Senhor pastor:
Houve época em que cri em um deus onipotente e salvador e muitas vezes a ele orei por minha salvação, pela salvação de meus próximos e mesmo da humanidade. Foram meus dias de adolescência, pastor. Justo naqueles dias, fui assaltado pelo clamor, não dos povos – como fala o Livro – mas pelo clamor da carne, clamor tirano, imperioso e impossível de ser domado. Por melhores propósitos que fizesse, acabava dominado pelos ditos prazeres da carne. Dizem que a carne é fraca, pastor. Nada disso, a carne é forte. Fraco é o espírito, que sempre acaba cedendo à carne.
Entrava em pânico, via à minha frente as chamas eternas do Hades, onde tudo é choro e ranger de dentes. Me sentia condenado ao convívio com demônios. Arrependia-me, fazia atos de contrição, confessava meus pecados a sacerdotes e recebia a absolvição. Por um dia ou dois, conseguia viver sem pavores. Mas não mais que um dia ou dois. No terceiro, eu já estava pecando de novo. As noites de tempestade eram noites de pavor. Talvez fosse megalomania. Mas cada raio que caía, eu sentia que era dirigido a mim.
Eu era pobre, pastor. Filho de camponeses, nunca tive facilidades em minha infância. Muito menos na adolescência. Fiz minhas universidades mal tendo dinheiro para o restaurante universitário. Vivi em repúblicas abomináveis, pequenos apartamentos, sem grana suficiente para tomar um vinho decente. A bebida mais ao alcance de minha boca era a mais barata, a cachaça. Ainda adolescente, tomei grandes porres de cachaça. Naqueles dias de pouca grana, bebia muito e bebia mal. Em minha juventude, pastor, eu estava no fundo do poço. O senhor Jesuis era um encosto em minha vida, despacho de catimbó feito a Exu, praga rogada por urubu para infernar meus dias.
Foi quando então, pastor, durante três dias e três noites, li atentamente a Bíblia. Foram dias em que quase não comi. À noite, pegava um cavalo em pêlo, sem freio nem buçal, e saía a galopar nas madrugadas, olhando o céu estrelado e esperando ouvir daquele universo magnífico alguma resposta. Não ouvi nada, pastor. Foram três dias e três noites decisivas em minha vida. A partir da leitura do Livro, tornei-me ateu. Aquele deus proposto pelas Escrituras, que se pretendia criador daquele firmamento esplêndido e cravejado de estrelas, que só vemos na pampa ou no deserto, sempre longe das cidades, não me convencia. Aquele deus matava e exterminava, mandava matar e exterminar. Não me servia.
Disse então a mim mesmo: sai de mim, Coisa Ruim! Me larga, ó Espírito Castrador, sai de minha vida, ó Supremo Estraga-prazeres! Desapareçam de minha vida vocês três, o Pai, o Filho e o Paráclito. E a Mãe também, antes que me esqueça. E todos os santos do céu e todos os padres de todas as igrejas. Xô, Espírito Imundo, xô, Assassino de Povos. Ouste, Pai das Doenças e Exterminador de Nações. Rua de minha alma, ó velho Deus castrado!
Então, pastor, tudo mudou em minha vida. Saí do fundo do poço, rumo à luz do bocal. Mulheres começaram a cair-me dos céus, justo daqueles céus mudos aos quais eu pedia perdão por meus pecados. Como perdera a noção de pecado, nunca mais pequei. Tornei-me um santo homem e procurei imitar os bíblicos patriarcas. Curti plenamente os prazeres que tanto apraziam ao rei Davi, ao rei Salomão, à Sulamita. Verdade que nunca consegui sustentar setecentas mulheres e trezentas concubinas. Mas fiz o que estava a meu modesto alcance.
Por mais de quarenta anos, as mulheres me caíram nos braços como o maná caiu do alto por quarenta anos para saciar a fome do Povo Eleito. Comecei minha vida afetiva com duas, às quais muito amei. Por circunstâncias dos dias, perdi uma. Vivi quatro décadas de muito carinho e cumplicidades com a segunda. Fui feliz em meu casamento. Divórcios, separações, o espírito do ciúmes, amargura, traições, nunca rondaram minha existência.
Quando minha amada partiu, não acusei deus algum, afinal não acreditava em nenhum. Estas duas primeiras amadas logo se multiplicaram por dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta. Não saberia dizer quantas, nunca contei. Mas digamos que a metade da “listina” de Leporello. Corri atrás delas com a hybris de um fauno grego, para compensar os dias de vacas magras e sem leite de minha juventude. Após deixar de crer no tal de deus, minha vida foi uma profusão de prazeres. Corri nu atrás de valquírias nuas pelos bosques de Estocolmo, em plena luz da meia-noite. Isto, pastor, teu deus não confere aos mortais, exceto se forem majestades apaniguadas pelo Senhor. Isto é ventura só concedida pelos deuses lúbricos do Valhala. Tack tack, Odin!
Uma vez descrente, apesar de pobre consegui educar-me. Fiz duas faculdades, três pós-graduações no Exterior, viajei por todos os países da Europa, por mais alguns do Leste europeu, pela África, Estados Unidos, Canadá e América Latina. Nasci nos peraus do Upamaruty, em um rancho de pau-a-pique e fiz doutorado em Paris. Consegui escapar de meu pequeno mundinho e sai a navegar pela vastidão do anecúmeno. Au bord’elle, la Seine, conheci uma peoniana adorável, a quem dediquei minha tese. Havia também Úrsula, uma polonesa, que me sussurrava: “mon ours tropical”. Música para meus ouvidos.
Não cheguei a amar a filha de Faraó, muito menos moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias, como o sábio rei Salomão. Mas tive namoradas lindas em várias cidades do mundo. Desde suecas a francesas. Desde macedônias até mesmo a turcomenas e usbeques, passando por polonesas e russas. Adorei a turcomena. Era de Achkhabad, palavra que soava deliciosamente à minha fome de exotismo. Uma vez ateu, fascinou-me a idéia de ouvir mulheres gemendo em línguas que desconheço. E as ouvi. Paris sempre foi pródiga em estrangeiras de todos azimutes e não recusei o que a cidade generosamente me oferecia. Tive do bom e do melhor, como dizem suas ovelhas, senhor pastor. Mas só depois que deixei de crer.
Ateu, fui abençoado com dinheiro e vida confortável. De camponês tosco, tive acesso a línguas, à filosofia, à literatura, à música erudita, a óperas, em suma, ao dito mundo da cultura. De Teixeirinha passei a Mozart, de Luiz Gonzaga a Bizet. Abandonei a cachaça e passei a cultivar bons vinhos e bons uísques. Do mondongo fui promovido ao foie gras, do arroz com feijão às andouilletes. Curti a boa gastronomia da Espanha, França, Itália, Alemanha, Portugal. Percorri as cidades mais esplendorosas do Ocidente. Vivi em três prestigiosas capitais da Europa e em quatro grandes capitais de meu país.
Perambulei por paisagens magníficas, que me fizeram chorar. A beleza extrema sempre me provoca lágrimas. Andei pelo deserto, por oueds, montanhas, dunas, fjords, rias e ventisqueros. Chorei nos Andes, chorei nos Alpes, chorei no Saara, chorei nas costas da Noruega, chorei no Estreito de Magalhães. Chorei também em Santorini. De Madri, saí chorando. Eu estava em uma bodega, tudo era cores, dança, música, canções, madriles lindas, muito vinho, odores de assado bom, os sons rascantes de uma língua que adoro.
Quando me dei conta que, dali a duas horas, estaria voltando ao Brasil, chorei como um terneiro desmamado. Fui chorando até o aeroporto. Não porque estivesse voltando ao Brasil. Mas porque estava abandonando a festa. Dentro de pouco eu estaria voando, espremido num assento apertado, rumo a um país sin flamenco ni cante hondo, sin bailaoras ni cantaores, sin cochinillos ni lechales. Na bodega, continuariam todos cantando e dançando, comendo e bebendo. Muito chorei em minha vida, pastor. Raras vezes de tristeza. O mais das vezes, foi por deslumbramento, perplexidade ante a beleza. Felicidade também nos faz chorar. Choro também com certas árias de Nabucco, Carmen, Don Giovanni, Norma.
Depois que abandonei o tal de Deus, senhor pastor, passei a viajar quase todos os anos à Europa. (Quando nele acreditava, só conseguia ir de Dom Pedrito a Ponche Verde). Fiz pelo menos cinco travessias divinas do Atlântico – com perdão pelo trocadilho – de navio. Sabe, pastor? Aqueles navios cheios de Emmas Bovarys sedentas para conhecer o mundo e experimentar emoções outras que não as medíocres emoções proporcionadas pelo Charles. Vivi grandes momentos, “ao quente arfar das vibrações marinhas”, como canta o poeta. Fiz cruzeiros também divinos pelo Mediterrâneo, pelo Báltico, pelo mar do Norte e pelo mar Negro, pelo Egeu, pelo Adriático e pelos Canales Fueguinos.
Durante pelo menos uns trinta anos, sempre celebrei a bona-chira nos mais antigos e acolhedores restaurantes da Europa, com minha Baixinha adorada. Agora que ela partiu, ora a celebro com minha filha, ora com alguma namorada. E com meus amigos. Bastou-me abandonar Deus, pastor, e minha vida se tornou repleta de bênçãos, que me caíam dos céus em catadupas.
Fui salvo por minha descrença, pastor. Quando cria em Deus, era um adolescente fodido e sem nenhum vintém. Não tinha nem como convidar uma amiga para um bom jantar. Bastou-me deixar de crer e a vida se tornou linda. Cheguei aos sessenta jovem e cultivando minhas antigas amadas. Não tenho carro, nem nacional nem importado, como ostentam vossos crentes, é verdade. Mas isto é opção minha. Com carro não se vai longe. Ora, eu gosto de ir longe.
Sem ser rico, vivo bem. Não tenho contas em vermelho, nem nome sujo na praça, nem problemas na justiça. Jamais fiz empréstimos. Não sei o que seja um cheque sem fundo. Muito menos problemas familiares. Hoje, minhas únicas dívidas são luz, água e condomínio. Vivo em bairro bom, prédio ótimo, apartamento confortável. Ano passado, regalei uma antiga namorada com uma viagem a Paris, Barcelona e Madri. Com uma noite em Bruxelas, só para curtir um café que adoro.
À minha filha – doravante designada Primeira Namorada – dei de presente os fjords noruegueses, o sol da meia-noite, Estocolmo e o arquipélago de Estocolmo e de novo Paris. Na próxima primavera européia, estou combinando um giro pela Itália com uma amiga da Finlândia. No outono, penso partir com a Primeira Namorada rumo a Madri e às ilhas Canárias. Madri porque não concebo ir a Espanha sem visitar Madri. Ilhas Canárias, porque quero passear entre os vulcões de Lanzarote e comer carnes assadas no calor das lavas.
Por vários anos vivi soterrado no fundo do poço. O senhor Jesuis sempre foi um atraso em minha vida. Tudo só se tornou lindo, divino e maravilhoso quando o abandonei. Sei que o senhor pastor, por questões de fé, neste ano que começa, não poderá gozar dos prazeres que gozei e gozarei ainda.
Seja como for, bom 2009, senhor pastor.
31 de dezembro de 2013
janer cristaldo
Houve época em que cri em um deus onipotente e salvador e muitas vezes a ele orei por minha salvação, pela salvação de meus próximos e mesmo da humanidade. Foram meus dias de adolescência, pastor. Justo naqueles dias, fui assaltado pelo clamor, não dos povos – como fala o Livro – mas pelo clamor da carne, clamor tirano, imperioso e impossível de ser domado. Por melhores propósitos que fizesse, acabava dominado pelos ditos prazeres da carne. Dizem que a carne é fraca, pastor. Nada disso, a carne é forte. Fraco é o espírito, que sempre acaba cedendo à carne.
Entrava em pânico, via à minha frente as chamas eternas do Hades, onde tudo é choro e ranger de dentes. Me sentia condenado ao convívio com demônios. Arrependia-me, fazia atos de contrição, confessava meus pecados a sacerdotes e recebia a absolvição. Por um dia ou dois, conseguia viver sem pavores. Mas não mais que um dia ou dois. No terceiro, eu já estava pecando de novo. As noites de tempestade eram noites de pavor. Talvez fosse megalomania. Mas cada raio que caía, eu sentia que era dirigido a mim.
Eu era pobre, pastor. Filho de camponeses, nunca tive facilidades em minha infância. Muito menos na adolescência. Fiz minhas universidades mal tendo dinheiro para o restaurante universitário. Vivi em repúblicas abomináveis, pequenos apartamentos, sem grana suficiente para tomar um vinho decente. A bebida mais ao alcance de minha boca era a mais barata, a cachaça. Ainda adolescente, tomei grandes porres de cachaça. Naqueles dias de pouca grana, bebia muito e bebia mal. Em minha juventude, pastor, eu estava no fundo do poço. O senhor Jesuis era um encosto em minha vida, despacho de catimbó feito a Exu, praga rogada por urubu para infernar meus dias.
Foi quando então, pastor, durante três dias e três noites, li atentamente a Bíblia. Foram dias em que quase não comi. À noite, pegava um cavalo em pêlo, sem freio nem buçal, e saía a galopar nas madrugadas, olhando o céu estrelado e esperando ouvir daquele universo magnífico alguma resposta. Não ouvi nada, pastor. Foram três dias e três noites decisivas em minha vida. A partir da leitura do Livro, tornei-me ateu. Aquele deus proposto pelas Escrituras, que se pretendia criador daquele firmamento esplêndido e cravejado de estrelas, que só vemos na pampa ou no deserto, sempre longe das cidades, não me convencia. Aquele deus matava e exterminava, mandava matar e exterminar. Não me servia.
Disse então a mim mesmo: sai de mim, Coisa Ruim! Me larga, ó Espírito Castrador, sai de minha vida, ó Supremo Estraga-prazeres! Desapareçam de minha vida vocês três, o Pai, o Filho e o Paráclito. E a Mãe também, antes que me esqueça. E todos os santos do céu e todos os padres de todas as igrejas. Xô, Espírito Imundo, xô, Assassino de Povos. Ouste, Pai das Doenças e Exterminador de Nações. Rua de minha alma, ó velho Deus castrado!
Então, pastor, tudo mudou em minha vida. Saí do fundo do poço, rumo à luz do bocal. Mulheres começaram a cair-me dos céus, justo daqueles céus mudos aos quais eu pedia perdão por meus pecados. Como perdera a noção de pecado, nunca mais pequei. Tornei-me um santo homem e procurei imitar os bíblicos patriarcas. Curti plenamente os prazeres que tanto apraziam ao rei Davi, ao rei Salomão, à Sulamita. Verdade que nunca consegui sustentar setecentas mulheres e trezentas concubinas. Mas fiz o que estava a meu modesto alcance.
Por mais de quarenta anos, as mulheres me caíram nos braços como o maná caiu do alto por quarenta anos para saciar a fome do Povo Eleito. Comecei minha vida afetiva com duas, às quais muito amei. Por circunstâncias dos dias, perdi uma. Vivi quatro décadas de muito carinho e cumplicidades com a segunda. Fui feliz em meu casamento. Divórcios, separações, o espírito do ciúmes, amargura, traições, nunca rondaram minha existência.
Quando minha amada partiu, não acusei deus algum, afinal não acreditava em nenhum. Estas duas primeiras amadas logo se multiplicaram por dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta. Não saberia dizer quantas, nunca contei. Mas digamos que a metade da “listina” de Leporello. Corri atrás delas com a hybris de um fauno grego, para compensar os dias de vacas magras e sem leite de minha juventude. Após deixar de crer no tal de deus, minha vida foi uma profusão de prazeres. Corri nu atrás de valquírias nuas pelos bosques de Estocolmo, em plena luz da meia-noite. Isto, pastor, teu deus não confere aos mortais, exceto se forem majestades apaniguadas pelo Senhor. Isto é ventura só concedida pelos deuses lúbricos do Valhala. Tack tack, Odin!
Uma vez descrente, apesar de pobre consegui educar-me. Fiz duas faculdades, três pós-graduações no Exterior, viajei por todos os países da Europa, por mais alguns do Leste europeu, pela África, Estados Unidos, Canadá e América Latina. Nasci nos peraus do Upamaruty, em um rancho de pau-a-pique e fiz doutorado em Paris. Consegui escapar de meu pequeno mundinho e sai a navegar pela vastidão do anecúmeno. Au bord’elle, la Seine, conheci uma peoniana adorável, a quem dediquei minha tese. Havia também Úrsula, uma polonesa, que me sussurrava: “mon ours tropical”. Música para meus ouvidos.
Não cheguei a amar a filha de Faraó, muito menos moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias, como o sábio rei Salomão. Mas tive namoradas lindas em várias cidades do mundo. Desde suecas a francesas. Desde macedônias até mesmo a turcomenas e usbeques, passando por polonesas e russas. Adorei a turcomena. Era de Achkhabad, palavra que soava deliciosamente à minha fome de exotismo. Uma vez ateu, fascinou-me a idéia de ouvir mulheres gemendo em línguas que desconheço. E as ouvi. Paris sempre foi pródiga em estrangeiras de todos azimutes e não recusei o que a cidade generosamente me oferecia. Tive do bom e do melhor, como dizem suas ovelhas, senhor pastor. Mas só depois que deixei de crer.
Ateu, fui abençoado com dinheiro e vida confortável. De camponês tosco, tive acesso a línguas, à filosofia, à literatura, à música erudita, a óperas, em suma, ao dito mundo da cultura. De Teixeirinha passei a Mozart, de Luiz Gonzaga a Bizet. Abandonei a cachaça e passei a cultivar bons vinhos e bons uísques. Do mondongo fui promovido ao foie gras, do arroz com feijão às andouilletes. Curti a boa gastronomia da Espanha, França, Itália, Alemanha, Portugal. Percorri as cidades mais esplendorosas do Ocidente. Vivi em três prestigiosas capitais da Europa e em quatro grandes capitais de meu país.
Perambulei por paisagens magníficas, que me fizeram chorar. A beleza extrema sempre me provoca lágrimas. Andei pelo deserto, por oueds, montanhas, dunas, fjords, rias e ventisqueros. Chorei nos Andes, chorei nos Alpes, chorei no Saara, chorei nas costas da Noruega, chorei no Estreito de Magalhães. Chorei também em Santorini. De Madri, saí chorando. Eu estava em uma bodega, tudo era cores, dança, música, canções, madriles lindas, muito vinho, odores de assado bom, os sons rascantes de uma língua que adoro.
Quando me dei conta que, dali a duas horas, estaria voltando ao Brasil, chorei como um terneiro desmamado. Fui chorando até o aeroporto. Não porque estivesse voltando ao Brasil. Mas porque estava abandonando a festa. Dentro de pouco eu estaria voando, espremido num assento apertado, rumo a um país sin flamenco ni cante hondo, sin bailaoras ni cantaores, sin cochinillos ni lechales. Na bodega, continuariam todos cantando e dançando, comendo e bebendo. Muito chorei em minha vida, pastor. Raras vezes de tristeza. O mais das vezes, foi por deslumbramento, perplexidade ante a beleza. Felicidade também nos faz chorar. Choro também com certas árias de Nabucco, Carmen, Don Giovanni, Norma.
Depois que abandonei o tal de Deus, senhor pastor, passei a viajar quase todos os anos à Europa. (Quando nele acreditava, só conseguia ir de Dom Pedrito a Ponche Verde). Fiz pelo menos cinco travessias divinas do Atlântico – com perdão pelo trocadilho – de navio. Sabe, pastor? Aqueles navios cheios de Emmas Bovarys sedentas para conhecer o mundo e experimentar emoções outras que não as medíocres emoções proporcionadas pelo Charles. Vivi grandes momentos, “ao quente arfar das vibrações marinhas”, como canta o poeta. Fiz cruzeiros também divinos pelo Mediterrâneo, pelo Báltico, pelo mar do Norte e pelo mar Negro, pelo Egeu, pelo Adriático e pelos Canales Fueguinos.
Durante pelo menos uns trinta anos, sempre celebrei a bona-chira nos mais antigos e acolhedores restaurantes da Europa, com minha Baixinha adorada. Agora que ela partiu, ora a celebro com minha filha, ora com alguma namorada. E com meus amigos. Bastou-me abandonar Deus, pastor, e minha vida se tornou repleta de bênçãos, que me caíam dos céus em catadupas.
Fui salvo por minha descrença, pastor. Quando cria em Deus, era um adolescente fodido e sem nenhum vintém. Não tinha nem como convidar uma amiga para um bom jantar. Bastou-me deixar de crer e a vida se tornou linda. Cheguei aos sessenta jovem e cultivando minhas antigas amadas. Não tenho carro, nem nacional nem importado, como ostentam vossos crentes, é verdade. Mas isto é opção minha. Com carro não se vai longe. Ora, eu gosto de ir longe.
Sem ser rico, vivo bem. Não tenho contas em vermelho, nem nome sujo na praça, nem problemas na justiça. Jamais fiz empréstimos. Não sei o que seja um cheque sem fundo. Muito menos problemas familiares. Hoje, minhas únicas dívidas são luz, água e condomínio. Vivo em bairro bom, prédio ótimo, apartamento confortável. Ano passado, regalei uma antiga namorada com uma viagem a Paris, Barcelona e Madri. Com uma noite em Bruxelas, só para curtir um café que adoro.
À minha filha – doravante designada Primeira Namorada – dei de presente os fjords noruegueses, o sol da meia-noite, Estocolmo e o arquipélago de Estocolmo e de novo Paris. Na próxima primavera européia, estou combinando um giro pela Itália com uma amiga da Finlândia. No outono, penso partir com a Primeira Namorada rumo a Madri e às ilhas Canárias. Madri porque não concebo ir a Espanha sem visitar Madri. Ilhas Canárias, porque quero passear entre os vulcões de Lanzarote e comer carnes assadas no calor das lavas.
Por vários anos vivi soterrado no fundo do poço. O senhor Jesuis sempre foi um atraso em minha vida. Tudo só se tornou lindo, divino e maravilhoso quando o abandonei. Sei que o senhor pastor, por questões de fé, neste ano que começa, não poderá gozar dos prazeres que gozei e gozarei ainda.
Seja como for, bom 2009, senhor pastor.
31 de dezembro de 2013
janer cristaldo
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