No ano de 2020, algo que já era visível nos anos anteriores se tornou ainda mais claro: governos e bancos centrais não conseguem fazer com que suas medidas de "afrouxamento quantitativo" — isto é, impressão de moeda com o intuito de "estimular a economia" — cheguem a quem precisa.
Em tese, o objetivo de um afrouxamento quantitativo é prover liquidez para os bancos, para que estes, então, emprestem para pessoas e empresas, a juros baixos, para assim estimular o consumo e o investimento.
Na prática, no entanto, boa parte da moeda que é criada pelos Banco Centrais e repassada aos bancos fica retida no próprio sistema bancário.
Os motivos deste "empoçamento" são vários, mas o principal é o próprio temor dos bancos de levarem calote: em um cenário de juros artificialmente baixos e de grandes incertezas econômicas, emprestar para pessoas e empresas deixa de valer a pena. É pouco rentável e muito arriscado.
Consequentemente, os bancos preferem reter uma parte do dinheiro, e emprestar a outra parte apenas para grandes empresas (com bom histórico de crédito) e, principalmente, para os próprios governos. Daí o fenômeno dos juros reais negativos nos títulos públicos dos países da Europa.
Isso explica também toda a baixa inflação de preços. A base monetária criada pelos Bancos Centrais praticamente não entrou na economia.
Este fenômeno, que começou após a crise financeira de 2008, tornou-se ainda mais intenso durante a pandemia de Covid-19. Na Europa, o fenômeno é mais evidente. A expansão monetária feita pelo Banco Central Europeu praticamente não vaza para a economia. Houve apenas um ligeiro aumento na oferta monetária total, nada percentualmente significativo.
Logo, uma ampla mudança no atual sistema monetário e bancário está por vir. E será uma mudança que afetará a todos: os Bancos Centrais passarão a emitir moedas digitais.
Na prática, todos os Bancos Centrais transformarão suas respectivas moedas nacionais em criptomoedas, com funcionamento semelhante ao Bitcoin.
Já se fala abertamente
Essa ideia foi primeiramente levantada pelo presidente do Banco Central da Inglaterra, Mark Carney, no ano passado. Causou algum furor, mas depois passou.
Porém, com a Covid-19, o tema não só foi ressuscitado, como já se encontra em rápida expansão.
Esta monografia do FMI fala sobre o assunto. O título já é explícito: será a maior transformação monetária desde o acordo de Bretton Woods.
O mesmo FMI também está fazendo conferências abertas sobre o tema.
Já o Banco Central Europeu foi o mais incisivo e o mais explícito: sua intenção de implantar um euro digital já está avançada.
O Banco Central da Suécia também está adiantado em seus experimentos. Assim como o Banco Central da China.
Nos EUA, alterações regulatórias já foram feitas, permitindo a custódia bancária de ativos digitais, especialmente o Bitcoin. Uma alteração regulatória deste porte significa não apenas a aceitação do governo de que os ativos digitais vieram para ficar, como também o reconhecimento de que eles são o futuro.
E, recentemente, o Federal Reserve passou a falar abertamente sobre o assunto.
O próprio FMI é tão explícito que já faz até enquete aberta nas redes sociais sobre o tema.
Ou seja: moedas digitais emitidas por Bancos Centrais estão chegando. E irão alterar absolutamente tudo.
As consequências
Realmente, como aludiu o FMI, trata-se do maior evento monetário desde Bretton Woods.
Está fora do escopo deste artigo fazer explicações técnicas e detalhadas sobre o funcionamento das moedas digitais. Basta dizer que as Moedas Digitais Emitidas por Bancos Centrais terão um funcionamento similar ao Bitcoin, com a diferença de que, obviamente, serão emitidas pelos governos.
E isso muda tudo.
Na prática, os Bancos Centrais utilizarão a tecnologia blockchain para transformar as moedas nacionais em criptomoedas. Será uma revolução para o sistema financeiro global tão grande quanto a internet.
Consequentemente, o Banco Central terá total controle sobre a circulação desta moeda. Por meio da tecnologia blockchain — que grava toda e qualquer transação financeira — ele saberá, a todo momento, exatamente quem detém qual dígito em qual carteira. Ele saberá a exata quantia que cada indivíduo tem em suas carteiras digitais. A privacidade financeira será uma relíquia do passado.
Mas o real objetivo de uma moeda digital emitida por um Banco Central é outro: uma moeda digital permite que o Banco Central não mais dependa do sistema bancário para fazer sua política monetária.
Com uma moeda digital, o Banco Central poderá livremente criar moeda e enviá-la diretamente para a carteira eletrônica de quem ele quiser.
Igualmente, o Banco Central também se torna o executor da política fiscal. Por saber exatamente quem detém quantos dígitos, e por estar ciente de toda e qualquer transação monetária (que serão feitas via transferência de dígitos entre carteiras, e que ficam gravadas no blockchain), ele também terá o poder de tributar e redistribuir.
Isso altera completamente, e para sempre, as políticas fiscal e monetária. Os Bancos Centrais não só poderão se tornar os executores da política fiscal, como também poderão fazer uma política fiscal completamente independente das finanças dos governos.
Eles poderão, por exemplo, enviar moeda diretamente a donos de restaurantes que foram fechados por causa da pandemia, como uma medida de estímulo. Ao mesmo tempo, poderão punir os poupadores impondo juros negativos — ou seja, cobrando juros — a pessoas que tenham muita moeda parada em suas carteiras.
Um sistema de várias taxas de juros, controlado pelo Banco Central, será a norma. Não mais serão os bancos tradicionais que irão determinar os juros de acordo com riscos ou disponibilidade de capital. Os Bancos Centrais poderão estipular o custo de capital que quiserem para qualquer indivíduo ou empresas que escolherem.
Isso também significa que aqueles que têm um histórico ruim de crédito e que hoje só conseguem empréstimos a juros altos poderão conseguir capital a juros menores.
Vale enfatizar que, no arranjo atual, em termos puramente contábeis, para o Banco Central criar moeda, ele tem de comprar um título do governo (ou um título privado). Ou seja, a criação de moeda tem como contrapartida a compra de uma dívida que vai para o balancete do Banco Central. Com uma moeda digital, isso acaba. A emissão de uma cripto-moeda não gera nenhuma contra-partida contábil. Ao contrário da moeda fiduciária, que representa um passivo para o Banco Central, a moeda digital não é passivo de seu emissor.
E o principal: tal medida será crucial para a imposição de um sistema de Renda Básica Universal. Com a difusão dos smartphones e da internet 5G, mesmo os mais pobres das regiões mais remotas conseguirão receber moedas digitais em suas carteiras diretamente do Banco Central.
Embora isso irá retirar poderes discricionários dos governos, vale ressaltar que tal arranjo fará com que eles sejam absolvidos de qualquer responsabilidade por qualquer crise econômica futura. Não há por que imaginar que os políticos serão contra isso.
Tudo isso fará com que a economia comportamental assuma a dianteira da política econômica. O Big Data e os dados da atividade em tempo real irão alimentar as decisões da política monetária e fiscal. Os Bancos Centrais poderão criar incentivos diretamente, tanto na forma de recompensa quanto de punição. Eles poderão afetar o comportamento humano de uma maneira bem mais sutil e discreta do que as tradicionais políticas monetária e fiscal. Será uma tremenda alteração em tudo o que sabemos sobre economia, principalmente macroeconomia.
Os Bancos Centrais, em suma, terão o poder de criar e destruir moeda diretamente nas carteiras dos cidadãos, contornando completamente o sistema bancário e toda a esclerosada burocracia estatal que, como vimos durante a pandemia, não conseguiu fazer com que os cheques de estímulos chegasse a indivíduos e empresas.
Com efeito, a evolução mais provável é que as pessoas passem a ter suas contas bancárias diretamente no Banco Central, e não mais em bancos convencionais — uma total mudança de paradigmas.
Liberdade e desvalorização
Muitos dirão que tal arranjo representará a total extinção das liberdades e da privacidade. Sim, mas a realidade é que, hoje, já não temos nenhuma privacidade e nenhuma liberdade em relação ao governo e aos banco centrais caso operemos dentro do sistema principal (isto é, caso não utilizemos Bitcoin e ouro em nossas transações).
E também é fato que as grandes empresas de tecnologia — como Google, Facebook, Twitter e afins — já conseguiram dominar a arte de manipular a economia comportamental como uma forma de alterar o comportamento humano. Logo, neste quesito, também não mudará muito.
No entanto, o ponto-chave aqui — além de uma maneira totalmente revolucionária de coletar impostos, de dar incentivos e ministrar punições, e de alterar todo o sistema atual — é um acordo implícito, forjado pelo FMI, de que os Bancos Centrais mundiais poderão expandir a oferta monetária livremente caso combinem forças e atuem conjuntamente.
A ideia é que, em não mais do que daqui a 5 anos, os países deixem de usar o dólar no mercado internacional e adotem, para as transações internacionais, uma moeda digital lastreada em uma cesta de moedas (exatamente como era o plano da LIBRA). E então todos eles poderão expandir, conjuntamente, suas moedas digitais nacionais e assim evitar que determinados países sejam penalizados com movimentações acentuadas em suas taxas de câmbio.
A consequência óbvia disso é que haverá uma desvalorização conjunta de todas as moedas mundiais. Poderá isso criar uma inflação de preços estrutural? Não sei, mas tenho certeza que o debate será intenso. Apenas digo que, por causa das mudanças demográficas (população envelhecendo tende a poupar mais) e do avanço tecnológico (que aumenta a produtividade), as pressões deflacionárias também serão fortes.
Mas posso afirmar com total convicção que essas moedas, globalmente, valerão cada vez menos em relação a ativos sólidos — como, aliás, já está acontecendo.
Como se proteger
E é por isso que, neste cenário, ouro e principalmente Bitcoin irão se tornar a maneira de escapar deste sistema de perda de privacidade e destruição de riqueza. Ambos serão o bote salva-vidas.
O Bitcoin, em específico, é uma reserva de valor totalmente descentralizada. Seus usuários — ao contrários das moedas digitais estatais — permanecem anônimos. Suas transações não podem ser tributadas, pois estão fora do escopo dos Bancos Centrais (pois não foram estes que criaram o Bitcoin).
E o fato de que sua oferta foi programada para jamais superar 21 milhões de unidades faz com que sua qualidade de reserva de valor se torna ainda mais óbvia — além da privacidade.
Este é o grande poder da descentralização: não há como governos controlarem.
Ademais, com o tempo, o próprio arranjo tende a criar incentivos para que outros países adotem moedas mais sólidas para atrair capital. É tudo uma questão de seus cidadãos reagirem e começarem a abandonar as moedas nacionais em prol de outras mais sólidas — além do Bitcoin e da rede Ethereum (que também tem sua própria moeda digital, o Ether), vale ressaltar que várias empresas privadas emitem hoje moedas digitais 100% lastreadas em ouro. Certamente será uma alternativa.
O fato é que o impacto que este futuro trará para as criptomoedas privadas já existentes será incrivelmente positivo. Quem já estiver posicionado tende a ser dar bem, pois, futuramente, a corrida para elas em busca de proteção de riqueza e de privacidade será cada vez maior.
Para concluir
Em suma: com a abolição do papel-moeda, nenhuma transação ocorrerá em sigilo. Aqueles que quiserem manter sua privacidade e preservar sua riqueza — escapando das desvalorizações das moedas digitais estatais — terão de encontrar uma maneira de recorrer às criptomoedas privadas (inclusive as lastreados em ouro).
Tudo isso é também uma péssima notícia para os bancos, que serão sitiados pelos Bancos Centrais, pelas FinTechs e pelas criptomoedas já existentes. Eles irão continuamente perder seu papel no sistema financeiro.
Já as criptomoedas serão a proteção. Serão a reserva de valor.
Tudo está mudando e irá mudar cada vez mais rápido. Esteja à frente da curva.
27 de agosto de 2020
Raoul Pal
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