de mim, entendem?
É a velha história: no fim das contas, tudo termina mesmo é no rio da nossa aldeia. Não acho isso ruim, não. É preciso descobrir o universo nos seus badulaques íntimos, leitor. Mas esse localismo também pode se manifestar de forma bem pouco virtuosa, sabem?
 
A Folha Online traz uma entrevista com a antropóloga, Rosana Pinheiro-Machado, professora de antropologia do desenvolvimento na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Com esse currículo, a gente fica até receoso de ter perdido alguma coisa na leitura. Rosana analisa os rolezinhos — ela andou estudando a coisa. Antropólogos costumam ser bem, como direi, focados. Leiam duas perguntas e duas respostas:
 
Você escreveu que “há contestação política nesse evento”. Ela é consciente?
 
Não, é implícita, ao menos no passado. Se vestir bem e ocupar um shopping é uma forma de reivindicar espaço e o “direito à cidade”. Uma forma implícita de protestar contra o racismo e discriminação de classe. Para os jovens, é importante “estar bonito” para ir para “o centro”. Porém, nos últimos dias, temos visto uma politização bastante interessante. Os jovens da periferia estão sendo protagonistas agora e esse é um momento muito especial na nossa história.
 
Você também escreveu que “adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato”. Assim sendo, qual o sentido da contestação política nos “rolezinhos”?

Simples: a exclusão que existe é social. Ao se usar de símbolos de marca, eles querem pertencer a essa sociedade de bem estar que só aparece na televisão. Afinal, na vida real, o cotidiano é marcado por “porradas” da polícia, escola sem professor e fila do SUS. Resistência é um ato de resistir às normas hegemônicas do poder. Mas não se pode ter ilusão de que aqueles meninos de 16 anos queriam fazer uma revolução, eles apenas querem se divertir, brincar, mas fazem isso de forma que acaba sendo quase subversiva. Afinal, é inesperado para muitos que jovens da periferia pobres queiram também a riqueza.
(…)
 
Retomo

Adorei o “simples”!!! Ah, lá estão as “porradas da polícia” — que parece existir com a finalidade precípua de reprimir os pobres. A impressão que se tem é que a elite rica e branca montou uma força militar só para se proteger daqueles que Gilberto Carvalho chama “negros e morenos”.
 
Entendi o triplo salto carpado dialético: os meninos querem resistir, mas é uma resistência, vejam bem, que se dá por intermédio da assimilação dos valores daqueles que eles contestam, ainda que sem saber, compreenderam? Não??? Como culpá-los? Os meninos podem não saber que são subversivos, mas a antropóloga sabe.
 
Deixem-me ver se entendi: se os garotos da periferia, então, estivessem articulando valores novos, trajes novos e hábitos novos, um antropólogo diria tratar-se, não tenho dúvida, de “resistência”. Como, ao contrário, eles querem calça de grife, boné de grife e tênis de grife, não pensem que isso é adesão aos valores dominantes, então, dessa “maldita” sociedade de consumo.
 
É nada!!! Continua resistência mesmo assim. Tanto resistem os que fazem uma coisa como os que fazem o seu contrário.
 
Para os nossos “intelequituais”, estejam em Dois Córregos ou em Harvard, o mundo se divide em castas e ponto final. Um “pobre da periferia” será sempre um pobre da periferia, mesmo quando ele se veste como um rico, cultiva os valores do rico, consome as coisas do rico e, ó escândalo!, se torna um rico. Nessa visão, as pessoas carregam suas máculas de nascimento. Ela vai pensar mais um pouco:

O “rolezinho” é um fenômeno tipicamente contemporâneo ou poderia ter acontecido no passado?

É um fenômeno contemporâneo e antigo. Antigo porque os grupos populares periféricos sempre ocuparam espaços das elites desde a abolição da escravatura no Brasil. E sempre foram expulsos desses lugares por meio de políticas higienistas e por meio da força policial. Mas também é um fenômeno novo porque está imbuído de novos elementos: o funk ostentação, a globalização, as redes sociais e o próprio momento especial da sociedade brasileira que, desde o ano passado, tem participado de uma fase de maior reivindicação democrática de todas as ordens, bem como de maior intolerância quanto às injustiças sociais.
 
Comento

A tese poderia, ao menos, não ser desmoralizada, de saída, pelo mais elementar de todos os fatos: os rolezinhos foram feitos em shoppings da periferia, construídos para os moradores dessa periferia e por eles frequentados. Aquele ambiente já é deles.
 
Eu sempre fico fascinado quando um “especialista” junta funk ostentação, globalização, redes sociais e reivindicações por mais democracia. Isso desperta na gente a sensação de estar diante de um pensamento mais profundo do que o jornal é capaz de registrar.
Como a Internet está aí, e é possível escrever textos de 200 quilômetros sem gastar papel, eu fico à espera do desenvolvimento da tese. Interessa-me, sobretudo, a articulação entre o funk e a globalização. E também fiquei curioso em saber como a apropriação dos, vá lá, hábitos do “opressor” (o consumismo…) tem um caráter subversivo.
 
“Caelum, non animum mutant, qui trans mare currunt.” Com todo o respeito, a professora atravessou o oceano, mas o oceano não mudou a professora. Repete a bobajada que a esquerda nativa anda a dizer, em sua própria terra, sobre os rolezinhos porque vê o pobre segundo o manual da luta de classes.
 
Diga-me cá, ó mestra: quando o moleque põe um boné da John-John, ele não pode apenas estar querendo, genuinamente, um boné da John-John, além de estar dizendo para si mesmo que vai lutar, por seus próprios meios, para sair da pobreza? Se, um dia, ele chegar a ser presidente de uma multinacional, segundo o seu ponto de vista — o da incorporação do consumo como ato de resistência —, ele será o quê? Um Che Guevara?
 
É impressionante como todas as teses das esquerdas, sem exceção, são desmoralizadas pelos fatos, o que as torna, então, ainda mais convictas. Entendo. Deve ser terrível ver os “negros e morenos” (by Gilberto Carvalho) da periferia a desmoralizar anos de ideologia vertidas em antropologia da reparação.
 
28 de janeiro de 2014
Reinaldo Azevedo

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