"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

BECOS DO TEMPO

 
Na tradição judaica, o Ano Novo tem espaço peculiar no calendário. Começa que seus significados estão desatrelados de eventos naturais ou históricos. Depois, não se celebra em apenas um dia ou uma noite. Prolonga-se por dez dias, os chamados Iamim Noraim, traduzidos como Dias Intensos ou Temíveis.
Neles, mesmo os judeus não praticantes, que é o meu caso, são convidados a uma reflexão sobre a vida, interrompendo a rotina e quebrando o ritmo, muitas vezes alucinante, dos afazeres e que fazeres.
 
É uma proposta forte, marcada por canções de impacto, introspectivas, e por um diálogo muito difícil com nossa finitude. O som do shofar, antiquíssimo instrumento musical produzido normalmente com chifre de carneiro, ritualiza o final do balanço.
 
A passagem do tempo está presente em todas as culturas, pontuando a volatilidade humana e registrando a dolorosa relação que temos com a morte. Estamos às vésperas de um novo ano do calendário cristão. Tomando emprestada a velha mania judaica de perguntar e duvidar, vou dar uma olhada no que me sensibilizou em 2013 e, por que não ?, projetar meus desejos para 2014.
 
Em 2013, Edward Snowden revelou um segredo de Polichinelo: os Estados Unidos espionam o mundo inteiro, incluídos no pacote desde inimigos históricos até aliados leais e milhões de cidadãos comuns.
Quem, honestamente, ficou surpreso ? Na melhor das hipóteses, pode ter havido alguma perplexidade com a dimensão dos tentáculos. Que em 2014, venha um ardiloso contra-ataque.
Flagrado ao fazer a feira pela internet, Obama terá o número de seu celular revelado. A partir daí, será infernizado por infindáveis ligações de telemarketing, que “estarão vendendo” todo tipo de tralha. Com direito a musiquinhas. Mandinga da boa.
O robô chinês que desceu na Lua em 2013 mapeará, em 2014, a primavera das nossas esperanças ?
 
NOVO ESPORTE
Proponho a criação de um novo esporte, cuja jornada inaugural será no ano da Copa. Antes, porém, tenho uma dúvida: pancadaria é esporte ? Se for, estou no caminho certo. Seguinte: que tal colocar num octógono monumental todos os lutadores de UFC e MMA e os marginais que transformam as arquibancadas das “arenas” de futebol em picadeiros sangrentos ? Todos são especialistas em socos e pontapés nas cabeças alheias.
Traumatófilos fanáticos. Que se empenhem numa batalha final, num único round, sem regras e sem direito a recurso no STJD (senão, algum advogado do Fluminense acaba descobrindo uma irregularidade e suspendendo o espetáculo). Que deem vazão entre si a seus baixos instintos e nos livrem das carnificinas que, regularmente, protagonizam. Amém.
 
Não seria mau que as eleições gerais de 2014 mostrassem menos preocupação com as qualidades gerenciais dos candidatos e recuperassem o tom político de outros carnavais. Que se saia do desfile monótono de números e gráficos, não raro maceteados e ininteligíveis, e se caia nos debates ideológicos, com claras demarcações do que se pretende para o país.
Que a memória do povo filtre sem perdão os que, por oportunismo e marquetagem, se juntam com aqueles que, até ontem, eram seus inimigos mortais. Que o povo não substitua a mobilização nas ruas pelo atalho enganoso das urnas. Tá bom, tá bom, sei que Papai Noel não existe, mas tenho direito a um pouquinho de esperança.
 
MANDELA E GIAP
Em 2013, morreram dois grandes personagens do século vinte. Nelson Mandela, importante liderança do Congresso Nacional Africano, teve papel destacado na superação do apartheid sul-africano.
Não foi, entretanto, como fizeram supor as marotas interpretações da grande mídia internacional, responsável solitário pela derrota do regime abominável dos africaners. Sem a organização, a elaboração teórica e a construção estratégica do CNA, Mandela não teria existido.
A vitória foi coletiva, tem muitos nomes e sobrenomes, muitos tombados pela mesma causa. O enterro de Mandela foi acompanhado por dezenas de autoridades mundiais.
 
Quanta hipocrisia ! Muitas dessas autoridades representavam governos que apoiaram, aberta ou camufladamente, o supremacismo branco. Montou-se uma comoção que estranhei, na medida em que o projeto do CNA nada tem a ver com os interesses do capital financeiro e da reprodução do grande capital. Remédio veneno ? Excesso de imagens, anestesia da razão.
 
Enquanto Mandela recebia justas e amplas homenagens, outro imenso personagem mereceu pouco mais do que pé de página. Ao morrer, aos 102 anos, o general Vo Nguyen Giap, o camarada Van, deixou uma biografia libertária poucas vezes igualada. Sua estratégia político-militar derrotou o exército imperial japonês, o exército colonial francês e as forças armadas imperialistas norte-americanas. Ajudou a consolidar a independência do Vietnã, despertando enorme entusiasmo nas forças democráticas e progressistas de todo o mundo.
 
Viveu e morreu modestamente, afirmando sempre que o verdadeiro general era o povo vietnamita. A imprensa não gastou muita tinta, nem muitos bytes, para registrar a morte deste pequeno gigante. Não se formaram filas de mandatários de outros países em frente ao seu caixão. Sintomaticamente, as homenagens ficaram por conta do vietnamita comum, consciente da grandeza de um de seus filhos mais dedicados e obstinados.
 
BOM SENSO F. C.
Gostaria que, em 2014, o Bom Senso F. C. nascesse de verdade. Que o batismo coincidisse com a Copa do Mundo, que desencadeará o velho provincianismo, as patriotadas midiáticas, o oportunismo político dos que surfarão na trajetória da seleção brasileira. Bem que o Bom Senso poderia mostrar o lado B de todo o previsível ufanismo. Ganhos bilionários dos meios de comunicação (sem qualquer vantagem esportiva), gastos públicos duvidosos em “arenas” destinadas ao nada, privatização do direito de torcer (quem poderá pagar os preços astronômicos dos ingressos ?).
 
Que surjam lideranças sólidas no movimento, preocupadas em educar as categorias de base, criar canais de comunicação com as massas, aprender formas de luta com outras categorias de trabalhadores, interagir com elas. Que floresçam mil Obdúlios Varelas !
 
Que nos preparemos para construir bunkers e abrigos de todos os tipos ! As astrólogas Maria Eugênia Castro e Maína Mello preveem um 2014 tenso. Mercúrio vai andar para trás três vezes (?), e, pelo que leio, isso não é nada bom. Vamos ter problemas de comunicação, trânsito e até de vendas de ingressos para a Copa. Nada a ver com o caos das grandes cidades brasileiras, a incompetência para organizar eventos de grande porte.
A questão tem a ver com um planetinha que está a uma distância média de 100 milhões de quilômetros da Terra. Dona Maria Eugênia garante que a presidente Dilma terá um ano de intenso stress. Por causa das eleições ? Nada disso. Júpiter e Marte estarão numa posição desfavorável.
Os crentes em anjinhos, duendes, gnomos, feiticeiras e almas penadas estão em estado de alerta. Ponhamos, pois, nossas barbas de molho.
 
HOMOFOBIA
Que a homofobia regrida sem precisar da blitzkrieg midiática da Daniela Mercury, séria candidata a Mala do Ano no hilário concurso do Artur Xexeo. Nessa questão, há um equilibro delicado entre o público e o privado, que a cantora baiana faz questão de ignorar.
 
Que dona Marta Suplicy encontre, finalmente, um lugar para chamar de seu. Um dia é ministra “relaxa e goza” do Turismo, no outro, da Cultura (confundindo alta costura com alta cultura), hoje se especula que vai para a Educação. Deve ser dura essa vida peregrina. Boa sorte e feliz aterrissagem, onde quer que ela aconteça. Tanto faz. Fique tranquila, somos nós que pagamos o voo.
 
De resto, um feliz 2014, com mais Beethoven e menos Fiuk, mais Antônio Nóbrega e menos duplas sertanejas, mais encontros e menos Rivotril, mais silêncio e menos pressa, mais livros e menos Google, mais contemplação e menos aflição.
 
(artigo enviado por Mário Assis)
 
31 de dezembro de 2013
Jacques Gruman

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