Porto, vista da Ponte Luís I


Querido José,

Sigo, aqui, minha narrativa de nossas andanças por terras lusitanas.

Depois de deixar a flor ao pé da porta de Braga, tivemos que correr. A chuva aumentava sensivelmente e não queríamos chegar muito tarde a Porto. Havíamos considerado a hipótese de tomar um trem “pinga-pinga”. O trecho custava apenas 3 euros e nos enchia de curiosidade a possibilidade de espiar pequenos vilarejos por onde o comboio passaria. A chuva, o frio e o adiantado da hora nos levaram a mudar de ideia e optar pelo trem rápido. Meia hora depois, chegávamos a Porto, cidade da qual muito havíamos ouvido bem falar.

Um comentário recorrente era que se tratava de um lugar onde hospedagem e alimentação eram boas e baratas. Fato confirmado. Nossa estada na Guest House Solar foi a mais barata de todo nosso trajeto e nos ofereceu tudo de que necessitávamos. Por essas bandas, só não conseguimos lavar roupa, porque todas as lavanderias da cidade seguem o sistema “deixar para buscar depois” e nosso tempo não alcançava.

Pertinho do alojamento, o famoso Café Majestic, que dias atrás havíamos visto na televisão, porque o edifício acabara de ser tombado pelo patrimônio. Nosso primeiro café da manhã já tinha endereço. O lugar me lembrou um pouco a Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro, e o Café Derby, em Santiago de Compostela. Todos compartilham o mobiliário clássico, arquitetura refinada, muita madeira, espelhos em abundância pelas paredes e garçons em terno, super alinhados. Café saboroso, mas fugiu ao “bom e barato” de quase todos os outros lugares em que fizemos refeições durante a viagem.

E, entre os “bom e barato”, do percurso, Porto foi onde nos fizemos clientes preferenciais da Casa Lopes, um restaurante de gente local, no bairro da Ribeira. Ali, não faltava nada: boa comida, o prato do dia dava para dois, TV ligada no noticiário local, trabalhadores e famílias das redondezas interagindo, um cachorro que tinha hora certa pra plantar-se em meio ao salão e fitar os clientes com sua cara de pidão, o Santo Antônio pendurado em uma parede e muitos azulejos.




Azulejo na Estação São Bento, em Porto

Vou arriscar, confiante de que não me equivoco: Portugal deve ter mais azulejo do que gente. E boa parte de sua gente está retratada nessas lindas pecinhas delicadamente coloridas. Estão lá as batalhas históricas mais importantes, as navegações e os descobrimentos, paisagens variadas e, claro, os santos e seus milagres. O conjunto de azulejos mais bonito que vimos é o que está exatamente na estação de trens de São Bento, na cidade do Porto. O hall está coberto deles, contando diversas passagens históricas, que ganham ainda mais beleza com a luz que entra pelos janelões, as gentes indo e vindo incessantemente e os ruídos típicos dos trens e seus anúncios de chegadas e partidas.

Nas muitas igrejas, muitos azulejos. Nessa categoria, a bonita passagem do Padre Antônio Vieira pregando sermão aos peixes. Talvez por já gostar da história, gastei um bom tempo admirando esse mosaico na Catedral de Lisboa – e a ela voltaremos em seu capítulo correspondente. A poucos passos de nosso alojamento em Porto, estava a Capela das Almas, coberta da cerâmica do pé à torre. Você passa horas olhando e não capta todos os detalhes. Na minha opinião, muito bonito, mas um exagero, que não causou mais estranheza apenas que a Igreja de São Francisco, cujo interior está todo revestido de ouro. Baita exagero. Baita estranheza. Claro que a questão é outra, mas não são os franciscanos os que pregam a pobreza como virtude? Usando a expressão popular, o Francisco original deve “revirar na cova” quando lembra dessa igreja tão “rica” quando ele mesmo abandonou seus pertences para ganhar a liberdade de sua fé.

Sensação de asco também podemos partilhar nós, brasileiros, ao ver nosso ouro e quantidades de nossas madeiras nobres ali empregadas. Ainda que se pense no patrimônio artístico que essas obras representam, não deixa de ser estranho ver um pedaço do nosso país ali, conhecendo a maneira como ele foi parar nesse lugar.

Nas redondezas, fomos também ao Palácio da Bolsa de Valores, onde nos haviam dito que se podia ver um brasão dos “Estados Unidos do Brasil”, exposto no tetoda antiga sala dos pregões. Na verdade, é um brasão da República, de 1889, mas o prédio tem diversos outros atrativos, como grandes peças de gesso imitando madeira de forma bastante primorosa e outro exagero: a sala de eventos, inspirada na cultura árabe. Outro lugar em que o olhar se perde na imensidão de detalhes da decoração. Curioso de ver, interessante de ouvir as histórias que localizam o comércio no Porto dentro das rotas comerciais históricas e mundiais, mas como passeio, nosso preferido mesmo foi o que fizemos pelos becos e escadarias da Ribeira.




O ocre e o vermelho das fachadas da Ribeira

Estivemos procurando as mulheres lavando roupas na Escada das Verdades, que você descreveu, José. Mas era inverno e, pra variar, chovia. É possível também que as máquinas de lavar tenham se popularizado depois de sua passagem por ali. Ainda que os tanques permaneçam em fila, colados às paredes das casas que se emendam umas às outras. Casas pintadas de ocre e vermelho – a pintura parecia recente em várias delas, mas as cores se mantêm as mesmas e dão um aspecto particular ao bairro, um certo ar grave e, ao mesmo tempo, vibrante, como o dos rostos das pessoas mais velhas que espreitavam às janelas, entre um beco ou escadaria e outra, enquanto nos perdíamos naquelas subidas e descidas. Ocre e vermelho. Como o vinho do Porto – branco e tinto –, forte, consistente, que enche a boca de paladar e o espírito de confianças. E que, historicamente, circula e envelhece logo ali, em frente à Ribeira, nos barcos que cortam o Rio Douro e nas adegas que se multiplicam na Vila Nova de Gaia. Para lá fomos.

Depois de cruzar a ponte que liga as duas cidades – e que brinda bonitas vistas das duas bordas –, saímos caminhando em busca das adegas escolhidas, uma de origem inglesa (Taylor’s) e uma portuguesa (Real Companhia Velha). No caminho, pedimos informação e, além de dicas de ruas e atalhos, recebemos muitas sugestões de que vinhos provar, vindas de nativos da cidade, cujas faces rosadas e faceiras sugeriam que do assunto conheciam bem.

Era baixa temporada e isso nos deu a oportunidade de desfrutar com exclusividade das visitas guiadas nessas duas adegas, com tempo para fazer todas as perguntas que buscavam satisfazer nossa curiosidade, antes de agradar nosso gosto, nas provas de vinho oferecidas. Aprendemos que a fórmula do vinho do Porto tem origem acidental. Os empreendedores do ramo, que comercializavam vinho de mesa com a Inglaterra, adicionaram açúcar à fórmula, para que a bebida suportasse melhor o tempo de viagem. Criaram uma nova experiência gustativa, que se aprimorou no decorrer da história e virou marca e patrimônio dessa região: só nos domínios do Douro se produz o legítimo vinho do Porto.

Ambas as adegas nos ofereceram um belo percurso entre barris, pipas e muito aroma a tanino. Descobrimos que processos caracterizam cada família de vinho do Porto – Lágrima, Tawny, Reserva… –, como se transporta, como se conserva e, claro, como se bebe. A visita à Real Companhia Velha foi também uma espécie de peregrinação. O trajeto do metrô até a adega ficou longo debaixo de uma garoa insistente. E, às vésperas de Natal, ali não esperavam turistas. Eles não sabiam, José, que os viajantes resistem mais às intempéries e impedimentos aparentes. Nos puseram a esperar num galpão de carga e descarga, onde uma loja com pinta de improvisada, mas que deve estar estabelecida há tempos, atendia donos de restaurantes e anfitriões de ceias de Natal, desejosos de embriagar seus convidados com o precioso líquido. Nos sentimos um pouco arqueólogos, espiando os conteúdos das caixas empoeiradas, e um pouco detetives ou inspetores, espreitando a rotina dos trabalhadores. Foi uma situação inesperada que terminou proporcionando uma experiência interessante e particular. Saímos de lá decididos a voltar para a época das colheitas, quando se organizam visitas às vinhas. E, claro, com umas garrafas de vinho para relembrar a viagem nas noites frias de Bruxelas.

Do Porto trouxemos, ainda, uma lembrancinha de viagem. Para comemorar nossos anos de namoro, comemorados à virada de cada ano. Aqui e acolá, pelo Norte de Portugal, estivemos apreciando os tais “Lenços de Namorar”, que são, como bem nominados, lencinhos com um bordado quase rudimentar e frases apaixonadas escritas em português bastante popular, incluindo, aqui e acolá, um par de erros ortográficos. Uma graça. Diz-se que, historicamente, as moças casadoiras ofereciam esses lenços a seus pretendidos e, se eles fossem à Missa seguinte, portando o presente, era sinal de que aceitavam o galanteio. Além de lindo, simbólico para nosso festejo.

Próximo capítulo: Coimbra e um drama. Preparem os lencinhos, ainda que sejam os de papel!Blog no.com. WPExplorer.

02 de setembro de 2019
Filosofia de botequim